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A intertextualidade no romance histórico inesiano.

Para compreendermos as relações intertextuais de uma determinada obra, é necessário aceitarmos que a leitura de um determinado texto literário realiza-se não apenas como uma soma confusa e superficial de influências, mas como o trabalho de transformação e assimilação de vários textos pelo leitor, que opera as conexões além dos limites do tempo e do contexto de cada obra. Ler passa a ser, então, uma atitude ativa de apropriação, pois um livro sempre nos remeterá a outros livros. Trazemos, neste estudo, esta atitude para a leitura dos romances contemporâneos, por sabermos que apresentam características singulares, dentre elas, a intertextualidade. Mais ainda, por concordarmos com a assertiva de Linda Hutcheon que

A intertextualidade pós-moderna é uma manifestação formal de um desejo de reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor e também de um desejo de reescrever o passado dentro de um novo contexto (HUTCHEON, 1991: p. 157)

Buscando o início dos estudos, para Júlia Kristeva (1974), “[...] todo texto se constrói como mosaicos de citações, todo texto é a absorção e transformação de um outro texto” (p. 74). A noção de intersubjetividades é substituída pela de intertextualidade e a linguagem poética pode ser lida com inúmeras possibilidades de significação. Com base no conceito de intertextualidade que Júlia Kristeva traz de Mikhail Bakhtin,

compreendemos ser plausível um olhar intertextual para o romance contemporâneo, ao detectarmos que, em alguns casos, encontramos, através deste olhar uma nova forma de reescrever a História.

Esta relação intertextual acontece tanto em relação aos romances contemporâneos entre si, como entre um romance contemporâneo e um romance de qualquer outra época. Como exemplo, apontamos, no romance

D. Pedro e D. Ignez, um momento que se repete em outros romances na

contemporaneidade, pela importância de se tratar do arrebatamento que toma conta de Pedro, ao ver Inês pela primeira vez:

A primeira vez que D. Pedro encarou Ignez, viu-lhe num instante toda a beleza e advinhou-lhe todo o encanto; e sentindo a fatal absorção absoluta de seu ser naquele ser, amou-a subitamente, poderosamente, alado e fora de si, com festa e pesar, a alma toda pureza mas a boca húmida de desejos queimantes, nada querendo dela e exigindo tudo, sonhando e delirando, animal e poeta – amava com paixão (FIGUEIREDO, 1914, p. 58).

Essa paixão e este impacto que Inês causa no infante vai também ser mostrado em elevado grau no romance Memória de Inês de Castro. É como uma aparição que Inês se apresenta a Pedro no primeiro encontro, o qual, segundo o narrador, acontece casualmente, como parte do destino de ambos, quando o Infante vai visitar Constança em Alenquer:

[...] Pedro estava encostado ao umbral da porta da janela e Inês disse-lhe:

– Senhor, vossa bebida está pronta.

Pedro estava ligeiramente de costas e fitava Alenquer atento à disposição das casas. Tinha a boca seca, agradeceu ligeiramente com a cabeça e bebeu, sem reparar em mais nada, dum só trago, o vinho que Inês verteu no cálice. Quando ergueu a cabeça e fitou o rosto de Inês reparou, intrigado, que os cabelos desta pareciam despedir labaredas. Era um lume que crepitava em silêncio. O seu rosto tinha assim uma luminosidade anormal, quase transparente, que a tornava duma imobilidade absoluta. A pele acetinada e branca parecia ter-se iluminado por dentro, coroada estava por uma luz intensa (FRANCO, 1990, p. 81)

Ambas as narrativas, tanto a de Antero de Figueiredo como a de Cândido Franco, também diferem de como Luís Rosa trata dessa apresentação, que é mostrada em O amor infinito de Pedro e Inês da seguinte maneira:

Mas quando Pedro cegou ao largo a par do Convento de S. Francisco onde a rainha albergava, viu chegar-se ao seu encontro, a mando dela, uma dama de sua companhia, quase menina quase mulher, quase tudo o que dona tem e mostra, sem se fazer mostrada. [...] Vestia cor de jacinto, com uma cinta creme e uma touca escarlate que lhe deixava adivinhar o cabelo farto, louro, oferecendo-lhe vinho verde de sua terra de Além-Minho [...] Pedro serviu-se e agradeceu. E a dama como chegou assim se foi para junto de sua senhora, cumprindo o seu recado, e guardado o recato da incumbência. Pedro é que ficou olhando para a ausência que era tudo o que restava de presente. [...] Até o desconcerto dos gestos ou do pasmo embaraçava as palavras e a circunstância (ROSA, 2005, p. 41-42).

A intenção, ao trazermos um longo fragmento do romance de Luís Rosa, é mostrar que este autor atenua o impacto sofrido por Pedro ao conhecer Inês. Mas está clara a relação intertextual. E, mais, é visível que os romancistas contemporâneos vão “trabalhando” os elementos presentes já em outros textos, a exemplo de Franco e Rosa nos trechos citados. Fato visivelmente claro para nós é que a intertextualidade está presente em vários outros momentos dos romances inesianos, os quais tomamos para estudo.

Sobre as origens do conceito de intertextualidade, sabe-se que, embora os formalistas russos – especialmente Tynianov e Chklovsky – tenham tido uma certa preocupação com conceitos atinentes à noção contemporânea de intertexto, é Mikhail Bakhtin quem normalmente vem sendo tomado como referencial e como sendo o primeiro teórico a tratar com maior profundidade este assunto. Ressaltamos, contudo, que nos estudos bakhtinianos a palavra intertextualidade não aparece. É Julia Kristeva a responsável por relacioná-la a Bakhtin.

Rompendo com o hermetismo de seus antecessores, Bakhtin apresenta um conceito abrangente de “texto”, como o que diz respeito a

toda produção cultural com base na linguagem. Ele foi o primeiro a caracterizar a intertextualidade como conceito operacional de teoria e crítica literária, tendo como base a intertextualidade na própria concepção de linguagem por ele construída. Nesse sentido, a ideia que o cânone sempre passou, de cópia de uma obra literária, passa a ser substituída pela de diálogo ente textos. Nisso existe a construção teórica de Kristeva, pois ela absorve de Bakhtin ideia do dialogismo, das vozes dentro do texto, e transpõe essa ideia para um macrodiálogo entre textos de diferentes épocas.

Ainda exemplificando a intertextualidade presente nos romances escolhidos como corpus, um romance destes que traz em seu enredo a descrição de fatos políticos marcantes, e que para nós o faz largamente baseado na crônica de Pina, é Memória de Inês de Castro. A relação intertextual entre esse texto – que será analisado em capítulos posteriores – e a Crónica de Dom Afonso IV, de Pina, já começa logo na abertura de ambos os textos, conforme se pode ver em Memória de Inês de Castro: “Em 7 de Janeiro de 1325 faleceu D. Dinis em Santarém, com 64 anos. O infante D. Afonso, avisado pela mãe, Isabel de Aragão, veio expressamente de Leiria [...]” (FRANCO, 1997, p. 13). E na crônica:

Ao tempo, que D. Dinis falece em Santarem, que foy a sete dias de Ianeiro da era de Cezar de mil & e trezentos sessenta & e três, & Fo anno de Christo de mil & trezentos & vinte e cinco, logo foy solenemente alevantado & obedecido por Rey o Infante Dom Afonso seu filho primogênito, & erdeyro, em idade de trinta e sinco annos [...] (PINA, 1977, p. 335).

Assim, sob diversas maneiras pode-se observar as relações intertextuais com diversos textos de tema inesiano. No caso de nosso estudo, ao invés de apresentarmos as relações intertextuais entre os textos inesianos apenas neste capítulo, optamos por mencionar, sempre que considerarmos necessário, as relações entre um texto e outro. O caso mais explícito de relação intertextual de vários textos é com a crônica de Fernão Lopes. Depois dela, o drama Pedro o cru, de António Patrício, é o texto

inesiano que mais recebe relações intertextuais. Afonso Lopes Vieira intertextualiza o texto de Patrício com o título A paixão de Pedro o cru, mas não dá a seu texto a tônica saudosista como aquele autor o fizera. A relação intertextual limita-se apenas ao título, em função de ser um dos modos como Pedro é caracterizado.

Assim, no tocante à intertextualidade no romance inesiano, percebemos dois modos desta acontecer: primeiramente, a relação extra texto, ou seja, a relação que os romances estabelecem uns com os outros, ou com os textos literários de diversos gêneros, todos retomando os textos historiográficos. Num segundo movimento intertextual, percebemos o diálogo dos romances com outros textos da literatura, como no caso de Seomara da Veiga Ferreira, que retoma as novelas de cavalaria. Por serem dois movimentos intertextuais que perpassam vários momentos das narrativas, alertamos que o aspecto da intertextualidade poderá ser apontado em outros capítulos desse estudo, conforme se faça necessário.

Morte de Inês de Castro

Capítulo II

Mito, amor e saudade: elementos de sustentação do episódio inesiano na literatura

Se queremos saber e ver como atuam os mitos de um modo geral, parece-me que o estudo particular do domínio exercido pelos mitos do amor será o que melhor pode nos ajudar.

No romance Leonor Teles ou o canto da salamandra (1999), Seomara da Veiga Ferreira diz, por meio da narradora, que todos os povos precisam dos seus mitos. Considerando que a autora tem-se detido na produção de romances que retomam mitos da literatura portuguesa, compreendemos que a frase tem seus propósitos dentro do texto literário.

Lembramos, pois, no que concerne à Literatura, que o mito torna- se um recurso poético. É um arquetípico confirmado pelo tempo e acaba por revelar uma série de teias da psique humana, através dos arquétipos. Estes, de uma forma ou de outra, estão sempre ressurgindo, porque, cristalizados também como imagens míticas, estão no chamado inconsciente coletivo.

Desde a Poética, de Aristóteles, a História do pensamento ocidental registra uma longa tradição de exegese do mito. Lembramos, pois, que para este filósofo grego o processo mimético encerra o mito trágico. Para além dessa visão aristotélica, sabe-se que, desde o tempo histórico mais remoto, mythos e logos – este último compreendido como discurso estruturado –, mesmo semanticamente próximos, vão compor duas “naturezas” distintas, embora ambas relacionadas à palavra: o logos é tomado como a razão, enquanto o mythos vai passar a definir tudo o que se relaciona com o mágico, sobrenatural, fantástico, ou que seja de natureza simbólica ou metafórica.

Ora, sabe-se que, desde a Grécia antiga, o vocábulo mythos está intrinsecamente ligado ao ato de narrar. O “narrador” do mito – ou o poeta- rapsodo, para usar um termo que vem do grego – acredita-se, e acreditam nele, como sendo um poeta escolhido dos deuses, os quais lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Por isso, sua palavra – o mito – é sagrada porque vem de uma revelação divina. Deixamos claro que, ao tercermos algumas poucas elucidações sobre mito, é porque consideramos, neste estudo, Inês como mito, guiando- nos pela vasta fortuna crítica que já discorreu sobre isso. Ou seja, dispensamos aqui discutir se Inês é aceita ou não como mito.

É exatamente por tomarmos Inês de Castro como um mito na cultura portuguesa, que buscaremos tratar de questões relativas aos estudos dos mitos, sem pretendermos, todavia, um aprofundamento dessas questões, visto que o enfoque sobre o romance é o que predomina em nosso encaminhamento.