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4.8 USO DA TECNOLOGIA: O PROGRAMA WORDSMITH TOOLS

5.1.2 A intertextualidade presente na cadeia de gêneros discursivos

A proposta de Fairclough adota a perspectiva dialógica de Bakhtin (1992), conforme mencionado anteriormente, em relação à cadeia de textos. Podemos, assim, distinguir as relações 'externas' e 'internas' de textos através da análise de suas relações com outros elementos de eventos sociais e, mais abstratamente, práticas sociais e estruturas sociais. A dimensão para as relações 'externas', que trataremos aqui, concerne às relações entre o Estatuto da Criança e do Adolescente e outros textos anteriores e posteriores a ele. Buscar-se-á identificar como elementos de outros textos são incorporados 'intertextualmente' e como as vozes são incorporadas; como outros textos são referenciados, compreendidos, dialogados e assim por diante.

De acordo com Fairclough (2001: 114), “a intertextualidade diz respeito à propriedade que têm os textos de serem cheios de fragmentos de outros textos”. Isso pode ocorrer explicitamente ou, então, de forma mesclada, podendo um texto assimilar, contradizer, ecoar ironicamente, e assim por diante, outro texto. Segundo o autor, em termos de produção, uma perspectiva intertextual acentua a historicidade dos textos, isto é, a maneira como eles sempre constituem acréscimos às ‘cadeias de comunicação verbal’ existentes, como postula Bakhtin (1986: 94), consistindo em textos prévios aos quais respondem.

Em termos de distribuição, uma perspectiva intertextual é útil na exploração de redes relativamente estáveis em que os textos se movimentam, sofrendo transformações predizíveis ao mudarem de um tipo de texto a outro (por exemplo, os discursos políticos frequentemente se transformam em reportagens). Já em termos de consumo, uma perspectiva intertextual é útil ao acentuar que não é apenas ‘o texto’, nem mesmo apenas os textos que intertextualmente o constituem, que moldam a interpretação, mas também os outros textos que os intérpretes variavelmente trazem ao processo de interpretação (FAIRCLOUGH, 2001: 114).

Fairclough (2001) faz uma distinção entre a intertextualidade manifesta e intertextualidade constitutiva (interdiscursividade). O autor se refere à intertextualidade manifesta como a constituição heterogênea de textos por meio de outros textos específicos, o que torna possível observar que outros textos estão explicitamente presentes no texto sob análise. Já a intertextualidade constitutiva de um texto é observada por meio da configuração de convenções discursivas que entram em sua produção.

A intertextualidade manifesta foi discutida por Fairclough (2001: 153-159) em relação à representação do discurso, à pressuposição, à negação, ao metadiscurso e à ironia. O Quadro 5.9 exemplifica uma forma de intertextualidade manifesta, conforme Fairclough (2001), presente no ECA. Trata-se da representação do discurso por meio da paráfrase do que está previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na CF/88 e na Convenção dos Direitos da Criança. Pode-se afirmar que há uma cadeia intertextual por meio de paráfrases entre os documentos.

Quadro 5.9 – Representação do discurso nos antecedentes para a inclusão e no ECA por meio de paráfrase

Declaração Universal dos Direitos Humanos

Constituição Federal de

1988 Convenção dos Direitos da Criança Estatuto da Criança e do Adolescente Artigo 26°

1. (...) A educação deve ser gratuita, pelo menos a correspondente ao ensino elementar fundamental. O ensino elementar é obrigatório. Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Artigo 28

1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação e, a fim de que ela possa exercer progressivamente e em igualdade de condições esse direito, deverão especialmente: a) tornar o ensino primário obrigatório e disponível gratuitamente para todos; Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente: I - ensino fundamental, obrigatório e gratuito, inclusive para os que a ele não tiveram acesso na idade própria;

Outra marca de intertextualidade apontada por Fairclough e que pode ser observada na cadeia de textos legais deste estudo é a citação direta por meio de encaixe. No ECA, esse encaixe é marcado pelo uso do texto da CF/88, mas sem referência e sem aspas, o que pode ser observado nos Quadros a seguir.

Quadro 5.10 – Representação do discurso de inclusão na CF/88 e no ECA por meio de Encaixe (1)

Constituição Federal de 1988 Estatuto da Criança e do Adolescente

Art. 208.

VII - atendimento ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de material didático- escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Art. 54. É dever do Estado assegurar à criança e ao adolescente:

VII - atendimento no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático- escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Quadro 5.11 – Representação do discurso de inclusão na CF/88 e no ECA por meio de Encaixe (2)

Constituição Federal de 1988 Estatuto da Criança e do Adolescente

Art. 208.

§ 1º - O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º - O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente.

§ 3º - Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola.

Art. 54.

§ 1º O acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo.

§ 2º O não oferecimento do ensino obrigatório pelo poder público ou sua oferta irregular importa responsabilidade da autoridade competente.

§ 3º Compete ao poder público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsável, pela frequência à escola.

Um paralelo comparativo entre os dois fragmentos destacados acima pode apontar que, apesar de não estar explicitamente marcada, como discutido por Fairclough (2001), a representação de discurso exibe uma relação de intertextualidade manifesta. Há o encaixe do texto da CF/88 no texto do ECA, o que marca o estilo de ambos os textos que estão dentro da mesma ordem de discurso.

Já, em relação aos documentos oficiais promulgados após o ECA, pode-se observar a intertextualidade por meio de paráfrase.

Quadro 5.12 – Intertextualidade entre o ECA e os documentos promulgados após sua criação - paráfrase

Estatuto da Criança e do

Adolescente Bases da Educação Lei de Diretrizes e Nacional

Declaração de

Estocolmo Direitos Humanos de Plano Decenal dos Crianças e Adolescentes

Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:

I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

(...)

V - acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência.

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. a) Proporcionar às crianças o acesso à educação como meio de melhorar sua condição e fazer com que a educação primária seja obrigatória e gratuita para todos. Objetivo Estratégico 2.8 - Universalizar o acesso e assegurar a permanência e o sucesso de crianças e adolescentes na educação básica, expandindo progressivamente a oferta de educação integral, com a ampliação da jornada escolar, dos espaços e das oportunidades

Ao tratar de questões de hegemonia, Fairclough (2003) estabelece um paralelo entre intertextualidade e suposição. Segundo o autor, a intertextualidade abre para diferença, enquanto suposições reduzem-nas. A opção mais dialógica seria atribuir explicitamente as representações às suas origens, ou seja, às ‘vozes’, e incluir grande parte das vozes que realmente existem. Uma opção menos dialógica, sempre de acordo com Fairclough, seria o uso de asserções modalizadas. O esquema a seguir resume como o autor apresenta a questão da dialogicidade dos textos:

____________________________________________________________________________ Figura 5.2 - Continuum de dialogicidade dos textos

Considero, no continuum acima, que a diferença entre suposições e intertextualidade implica o seguinte: enquanto aquelas não são atribuídas ou atribuíveis a textos específicos, esta última, ao contrário, permite identificar vozes de textos em outros textos, conforme já observou Fairclough (2003: 40). Tem-se, aqui, muito mais uma questão de relação entre o texto e o que foi dito, escrito ou pensado em outro lugar, com o ‘outro lugar’ deixado vago. Em relação às vozes presentes nos documentos analisados, ressalte-se que pode ocorrer por citação, como já observamos, bem como por asserção, como no Quadro 5.13. Observa-se que há harmonia e cooperação entre elas, sobretudo, pelo fato de se tratar de textos inspirados em direitos de crianças e adolescentes. Isso pode ser observado nos Quadros já apresentados, bem como no Quadro comparativo 5.13 apresentado a seguir.

Quadro 5.13 – Representação do discurso nos antecedentes para a inclusão e no ECA por meio de asserção não-modalizada

Declaração Universal dos

Direitos Humanos Convenção dos Direitos da Criança Estatuto da Criança e do Adolescente Artigo 26°

1. Toda a pessoa tem direito à educação. Artigo 28 1. Os Estados Partes reconhecem o direito da criança à educação (...) Art. 53. A criança e o adolescente têm direito à educação (...)

No Quadro 5.13, os três documentos envolvem uma afirmação explícita sobre o direito à educação. É possível reconhecer a voz presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção dos Direitos da Criança e no ECA. Pode-se afirmar que o Estatuto da Criança e do Adolescente faz uma asserção não-modalizada do que está proposto na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Convenção dos Direitos da Criança: “o direito à educação”. Todos os documentos reconhecem esse direito como inerente à pessoa.

Observamos que há entre o ECA e a LDB intertextualidade por meio de citação no Art. 32 da última lei.

Quadro 5.14 – Representação do discurso por meio de citação do ECA na LDB

§ 5o O currículo do ensino fundamental incluirá, obrigatoriamente, conteúdo que trate dos direitos das crianças e dos adolescentes, tendo como diretriz a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990, que institui o Estatuto da Criança e do Adolescente, observada a produção e distribuição

de material didático adequado.

(LDB – Título V - Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino, Capítulo II – Da Educação Básica, Seção III – Do Ensino Fundamental, Art. 32)

O § 5º do Art. 32 da LDB, transcrito no Quadro 5.14, apresenta uma citação da Lei nº 8.069/90 – o Estatuto da Criança e do Adolescente. Há, nesse caso, a presença da voz que trata dos direitos das crianças e dos adolescentes no texto da LDB, marcando a dialogicidade entre os textos da LDB em relação ao ECA.

Ao tratar das relações interdiscursivas (interdiscursividade), Fairclough (2003) enfatiza que o nível do discurso é aquele no qual as relações entre gêneros, discursos e estilos são analisadas. Segundo o autor, o nível do discurso é intermediário entre o texto e seu contexto social (eventos, práticas e estruturas sociais). Discursos, gêneros e estilos são elementos de textos e são também elementos sociais. Como se pode observar, os três fragmentos em análise mantêm uma relação de interdiscursividade, ainda que tenham sido tecidos de modo particular para fins específicos. Por outro lado, é possível observar que o ECA e a LDB apresentam uma

recontextualização dos direitos elencados nos documentos que os antecedem, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a CF/88 e a Convenção sobre os Direitos da Criança, e são também recontextualizados na Declaração de Estocolmo e no Plano Decenal. Ressalte-se que as relações interdiscursivas entre gêneros, discursos e estilos são realizadas como relações semânticas, que são formalizadas em relações gramaticais e de vocabulário. Por isso, podemos observar a intertextualidade/interdiscursividade presentes nos documentos oficiais que antecederam o ECA, assim como nos que foram promulgados após a sua criação.

As relações entre os níveis do discurso, da semântica, da gramática e do vocabulário são de 'realização', como bem observa Halliday (1994). A seguir, apresentaremos a análise da inclusão ou exclusão de crianças e adolescentes em situação de risco no sistema educacional por meio da observação da representação das ações, através do estudo dos processos, bem como dos atores envolvidos, por meio da análise da representação dos participantes e das circunstâncias que envolvem essa inclusão/exclusão no ECA e na LDB.