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2. A CATEDRAL METROPOLITANA DE

2.3. A intervenção de 1968

O reinício das obras em 1968 teve um propósito particular. Através de um documento divulgado na imprensa, a população capixaba teve conhecimento das razões que motivaram a reforma de 1968 a 1974107. O documento não está assinado e também não traz referência de data ou de fonte:

Apenas chegamos à paróquia, sentimos urgência em darmos continuidade às obras de acabamento, paralisadas desde alguns anos. A 6 de março de 1968 tiveram início as obras, contanto com uma verba estadual, deixada pelo pároco anterior108.

As obras visavam uma série de intervenções na ornamentação interna da catedral, retirando paredes, altares e imagens, alterando de lugar alguns vitrais, construindo uma sacristia, nichos para ossuários, entre outras construções e reparos109.

No documento, é possível perceber a preocupação do autor em relação à recepção que os fiéis poderiam ter da reforma, justificando-a como fruto de uma “reflexão demorada

com leigos, sacerdotes e bispos”, ou seja, demonstrando a conformidade de todo um grupo que foi previamente consultado, atitude que consideramos preventiva para uma intervenção desta natureza.

Em outra passagem do mesmo documento fica mais evidente a tentativa de afirmar o consenso em relação à necessidade das reformas, através da presença de “autoridades”:

(...) é claro que as reformas não foram só criação nossa, mas contamos com estudos sérios, feitos por arquitetos da Guanabara, tendo como presidente o Monsenhor Guilherme Schubert, membro da Comissão de Arte Sacra, do Brasil110.

107 Quando nos referirmos a esse documento usaremos o termo “Documento de 1968”.

108 Acabamento e Reformas da catedral de Vitória. s/d. p. 1. Documento Avulso. Arquivo Público

Estadual. O vigário geral da cidade entre 1959 e 1991 foi o Padre Rômulo Neves Balestrero, que pode ter sido o autor deste documento.

109 A reforma consistiu em várias etapas que podem ser descritas, em linhas gerais, da seguinte forma: 1ª

etapa – abertura das portas laterais dos braços da catedral e um respiradouro para a cripta; 2 ª etapa – construção da sacristia; 3 ª etapa – transposição dos vitrais do presbitério para os janelões do braço esquerdo e para a nave; 4 ª etapa – elevação da parte frontal do presbitério e construção de 12 nichos para ossuários e um sarcófago. Os mármores retirados das mesas de comunhão foram colocados nos degraus do presbitério; 5 ª etapa – instalação de telhados nos salões dos fundos; 6 ª etapa – reparos nas torres e colocação de escadas de ferro para acesso ao coro e torres; 7 ª etapa – substituição dos telhados por telhas de amianto; 8 ª etapa – reparos na instalação elétrica; 9 ª etapa – retirada dos altares laterais; 10 ª etapa – construção de um trono para a imagem da padroeira; 11 ª etapa – sonorização. Acabamento e Reformas da

catedral de Vitória. p. 2 e 6. Documento Avulso. Arquivo Público Estadual.

Essas reformas estavam embasadas em diretivas da Igreja, como podemos ler no capítulo VII do Concílio Vaticano II (1962-1965), que versa sobre a Arte Sacra e Alfaias Litúrgicas:

124. Cuidem os Ordinários que, promovendo e incentivando arte verdadeiramente sacra, visem antes à nobre beleza que à mera suntuosidade. Aplique-se isto também às vestes e ornamentos sagrados. Tenham os bispos todo o cuidado em retirar da casa de Deus e de outros lugares sagrados àquelas obras de arte que repugnam à fé e aos costumes, à piedade cristã e ofendem o verdadeiro senso religioso quer pela deturpação das formas, quer pela insuficiência, mediocridade e simulação da arte. (...)

125. Mantenha-se o uso de expor imagens nas igrejas à veneração dos fiéis. Sejam, no entanto em número comedido e na ordem devida, para que não causem admiração ao povo cristão nem favoreçam devoções menos corretas. 126. No julgamento das obras de arte, os Ordinários do lugar ouçam o parecer da Comissão de arte sacra e de outras pessoas particularmente competentes (...)111

O Documento de 1968 seguiu os pareceres 124, 125 e 126 do Concílio Vaticano II no que diz respeito, sobretudo, ao acompanhamento de técnicos da Guanabara e da comissão de arte sacra nas reformas da catedral e, também, da retirada das imagens e dos altares.

Outro aspecto relevante da reforma de 1968 diz respeito à justificativa dada para a retirada das imagens de santos e dos altares laterais: estas não teriam valor artístico, por serem de gesso e por estarem repetidas, como veremos mais adiante. Para termos idéia do impacto dessa intervenção na ornamentação interna da catedral destacaremos o caso dos altares e dos vitrais.

Como decorrência do programa de modernização do Concílio do Vaticano II, Ana Paola P. Baptista afirma que a partir da década de 1960 os interiores das igrejas estiveram focados num único altar e o papel das imagens foi significadamente reduzido, nesta conjuntura as diretivas pontificais recomendavam a austeridade, a simplicidade e a economia das formas112. A retomada das obras na catedral nos anos 1968 e 1974 reflete exemplarmente tais disposições.

111 Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001. p. 77-78.

112 BAPTISTA, Ana Paola P. O eterno ao moderno: arte sacra católica no Brasil – anos 1940 e 1950. Tese

de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, 2002. p. 22-23.

Os motivos justificados pelo pároco de Vitória para reiniciar as obras na catedral, tais como a volta ao ‘estilo primitivo’ e a ‘introdução de reformas para facilitar a ação litúrgica renovada’, ambos já mencionados anteriormente, devem ser pensados cuidadosamente. Cabe-nos, neste ponto de nossas pesquisas, salientar dois aspectos que consideramos essenciais para a compreensão do conjunto de fatores que nortearam o desmanche do programa iconográfico da catedral. Primeiramente, tal como já afirmamos, devemos situar tais fatores numa conjuntura histórica determinada onde a Igreja, seus respectivos membros (como os sacerdotes, bispos e párocos) e a sociedade de fiéis posicionam-se diante das decisões do Concilio do Vaticano II (1962-1965). Um segundo aspecto seria circunscrever tais predisposições e tomadas de decisão no âmbito mesmo da história da Igreja.

Segundo Roberto Romano, até o Concilio do Vaticano II a prática política da Igreja católica consistiu na justificação de governos, mesmo que autoritários, desde que garantida a liberdade e a soberania da mesma113. O apoio eclesiástico daria força e duração ao Estado e sua legitimação transcendente, desde que aceita a mediação sagrada. Como ele afirma, a Igreja “possuidora da revelação da ordem ofereceu ao Estado, não sem condições, uma formidável máquina burocrática de controle dos dominados114”.

No período de governo de Vargas, que coincidiu com a instalação e ornamentação interna da catedral de Vitória (1933 a 1943), o projeto corporativo da Igreja cedeu lugar ao corporativismo secular115 e, ao mesmo tempo, a Constituição de 1934 cedeu à Igreja a entrada nas escolas, antes barradas pelos governos positivistas e liberais. Na década de 1960 o apoio ao Estado foi reformulado, o que não significa que a legitimidade do governo militar foi posta em questão pela Igreja. Ao contrário, todas as opções políticas de resistência ao poder militar foram devidamente rejeitadas. Neste sentido, a reforma iniciada em 1968 desmancha o programa iconográfico anterior sem, contudo propor uma alteração na relação entre as instituições da Igreja e do Estado.

113 ROMANO, R. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979, p.145-146 114 Ibid., p. 146.