• Nenhum resultado encontrado

Iniciamos nosso trabalho com uma frase sobre o método de análise de Walter Benjamin. O método benjaminiano suscita a idéia de que a imagem do passado é onírica e ganha sentido no seu despertar, ou seja, no momento em que ela passa a ser um objeto cognoscível em um dado presente. E é sempre no presente que se formula a problemática em relação ao passado. A nossa problemática inicial era justamente compreender de que forma poderíamos assinalar as correspondências e as associabilidades328 entre as imagens e as inscrições com os nomes dos doadores nos vitrais da catedral de Vitória e a conjuntura histórica vivida na capital espírito-santense, particularmente entre os anos 30 e 40.

Para trilhar o caminho das correspondências, percebemos a quão rica e complexa são as possibilidades de ligação entre formas artísticas, o cotidiano sensorial, a mentalidade de uma época, as forças políticas – isto para citar alguns dos fenômenos culturais sob os quais os sujeitos históricos estão envolvidos.

As escolhas tomadas para a condução desta dissertação tiveram como propósito reunir o máximo de evidências possíveis para assinalar as correspondências pretendidas, ainda que tenhamos clareza que este trabalho não esgota as possibilidades de interpretação deste objeto que são os vitrais da catedral de Vitória.

A partir da nossa investigação, percebemos como, dentre as funções dos vitrais, não constava a de seu uso cultual, dado que o culto estava voltado para os altares com as imagens esculpidas para devoção. Compreendemos, portanto que os vitrais eram um ornamento que compunha a estrutura da catedral, um cenário para a devoção, mas que também davam visibilidade aos doadores – daí sua função política.

A polivalência de suas funções ainda pode ser notada pelo fato de que os vitrais são parte da própria estrutura arquitetônica da catedral e o programa iconográfico de seu

328 Termos utilizados por Bernardo Oliveira para discutir o método benjaminiano de análise. OLIVEIRA,

conjunto possui uma função teológica expressando uma determinada política da Igreja na conjuntura da política de romanização.

Após a reforma de 1968-74, ocorre a retirada dos altares, das respectivas imagens e a mudança de lugar de alguns vitrais. Com esta mudança, os vitrais ficam como que

fantasmagóricos, para citar Benjamin, afinal não mais refletem em seu conjunto o contexto histórico em que foram pensados. Sua aura aflora e seu mistério transborda por ser um invólucro de um tempo que não existe mais.

Os vitrais observados a partir da sua localização atual não possuem uma relação de interdependência, cada vitral parece encerrar sua representação em si mesmo. Eles certamente evidenciam as devoções presentes na catedral na primeira metade do século XX, porém sua interpretação somente foi possível quando recolocamos mentalmente (ou virtualmente) cada vitral em sua posição original, para podermos perceber que entre eles havia um sentido, um diálogo que comunicava as imagens com o mundo social em que estavam inseridas.

Estabelecendo uma analogia, poderíamos pensar a catedral antes da reforma de 1968 como um vitral: composta de fragmentos, dividida em peças onde cada grupo de devotos seria uma vidraça, um membro desse gigante quebra-cabeça que somente ganhava forma após a união de todas as peças, tal como na montagem de um vitral. Cada peça no seu lugar e a catedral como um todo-uno.

Poderíamos, inclusive, pensar na catedral como uma reminiscência, por ainda ser possível identificar elementos da estrutura mental tradicional: a nave representando o espaço urbano e a sociedade, através das irmandades e devoções (ainda que já transformadas devido a política de romanização); a catedral como um espaço de sociabilidade, engendrando eventos cívicos e religiosos organizados de forma a evidenciar a hierarquia e o seu caráter ritualista. Além do mais, a presença dos altares, das imagens e da ornamentação interior, ao mesmo tempo em que marca as permanências de estruturas mentais antigas, reafirma a autoridade e o poder dos eclesiásticos.

O estudo do contexto político e religioso da primeira metade do século XX também nos esclarece que não há um pensamento hegemônico. Como em um caleidoscópio, a

realidade é o conjunto de forças sociais e de projetos cujas ações e princípios ora se complementam, ora se embatem, ora se dissolvem para o engendramento de novos fenômenos culturais. Exemplo disso diz respeito às disputas políticas locais. João Punaro Bley combinou uma série de estratégias de dominação: a aproximação com as elites capixabas e a Igreja, a perseguição aos seus opositores e a persuasão, através da manipulação da palavra e das imagens na imprensa. Todas essas estratégias combinadas resultaram na construção de um ideário político favorável à centralização do poder no período do Estado Novo.

Naquela conjuntura, os “sentidos” do lugar onde estavam os vitrais estavam preservados e diziam respeito a relações históricas determinadas. Com a mudança na disposição dos vitrais, estes se tornam mero adereço – lembrando que ornamento não era mero adereço para a cultura visual das primeiras décadas do século XX. Pensar os vitrais como

imagens-objeto contribuiu para esse desdobramento: de visibilidade para a sua visualidade, de figuração para a sua dimensão social, daí a relevância em situar sua disposição, seus repertórios estilísticos e as temáticas representadas.

O programa iconográfico dos vitrais não resultou do pensamento de um único interlocutor, ainda que sob a autoridade do bispado e da política restauradora da Igreja. Dois bispos são os responsáveis pela sua constituição: D. Benedito Paula Alves de Souza (1918-1933) e D. Luiz Scortegagna (1933-1951). E se, em 1933, esse programa reflete a influência das famílias Vivacqua e De Biase e Oliveira Santos, em 1937 ele materializa a alteração na composição de forças sociais e políticas na capital através das doações do governo estadual e do próprio Punaro Bley (como inscrito no guarda-vento). A constituição deste programa também envolveu a presença dos fiéis através das associações de devotos, das comissões de arrecadação e nas campanhas para angariar fundos para a catedral.

A representação do êxtase visionário é marcante no programa iconográfico da catedral, com as visões de Santa Margarida Maria Alacoque, Santa Teresinha, São Domingos de Gusmão e Santa Cecília. Tal representação pictórica apresenta o personagem (o santo ou a santa) em um momento de uma ação privilegiada, o êxtase e, além disso, destacaríamos o fato destas imagens serem duplas, afinal representam no plano do real

algo que somente existente no plano subjetivo, dado que são visões329. Isto, a nosso ver, é um pressuposto otimista em relação ao projeto político-religioso implementado através do programa iconográfico, pois também ele é uma representação subjetiva (defendida pela Igreja) da organização do social.

Assim, os vitrais, enquanto representações dão a ver essas outras representações, políticas, sociais, que eles ajudam a materializar e a difundir – assim como a luz que atravessa os vidros coloridos, e se materializa em cores.

329 STOICHITA, 1997, p. 183-184.