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A intolerância em números: denúncias, confissões e processos por sodomia

2 CONSTRUINDO A SODOMIA

3.1 A intolerância em números: denúncias, confissões e processos por sodomia

O século XVII corresponde ao ápice da perseguição aos sodomitas em Portugal. Concluído o processo pelo qual os ânimos coletivos haviam se travestido

de intensa intolerância contra os indivíduos implicados em relações homoeróticas, a Europa viviam, então, o clímax das perseguições. Estas, em Portugal, foram protagonizadas pelo Tribunal do Santo Ofício que detinha a prerrogativa de atuação naquele tipo de repressão127. Ali, a ação inquisitorial era a ponta da lança da

intolerância que havia se estabelecido ao longo do período anterior, ou, pelo menos, a face institucional dela. O processo movido contra Dom Rodrigo da Câmara é um exemplo da força e importância que a Inquisição havia adquirido por aqueles tempos, capaz que era de se voltar contra uma figura tão proeminente da corte, impor-lhe sanções daquela severidade e, ainda mais, negar o pedido pessoal por relaxamento do regime feito pelo próprio rei.

Explorando de forma pioneira (e até hoje não superada) os meandros dos famosos Cadernos do Nefando - os registros inquisitoriais que guardam todos os dados sobre denúncias e confissões sobre o crime de sodomia na Inquisição Portuguesa -, Luiz Mott identificou 4.419 entradas entre os anos de 1587 e 1794. Entre essas datas-limite identificamos exatos 440 processos instituídos por culpas de sodomia nos três tribunais do Santo Ofício português, o que corresponderia a

127 Na verdade, a sodomia em Portugal era um crime de foro misto, pertencente à alçada

tanto da Inquisição, quanto da justiça secular e da eclesiástica. A justiça eclesiástica costumava atuar no vácuo da ação inquisitorial, empreendendo investigações e visitações quando não havia o estabelecimento sistemático do Santo Ofício, como, por exemplo, em algumas regiões do Brasil quando não havia visitações inquisitoriais. Em relação à justiça secular, não há dados disponíveis, o que sugere que ou bem os processos eram queimados juntamente com os réus, como soia acontecer em outros lugares da Europa (o que, no entanto, não explica, por exemplo, a inexistência de processos nos quais os réus não tenham sido imolados), ou bem, quando do estabelecimento do Santo Ofício (e antes dele, como vimos), que a jurisdição sobre os crimes de sodomia tenha passado, mesmo que não oficialmente, para a alçada da Igreja (seja através da ação dos bispos ou da Inquisição). Essa última hipótese é a mais provável, quanto mais levamos em consideração a já citada provisão passada por D. João III em 1553 (e confirmada em 1560) que reconhecia a competência do Santo Ofício naquela matéria.

10% dos indivíduos citados128. Para todo o período coberto pela ação do Santo Ofício

português, logramos arrolar 551 processos por culpas de sodomia nos três principais tribunais129. O tribunal de Lisboa, o principal do Santo Ofício português e que

respondia não só pela Corte e arredores, mas também pelos casos oriundos do ultramar, responde por 94% do total de processos (520 casos), é seguido de longe pelo tribunal de Coimbra, com 5% do total (25 casos) e pelo de Évora, que responde por 1% do universo analisado (6 casos)130.

Em relação à divisão temporal do universo total de casos, as datas-limite são 21 de fevereiro de 1547 e 22 de dezembro de 1796. A primeira se refere aos processos dos três primeiros sodomitas a serem processados pela Inquisição, antes

128 Os números que Mott levantou à época são ligeiramente menores, o que se deve ao fato

de que, pelo pioneirismo de seu trabalho, não estarem todos os documentos catalogados naquele momento, fato para o qual o próprio autor chamou atenção na ocasião. Não se encontram catalogados em sua integridade ainda hoje, como se pode constatar a partir da discrepância dos dados referentes aos tribunais de Évora e Coimbra. Mas o trabalho avançou deveras desde então, mormente no que diz respeito aos documentos oriundos do Tribunal de Lisboa, o maior e mais importante da Inquisição Portuguesa. Cf. MOTT, Luiz.. Pagode português: a subcultura gay nos tempos inquisitoriais. Ciência e Cultura, vol.40 (2):120-139, 1988.

129 Lisboa, Coimbra e Évora. Existiram outros tribunais. Os do Porto, Lamego e Tomar foram

criados em 1541, mas foram extintos mui rapidamente, através do perdão geral de 1547. O tribunal de Goa, criado em 1560 teve existência mais dilatada, sendo abolido em 1774 e restabelecido em 1778 e finalmente extinto em 1812. No entanto, grande parte de sua documentação foi incinerada em duas ocasiões diferentes. Do que restou na documentação referente ao tribunal de Goa, não logramos encontrar nenhum processo contra sodomitas.

130 Luiz Mott, quando de seu estudo pioneiro, chegou a números diferentes, como se disse.

Se os casos de Lisboa estavam subnotificados, como era de se esperar, visto que o trabalho de catalogação e organização dos arquivos não ia concluso, é de se estranhar que os processos de Coimbra e Évora tenham decrescido ao longo do tempo. De todo modo, seguem os dados encontrados por Mott: Lisboa, 315 casos; Coimbra, 30 casos; Évora, 49 casos. Decidimos manter os dados levantados por nós por que não dispomos da base de dados utilizada pelo célebre pesquisador, apenas a síntese dos dados que vai aqui registrada. Cf. MOTT, Luiz.. Pagode português: a subcultura gay nos tempos inquisitoriais. Ciência e Cultura, vol.40 (2):120-139, 1988. ______. Meu menino lindo: cartas de amor de um frade sodomita, Lisboa, 1690. Revista Entretextos, n.4, dezembro 2000, p.95-117

mesmo da sodomia entrar para o rol de crimes da alçada inquisitorial, como já exposto. Os processos de Diogo Dias, Francisco Pires e Fernão Luís foram instaurados tendo como base uma carta de comissão de D. Fernando de Meneses Coutinho e Vasconcelos, arcebispo de Lisboa, datada daquele mesmo dia. O segundo se refere ao processo incompleto de Joaquim de Amorim e Castro e de Luís Tavares dos Santos, ambos naturais da Bahia.

Século Tribunal TOTAL Lisboa Coimbra Évora

XVI 154 8 4 166

XVII 329 15 2 346

XVIII 37 2 0 39

TOTAL 520 25 6 551

Dos 551 casos arrolados, o século XVI responde por 30% do total, contando 166 casos divididos entre 154 do tribunal de Lisboa, 8 do de Coimbra e 4 do tribunal de Évora. O século XVII, por sua vez, responde por 63% do total de processos, dispondo de 346 casos, dos quais 329 oriundos de Lisboa, 15 do tribunal de Coimbra e 2 do de Évora. Finalmente, o século XVIII, com 7% do total de casos, conta com 39 processos divididos entre os 37 do tribunal lisboeta e 2 do tribunal coimbrão. Resta claro, portanto, conforme já haviam assinalado Luiz Mott e Ronaldo Vainfas, que o século XVII se apresenta como o ponto crítico da intolerância contra a sodomia em Portugal. Dada a falta de dados nesse sentido, contudo, reservamo-nos a ousadia de discordar brevemente do mestre paulista quanto à natureza do endurecimento das perseguições. Tendemos a não creditar tal fenômeno à “maior visibilidade e talvez descuido dos fanchonos”, que no século XVII teriam se tornado “mais ousados, provocando um endurecimento da repressão eclesiástica, temerosa

de que o reino e seus domínios no ultramar se convertessem em novas Sodomas131”.

Antes, nos parece mais provável localizar a natureza desse recrudescimento nos “ditames do Concílio de Trento” e na “política global da Reforma Católica”, que haveriam se espalhado pela Europa a partir do século XVI, “embora a sistemática aplicação de suas decisões e estratégias seja típica do século XVII132”, conforme

afirmou Ronaldo Vainfas. Colabora para a fundamentação dessa hipótese o processo que marca a mudança das atitudes populares e eclesiásticas em relação aos indivíduos envolvidos em relações homossexuais e a institucionalização dessa intolerância pelos poderes religiosos e seculares que atrás expresso fica. Além disso, a pouca variação entre os dados relativos à condição social dos acusados, penas recebidas e demais aspectos dos processos apreciados também referendam o sobredito. O crescente furor persecutório que se nos apresenta se estendendo de meados do século XVI, arrefece nem bem entrado ainda o século XVIII, momento em que a afirmação da Igreja já havia se consolidado, graças à ação enérgica do catecismo sistematizado e cada vez mais institucionalizado. Com a perda de fôlego da Reforma, perdem o fôlego também as perseguições aos sodomitas, ou melhor, mudam essas de cores, de tipo, de modos. A ação inquisitorial, no entanto, arrefece. Mesmo antes das investidas do poder civil contra o tribunal que se darão na segunda metade do século XVIII, já não se testemunha o mesmo furor persecutório experimentado outrora, tendendo este a diminuir a partir das décadas finais do

131 MOTT, Luiz. Op. cit. p.99.

132 VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio

século XVII. Talvez reflexo de uma cristandade que havia se acreditado sitiada e que agora de desmobilizava133.

3.2 Os desgraçados pecadores: sentenças e sociologia dos sodomitas