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Feitos por fogo em pó: sodomia e justiça secular em Portugal

2 CONSTRUINDO A SODOMIA

2.4 Feitos por fogo em pó: sodomia e justiça secular em Portugal

Como não poderia deixar de ser, Portugal não escapou da crescente de intolerância que vinha se delineando por toda a Europa do período. Ali, como na Espanha e algures, também abundaram documentos civis e eclesiásticos condenatórios às praticas homossexuais. Na Lusitânia a investida jurídica contra a sodomia é inaugurada em meados do século XV com a promulgação das Ordenações Afonsinas em 1448. O código, como de praxe, também prescrevia a pena de morte para os inculpados naquele crime. Além disso, também evocava a autoridade da narrativa bíblica para fazê-lo, conforme o discurso habitual que, àquela altura, já se encontrava consolidado. Sobre “os que cometem o pecado de sodomia” a primeira compilação jurídico-legislativa portuguesa vai preconizar:

Sobre todos os pecados bem parece ser o mais torpe, sujo e desonesto o pecado da Sodomia, e não é achado outro tão aborrecido ante Deus e o mundo como ele; porque não tão somente por ele é feita ofensa ao Criador da natureza, que é Deus, mas ainda se pode dizer que toda a natura criada, assim celestial como humana, é grandemente ofendida. E segundo disseram os naturais, somente falando os homens nesse pecado sem outro algum ato, tão grande é seu aborrecimento, que o ar não o pode

sofrer, mas naturalmente é corrompido, e perde sua natural virtude. E ainda se lê que por esse pecado lançou Deus o dilúvio sobre a terra quando mandou a Noé fazer uma Arca em que escapasse ele e toda sua geração, porque reformou o mundo de novo; e por esse pecado soverteu as cidades de Sodoma e Gomorra; e por esse pecado foi destruída a Ordem do Templo por toda a Cristandade em um dia. E porque segundo a qualidade do pecado assim deve gravemente ser punido: porem mandamos por lei geral que todo homem que tal pecado fizer, por qualquer guisa que se possa, seja queimado e feito por fogo em pó, por tal que já nunca de seu corpo e sepultura possa ser ouvida memória.111

Apesar de nunca terem sido impressas ao longo do período em que vigoraram, as Ordenações Afonsinas se destacam não somente por fazer eco às concepções e fórmulas jurídicas e discursivas em voga, mas também por inaugurarem um modelo que seria seguido pelas demais ordenações que a sucederam. Deste modo, as Ordenações Manuelinas, outorgadas no início do século XVI, tratarão de manter a pena de morte na fogueira para os réus condenados por culpas de sodomia, mas, indo mais além, cuidarão de sistematizar melhor a legislação e endurecer as penas.

A partir de então, o crime de sodomia será considerado equivalente ao crime de lesa-majestade e, como tal, sua condenação recairá também por sobre a descendência do condenado, tornando seus “filhos e descendentes112” “inábeis e

infames”. Outra inovação do código manuelino é o oferecimento de recompensas para aqueles que denunciarem alguém envolvido em práticas sodomíticas:

Nos praz que qualquer pessoa fizer certo que alguém é culpado no tal pecado, haja o terço de sua fazenda, ficando em sua escolha o querer dizer a nós, ou a nosso Corregedor da Corte, em segredo ou em público, qual mais quiser, porque em qualquer destas maneiras em que o faça, fazendo-o assim certo, haverá a terça parte da fazenda do culpado.

111 Ordenações Afonsinas. Livro V, Título XVII. Disponível em

<http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/afonsinas/l5pg53.htm>. Acesso em 01 fev. 2015.

112 Ordenações Manuelinas. Livro V, Título XII. Disponível em

O sigilo é garantido para o denunciante mesmo quando do levantamento dos bens para a avaliação da terça parte da riqueza do acusado. Caso a fazenda deste seja insignificante, a Coroa garante o valor de cinquenta cruzados para o denunciante. Caso o denunciante seja ele mesmo culpado do crime de sodomia e, através de seu depoimento, seu cúmplice seja preso, a Coroa há de perdoar “toda pena cível e crime contido nessa Ordenação”. Nesse mesmo sentido, são dispostas penas para aqueles que, sabendo da existência de culpados daquele crime, não o denunciarem às autoridades competentes. Nesses casos, a Ordenações impõem que o dissimulado “perca toda sua fazenda e mais, seja degredado para sempre fora de Nossos Reinos e Senhorios”. Trata-se, certamente, de um acirramento do ambiente delatório que tal legislação intentava instituir, ou, ainda, como bem observou Ronaldo Vainfas, um “possível sinal de que, sem incentivos, a engrenagem punitiva ficaria sem réus113”. De todo modo, essas disposições do

alvorecer do século XVI também serão marcadas por três outras inovações significativas. A primeira delas é a extensão das penas previstas também para as mulheres que “esse pecado umas com as outras cometem”, o que iguala a sodomia, naquele contexto, ao sexo homossexual. A segunda é a determinação de penas similares para aqueles indivíduos que porventura viessem a “dormir carnalmente com alguma alimária”, possíveis ecos da noção mais ampla de “crimes contra a natureza” que reunia em si a sodomia e a bestialidade, conforme o pensamento tomista. A diferença era que, para estes últimos, não havia punições de nenhuma

ordem sobre sua descendência. Finalmente, as Ordenações Manuelinas também prescrevem penas para homens que se travestissem de mulheres e vice-versa:

Defendemos que nenhum homem se vista nem ande em trajos de mulher, nem mulher em trajos de homem. (...) e quem o contrário de cada uma das ditas coisas fizer, se for peão que seja açoitado publicamente, e se for escudeiro, e daí para cima, será degredado dois anos para Além, e mais cada um a que cada uma das ditas coisas for provada, pagará dois mil reais para quem o acusar114.

A mais longeva das compilações jurídico-legislativas portuguesas, as Ordenações Filipinas, promulgadas em 1603, trataram de manter as linhas gerais das prescrições contidas no ordenamento anterior, atualizando-as, entretanto, sempre que possível. Naquilo que diz respeito especificamente às culpas de sodomia, foram mantidas as penas previstas no código anterior, ou seja, tal crime era equiparado ao crime de lesa-majestade e seus praticantes, quando culpados, sentenciados à morte na fogueira, sequestro de bens e inaptidão e infâmia para sua descendência. As mulheres também permaneciam contempladas e os culpados pela perpetração de bestialidade ainda seguiam sujeitos à pena máxima da morte na fogueira, embora, como dantes, a infâmia e a as sanções por inábeis não recaíssem sobre seus descendentes. Também permaneciam em vigor os castigos para homens que se travestissem de mulher e vice-versa: o açoite público para a arraia-miúda e degredo por dois anos, para a África no caso dos homens, para Castro Marim no caso das mulheres, além do pagamento de dois mil réis para o denunciante. Os estímulos para as denúncias não só foram mantidos nas ordenações do século XVII, como foram ampliados: quem denunciasse tinha direito à metade dos bens do réu, caso este não possuísse bens em seu nome, a própria Coroa garantiria a quantia de

114 Ordenações Manuelinas. Livro V, Título XXXI. Disponível em

cem cruzados para o denunciante em caso de o réu ser efetivamente preso; aqueles que, sabendo de atos de natureza sodomítica perpetrados por outrem, calassem, obstruindo, portanto o trabalho da justiça teriam seus bens confiscados e seriam degredados para sempre para fora do reino; os sodomitas que procurassem as autoridades para confessarem e denunciassem seus cúmplices também seriam agraciados com a indulgência da Coroa.

Apesar de manter as linhas gerais das formulações contidas nas Ordenações Manuelinas, as Ordenações Filipinas representam um agravamento das perseguições aos praticantes de atos homossexuais ou, pelo menos, uma ampliação da gama de dispositivos jurídicos erigidos para o acossamento desses. Pela primeira vez, atos homossexuais não identificados ao coito propriamente dito são alvo de legislação específica. Os códigos de 1603 determinam os procedimentos e as penas para os indivíduos acusados de cometerem o crime de molície115 com parceiros do

mesmo sexo, segundo o expresso, essas “serão castigadas gravemente com o degredo de galés e outras penas extraordinárias, segundo o modo e perseverança do pecado116”. Além disso, pela primeira vez aparecem descritos os procedimentos

de aplicação de tortura dos acusados pelo crime de sodomia. A tortura, ou tormento, é descrita nos seguintes termos:

115 Molície, “fazer as sacanas”, “jogar as punhetas” eram todas expressões para designar a

masturbação, recíproca ou solitária, o mesmo que onaninismo. O uso da palavra molície (originalmente “macio”, “brando”, “resiliente”) como sinônimo de masturbação remonta, pelo menos, ao século XIII e à Suma Teológica de Tomás de Aquino (Cf. nota 36). No século XVIII, o dicionarista brasileiro António de Moraes Silva definirá o “pecado da molície” como “pecado oposto à castidade, que consiste na masturbação de homem a homem”. SILVA, António de Moraes. Diccionario da língua portuguesa, vol.2.

116 Ordenações Filipinas. Livro V, Título XIII. Disponível em

E em todo caso em que houver culpados destes pecados ou tais indícios que, conforme o Direito, bastem para tormento, será o culpado metido a tormento e perguntado pelos companheiros e por outras quaisquer pessoas que o dito pecado cometeram ou sabem dele117.

Como se vê, as Ordenações Filipinas vão configurar uma ampliação dos dispositivos persecutórios, seja pelo aumento da coação para que se denunciassem ou seja pelo endurecimento no tratamento dos próprios réus, além, é claro, do alargamento do rol de práticas interditas. Tendo sido confirmado como o elemento norteador do direito português mesmo depois da Restauração, o código filipino há de perdurar até o século XIX. Portanto, consideramos que, apesar da existência de leis extravagantes e regimentos que tangenciam o tema, o ordenamento filipino representou a cristalização do modo pelo qual a coroa portuguesa concebeu e dedicou-se à questão do mui torpe e nefando pecado da sodomia.

2.5 Justiça e misericórdia: o nefando crime da sodomia nas garras da