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Os contextos amazônico e comunicacional

2.1.1 A “invenção” da Amazônia

De início, é preciso considerar, com Aragón (2007), que o que chamamos hoje de Amazônia é uma invenção dos colonizadores europeus que aqui aportaram desde o século XV, sempre querendo olhar para o território sem querer vê-lo de fato, como ainda hoje parece acontecer em outras medidas.

Desde quando Gaspar de Carvajal, na expedição de Francisco de Orellana, pensou encontrado as amazonas, mulheres guerreiras e temidas da mitologia grega, a Amazônia foi alvo de mitos e lendas, que tem influenciado a sua própria concepção e desenvolvimento. A Amazônia representa um processo de constante invenção e reinvenção, seja para justificar sua exploração, seja para arguir sobre sua preservação e conservação.

Nesse debate, a Amazônia ressurge, hoje, na ciência e na política em todos os níveis, desde locais remotos até palcos mundiais. A Amazônia tem, portanto, múltiplos significados, sem existir um conceito abrangente o suficiente para abarcar todos os significados num único conceito. O centralismo ambiental que domina, hoje, os debates sobre a região, por exemplo, opaca as discussões sobre o acelerado processo de urbanização pelo que passa a região atualmente (ARAGÓN, 2007, p. 03)

A formação mítica da Amazônia, a dificuldade de defini-la e a centralidade da questão ambiental em detrimento da experiência humana vivida na região, também são apontados por Dutra (2009) ao analisar os discursos que são reiterados sobre a região desde os primeiros invasores europeus até o presente por intermédio da mídia.

A Amazônia, espaço histórico sobre o qual se produziram os mais diversos tipos de sentidos, torna-se hoje objeto de intensa disputa travada pela miríade de atores que buscam, de diferentes posições, dar a sua definição, como que a última palavra sobre o que consideram o real significado dessa região.

Distinta entre outros lugares, a Amazônia, como enunciado catalisador de múltiplos discursos, mantém e realça fragmentos daqueles sentidos que podemos considerar como fundadores dos relatos das descobertas, produtos e produtores de uma polarização instituída por práticas discursivas que estabelecem uma lógica dicotômica que dá visibilidade aos recursos naturais e, no mesmo processo, promove a invisibilidade humana (DUTRA, 2009, p. 15).

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O posicionamento desses dois autores é similar ao considerar a criação de uma ideia de Amazônia desde os tempos da colonização europeia e que despreza a experiência cultural vivida pelos nativos da região, bem como a permanência dessa visão ao longo dos séculos, sendo reiterados pela mídia (DUTRA, 2009). Mas o que podemos perceber mais nitidamente em Aragón (2007) é a afirmação de que a Amazônia, em si, não existe enquanto conceito e, acrescentamos, muito menos de forma homogênea em suas experiências culturais. Não há apenas uma Amazônia, seja histórica, seja culturalmente. E isso também é evidente quando tratamos, especificamente, do estado do Pará.

O que os europeus tentaram definir e homogeneizar, imbuídos do imaginário eurocêntrico, chamando estas terras de Amazônia, revela-se ao longo do tempo como espaço de experiências culturais distintas. Para além da biodiversidade, característica mais apontada para quem olha a Amazônia de fora, e até de dentro mesmo, para Maués (1999, p. 57) outra “grande riqueza da Amazônia é a sócio-diversidade” e “nessa sócio- diversidade, antes de tudo está o índio, ou melhor, os povos indígenas. Calcula-se que, na época em que chegaram os portugueses na América, havia, só na Amazônia, entre dois e quatro milhões de índios” (MAUÉS, 1999, p. 59).

Para o nosso objetivo nesse capítulo, aliamos a noção de experiência cultural de Rodrigues (1999) à dinâmica de ocupação da Amazônia em alguns períodos históricos. Nesse sentido, Becker (2009) nos oferece, a partir de uma perspectiva da Geografia Política, um resumo dos períodos históricos que constituem as transformações ocorridas na Amazônia, no contexto da globalização. Vemos nessa divisão as pistas da diversidade de experiências culturais que são vivenciadas na região, por possibilitarem aos sujeitos envolvidos maneiras diferentes de lidar com a terra, a floresta, os rios e as culturas amazônicas aqui já sedimentadas.

A autora distingue, assim, três grandes períodos da formação da região:

A Formação Territorial (1616-1930)  Apropriação do Território (1616-1777)  Delineamento da Amazônia (1850-1899)  Definição dos Limites (1899-1930) Planejamento Regional (1930-1985)

 Início do Planejamento (1930-1966)  A Produção do Espaço Estatal (1966-1985) A Incógnita do Heartland (1985-...)

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 A Fronteira Sócioambiental (1985-1996)

 Tendências Atuais (1966-...)” (BECKER, 2009, p. 23)

O primeiro período, para Becker, representa a ocupação do espaço amazônico pelos portugueses, sua base econômica voltada para as “drogas do sertão”18. Para a

autora, “O delineamento do que é hoje a Amazônia se fez somente entre 1850 e 1899, sob a preocupação imperial com a internacionalização da navegação do grande rio, e o „boom‟ da borracha” (BECKER, 2009, p. 24). Por fim, a formação territorial da região teria se dado com o destaque do papel da diplomacia nas relações com outros países e o controle interno do território feito pelo Exército.

Em seguida, Becker (2009) aponta o segundo e terceiro quartel do século XX como o período em que se acelerou o processo de ocupação da Amazônia, a partir da constituição do aparelho estatal com sua intervenção nas questões econômicas e territoriais.

A fase inicial do planejamento regional (1930-1966) corresponde à implantação do Estado Novo por Getúlio Vargas, e foi muito mais discursiva do que ativa. A “Marcha para Oeste” e a criação da Fundação Brasil Central (1944), a inserção de um Programa de Desenvolvimento para a Amazônia na constituição de 1946 e a delimitação oficial da região por critérios científicos formam marcos dessa fase, seguidos pela criação da Superintendência de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), mas apenas revelam uma preocupação regional sem ações correspondentes. Somente no governo de Juscelino Kubitschek, calcado na “Energia e Transporte” e em “Cinquenta Anos em Cinco”, ações efetivas afetaram a região, através da implantação das rodovias Belém-Brasília e Brasília-Acre, duas grandes pinças contornando a fímbria da floresta. A partir daí, acentuou-se a migração que já se efetuava em direção à Amazônia, crescendo a população regional de 1 para 5 milhões entre 1950 e 1960, e de modo acelerado a partir de então (BECKER, 2009, p. 25) Mas é no período da Ditadura Militar, principalmente a partir de 1966, que as intervenções na região são mais efetivas, como parte de um “[...] projeto político para a modernização acelerada da sociedade e do território nacionais” (BECKER, 2009, p. 26). De acordo com Becker (2009), a ocupação da Amazônia nesse período seria uma forma de contornar outras questões, como as tensões sociais com produtores do Nordeste e do Sudeste, devido a modernização de algumas atividades que acabou por desempregá-los. Além disso, havia a preocupação com que a região se tornasse foco de resistências políticas ou revolucionárias, como ocorreu com a Guerrilha do Araguaia, ocorrida no início dos anos 1970, e o interesse internacional pela região. É nesse contexto que se

18 As drogas do sertão eram especiarias como o cacau, cravo, guaraná, urucum, poaia e baunilha, encontrados em

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cria a Zona Franca de Manaus, “um enclave industrial em meio a economia extrativista” (idem).

Entre 1968 e 1974, o Estado brasileiro implantou tal tipo de malha na Amazônia, visando completar a apropriação física e controlar o território (Becker, 1990). Redes de circulação rodoviária, de telecomunicações, urbana, etc., subsídios ao fluxo de capital através de incentivos fiscais e crédito a baixos juros, indução de fluxos migratórios para povoamento e formação de um mercado de trabalho regional, inclusive com projetos de colonização, e superposição de territórios federais sobre os estaduais, compuseram a malha tecno-política (BECKER, 2009, p. 26-27).

Para Becker (2009), o ano de 1985 marcaria a oposição de dois processos na região: o esgotamento do nacional desenvolvimentismo, representado pelo Projeto Calha Norte, o último implantado na região a época, e a organização de movimentos internos de reivindicação e resistência, a partir da criação do Conselho Nacional dos Seringueiros. Além disso, esse período é marcado pelas pressões nacionais e internacionais de cunho socioambiental, para se gerar um vetor tecno-ecológico. A partir de então, várias formas de organizações alternativas passam a atuar na região, como ONGs, organizações religiosas, partidos políticos etc. Este vetor também configura-se no interesse de organizações internacionais pela preservação da floresta, como o G719 e o Banco Mundial, bem como o próprio Estado brasileiro, com a criação do Ministério do Meio Ambiente, do Recursos Hídricos e da Amazônia Legal.

A reflexão da autora sobre a ocupação da Amazônia, mesmo que apresentado aqui de forma sintética e a partir de uma visão geo-política, serve para nos indicar como a constituição da região é marcada em diversos momentos pela intervenção nacional, no sentido de ocupar o território desprezando as experiências locais. Se pensamos os processos de hibridações a partir dos quais se configuram as experiências culturais na região, principalmente no Estado do Pará, a compreensão desses períodos é importante na medida em que indicam diferentes maneiras de experiência na região, principalmente para os migrantes que vieram para cá. Como dissemos antes, essa é uma das formas de experiência cultural com e na Amazônia.

Para Maués (1999), assim, é necessário pensar a Amazônia como uma região de fronteira, que passou por vários processos de colonização e dizimação dos seus povos, saberes e culturas.

19 Grupo dos sete países mais industrializados do mundo, formado por Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha,

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Historicamente, esse processo transcorreu durante a colonização portuguesa da região e prossegue, embora com outra roupagem, ao longo do período do Império e da República. Para entendê-lo, é necessário pensar na Amazônia como região de fronteira, sujeita a um longo processo de colonização e de incorporação/integração, primeiramente como colônia do Estado Português e, mais tarde, como parte integrante do estado Brasileiro (MAUÉS, 1999, p. 61) Esse entendimento nos interessa para pensarmos o contexto, pois, essas questões estão diretamente ligadas à variadas questões culturais na região, no Estado do Pará e, especificamente, no município de Santarém Novo, como veremos mais adiante. Voltemos à primeira forma de experiência com a região, partindo da colonização portuguesa da Amazônia.