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3. CAPÍTULO II Condições das águas a partir das práticas de conhecimento

3.3. A (ir)racionalidade científica em contexto de crime-desastre

As formas de nomear o rompimento da barragem e seus desdobramentos movimentam as leituras sobre o acontecimento. Assim, acompanhamos as discussões sobre essa dinâmica em eventos públicos no ES, entendidos enquanto situações sociais performativas (VAN VELSEN, 1987; DAWSEY, 2007), em que eram acionados os

22 Golder é uma empresa canadense de consultoria (Disponível em: https://www.golder.com/. Último

acesso em: 25/02/2018) e foi contrata pela Fundação Renova para realizar parte dos estudos sobre o crime- desastre. O relatório em questão foi um dos relatórios analisados para esta dissertação a seguir, onde apresentaremos os relatórios caracterizados como materiais consolidados.

termos crime e acidente, bem como existiam outras divergências sobre a temática. Parte desse acompanhamento foi apresentado em um texto na Reunião Brasileira de Antropologia da Ciência e da Tecnologia, realizado na USP, em 2017, e foi o primeiro modo de sistematizar as implicações sobre as formas de se acionar o desastre (CREADO et al., 2017).

Dentre as nomeações em disputa podemos encontrar crime e acidente, e no período de divulgação inicial do crime-desastre na mídia encontramos algumas noções de desastre ambiental ligado à possibilidade de ser o desdobramento de um tremor de terra23. As nomeações implicam em outros desdobramentos convencionalizados: quando

acionada a ideia de crime, passava-se a discutir alguns aspectos indicando o crime ambiental, o crime socioambiental, e uma discussão mais difícil geralmente estava para ser feita, devido ao pouco acesso ao atendimento a essa reivindicação, em que, usualmente, o crime é entendido enquanto tal quando se trata de um acidente de trabalho, por exemplo. Isso comumente levava à redução do número dos afetados (humanos e mais- do-que-humanos), tendo em vista que as vítimas fatais eram principalmente trabalhadores terceirizados da empresa responsável.

Outros elementos que estavam sendo disputados, e que fazem diferença nas implicações legais, era quando se falava em impactos ou danos. O termo impacto retoma as dimensões indicadas sobre as impressões e formas de agência ligadas às demandas ambientais, sendo um termo ligado à mitigação e ao ajustamento de condutas em empreendimentos de grandes empresas, e a crítica ao seu uso é de que não seria somente esse aspecto que concentraria o espectro do acontecido na bacia territorial do rio Doce. Na mesma linha de discussão, os danos também estão ligados às implicações ambientais, mas ainda pressupõem demandas que podem ser qualificadas, no sentido de que os danos podem ser calculados em uma tentativa de recompor as ausências. Assim, para além do tema envolver a discussão com as chamadas ciências naturais, ou, como visto acima, ciências do mar, o debate envolve também os profissionais do mundo do Direito (CREADO et al., 2017).

Os termos aqui apontados foram sendo colocados nos espaços em que participamos e que eram preponderantemente acadêmicos, mas apareceram também em oportunidades de trabalho de campo e nos documentos analisados. Nos últimos, surgiram ainda as imagens da tragédia e do desastre em uma perspectiva próxima à da ideia de que

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Vide por exemplo a notícia veiculada em 06 de novembro de 2015, no link: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/11/151105_tremor_barragem_lk.

foi alguma implicação da natureza. Portanto, desde a primeira tentativa de acompanhar as formas de acionar diferentes nomeações, de modo sistematizado, observamos e buscamos uma forma de entender isso também na produção de demandas acadêmicas e em como eram postos e apresentados por nossos interlocutores.

As reivindicações mais conduzidas pelos afetados estão atreladas às noções de crime, mas devido a complexidade das falas que seguem a proposta de acionar o crime enquanto forma de nomear e classificar, buscamos inserir o debate no meio acadêmico, de modo a circunscreve-lo, e passamos a buscar pelas discussões feitas dentro da Sociologia dos Desastres. Dessa maneira, a ideia de crime permanece enquanto categoria acionada pelos afetados, reconhecendo-se também a discussão sobre desastre enquanto recurso de denominação mais amplo para refletir sobre as dimensões de um crime que se desdobra ao longo do tempo. O termo desastre não está passível de qualitativos, como posto por Norma Valencio (2017), pois em um desastre de grandes proporções não caberia dizer se é natural ou tecnológico, mas um desastre enquanto categoria que compreende elementos que antecedem e de algum modo narram sobre a possibilidade do desastre, e que tem uma continuidade posta em vários desdobramentos que são observados com o tempo. A noção de tempo também nos remonta às discussões em Veena Das (1995), sobre eventos críticos, em que violências, ausências e formas de se falar do evento estão em curso e são individuais e coletivas, no sentido de que a articulação do evento não está presente somente em um tempo e em falas circunscritas, mas também está presente no silenciamento sobre ele e nas incertezas sobre o futuro.

A ideia de crime, talvez, seja a mais articulada, no sentido de permitir as ações civis públicas, as mobilizações e as atuações em audiências e a mobilização de todo o repertório tocado judicialmente24. Suas implicações são possivelmente mais efetivas na

esfera jurídica, apesar de trazer a questão da espera e da demora, e está posta nos processos e demandas jurídicas em diversas ações judiciais que ocorreram durante os dois anos após o rompimento da barragem de Fundão, MG. Dessas ações, levantamos como exemplo a relativa à distribuição dos auxílios emergenciais e os trabalhos de assistência técnica realizados em Mariana, MG. Mas, como reflexão, destacamos que a atuação nessa esfera traz falhas e ausências, no sentido de essas demandas foram realizadas a partir de acordos, que são negados pelos afetados, por não terem contado com a participação dos mesmos na sua construção; isso culminou em uma série de implicações, como a criação

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Para a noção de repertório utilizada para entender a articulação de ações judiciais ambientalistas no ES, ver Losekann (2013).

da Fundação Renova e a forma com que a empresa passou a gerenciar o desastre que ela mesma ocasionou. Não nos cabe aqui uma revisão do que foi realizado, estamos apenas apontando, a partir das falas ouvidas nos eventos e nos trabalhos de campo, como as consequências do recurso à perspectiva de crime podem escapar de seus objetivos iniciais. Isso também pode dar-se quando se apresenta apenas a nomeação de desastre. A partir dessas colocações, passaremos a levantar as ideias que foram apresentadas nas pesquisas que tomaram o desastre enquanto categoria de trabalho.

A ideia de evento crítico parecia a mais completa categoria de análise (DAS, 1995) no começo de nossas análises, mas recuperamos, ao longo do tempo, o termo desastre devido o termo evento ser assumido por órgãos como, por exemplo, a Agência Nacional das Águas (ANA), documento “Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil, Informe 2015 - Encarte Especial sobre a Bacia do Rio Doce Rompimento da Barragem em Mariana/MG”, em que apontam enquanto exercício de funções: “Estudos para concepção de um sistema de previsão de eventos críticos na bacia do rio Doce e de um sistema de intervenções estruturais e não estruturais para mitigação de efeitos de cheias e enfrentamento de desastres” (ANA, 2016, p. 48, grifo meu), ou até mesmo constar no estatuto de criação da Fundação Renova (CREADO e HELMREICH, 2017). A revisão foi necessária, pois entendemos que faz parte deste trabalho refletir sobre como são agenciadas as nominações, que são também recursos simbólicos.