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3. A “nova urbanidade” e a formação das identidades

3.2 O que é a “nova urbanidade”?

3.2.1. A “lógica do automóvel”

As vias públicas se tornaram, exclusivamente, vias de circulação dos automóveis, que cumprem com a função apenas de passagem. Os automóveis levam as pessoas, isoladamente, de um lugar específico para outro. Isso, em se tratando de médias e grandes cidades, dará origem aos tão noticiados problemas de tráfego e congestionamento, caracterizando o que já mencionei anteriormente como a “lógica do automóvel”. O uso dos automóveis particulares na metrópole baiana é

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É interessante perceber que o próprio nome desses objetos técnicos faz referência ao indivíduo “EU” (no inglês “I” – iPhone, iPad, etc.), ressaltando o caráter que prega o isolamento e o individualismo presentes na modernidade com a difusão desses objetos.

quase regra para aqueles que têm condições de ter um carro, que dessa maneira passam a se trancar em suas “carapaças privativas” (GOMES, 2006). A cidade passa, em virtude disso, a dar o privilégio cada vez maior para o espaço de circulação dos automóveis particulares em detrimento de outros usos possíveis e coletivos, e isso é notado nas práticas da administração tanto municipal, quanto estadual. A rua é destruída, segundo Caldeira (2003), como espaço para a vida pública. “O planejamento modernista também minou a diversidade urbana e a possibilidade de coexistência de diferenças” (CALDEIRA, 2003, p. 311).

O uso cada vez mais frequente dos automóveis particulares nas grandes cidades em detrimento do transporte público tem sua origem na tendência ao individualismo e do medo tal como abordado por Tuan (2005). O medo da violência (principalmente), dos ruídos, das aglomerações, da multidão, do fogo e do contato e do convívio social e da interação com os mais pobres. Isso caracteriza uma relação catastrófica e esquizofrênica (para não utilizar outros termos) que se apresenta nas grandes cidades atualmente que é a lógica do automóvel:

As carruagens aparecem nas cidades europeias no século XVI. Umas poucas vielas foram alargadas e endireitadas para facilitar sua passagem, o que teve como efeito benéfico a melhoria da circulação e permitiu a entrada de mais luz e ar. Porém, elas logo acrescentaram às ruas seu próprio tipo de caos e perigo. Pela primeira vez, nas ruas, os ricos foram separados dos pobres. Os fregueses das carruagens desfrutavam de privacidade e segurança, enquanto seus veículos colocavam em perigo os pedestres (TUAN, 2005, p. 243).

Nessa lógica do automóvel, os pedestres e aqueles que utilizam do transporte público (que em países como o Brasil é de péssima qualidade) são postos em segundo plano e os donos dos automóveis se sentem donos de si e do mundo por estarem isolados dentro de suas cápsulas velozes sobre rodas, protegidos do exterior com películas nos vidros e do calor com os seus condicionadores de ar. O tipo de espaço que ela cria promove uma desigualdade cada vez mais explícita.

Como as pessoas de classe média e alta circulam em seus próprios carros e os outros, ou andam a pé, ou utilizam o transporte público, existe pouco contato público entre as pessoas de classes sociais diferentes. Não há espaços comuns que os ponham juntos (CALDEIRA, 2003, p. 315).

Exemplo de tamanha esquizofrenia e inversões da lógica de uma sociedade pautada na cidadania é o mecanismo de funcionamento dos semáforos. Em intensos

cruzamentos de vias de circulação, a prioridade é dada quase que integralmente aos veículos, quaisquer que sejam as vias em que estejam, restando ao pedestre esperar por cerca de cinco minutos (quando não mais do que isso) para ter que atravessar todas as vias desses intensos cruzamentos em cerca de quinze segundos (quando não menos do que isso).

A lógica do automóvel promove a segregação escancarada nas grandes cidades. Promove o isolamento e o individualismo, pois apenas com uma observação cuidadosa, constata-se que a taxa de ocupação dos veículos muito dificilmente é igual, ou superior a dois ocupantes. A lógica do automóvel se apresenta ainda como característica marcante da “nova urbanidade” e um recuo da cidadania, e, por isso, como um entrave à busca pelas relações sociais harmônicas e solidárias na metrópole contemporânea, tais como os encontros de sociabilidade promovidos por agregados identitários.

Ainda lembrando Caldeira (2003), que faz referências ao trânsito como um dos mais fortes indicadores de qualidade da vida pública, a autora enfatiza que o trânsito é um dos piores aspectos da vida metropolitana, considerando o desrespeito às leis e aos direitos das outras pessoas como sendo a norma. “Há pouca civilidade, já que uma parte significativa da população age como se as leis de trânsito fossem obstáculos à livre movimentação dos indivíduos e reage desrespeitando-as” (CALDEIRA, 2003, p. 321).

Retorno ao filósofo francês Henri Lefebvre (1991), que aponta o automóvel como o principal subsistema que erige da sociedade dita de consumo na contemporaneidade, acarretando nos problemas de recuo da cidadania, como emuralhamento da vida social. Tomo a liberdade de transcrever essa longa citação da obra de Lefebvre por acreditar que esse trecho é extremamente esclarecedor sobre toda a “contra-lógica” que está por trás da “lógica do automóvel”:

O automóvel é o Objeto-Rei, a Coisa-Piloto. Esse Objeto por excelência rege múltiplos comportamentos em muitos domínios, da economia ao discurso. O trânsito entra no meio das funções sociais e se classifica em primeiro lugar, o que resulta na prioridade dos estacionamentos, das vias de acesso, do sistema viário adequado. [...] Concebe-se o espaço de acordo com as pressões do automóvel. O Circular substitui o Habitar. É verdade que, para muitas pessoas, o carro é um pedaço de sua “moradia”, até mesmo o fragmento essencial. No trânsito automobilístico, as pessoas e as coisas se acumulam, se misturam sem se encontrar. É um caso surpreendente de simultaneidade sem troca, ficando cada elemento na sua caixa, cada um bem fechado na sua carapaça. Isso contribui também para deteriorar a vida urbana e para criar a “psicologia”, ou melhor, a psicose do

motorista. [...] De fato e na verdade não é apenas a sociedade que o automóvel conquista e “estrutura”, mas também o cotidiano. O Automóvel impõe sua lei ao cotidiano, contribui fortemente para consolidá-lo, para fixá- lo no seu plano: para planificá-lo. O cotidiano, em larga proporção hoje em dia, é ruído dos motores, seu uso “racional”, as exigências da produção e da distribuição dos carros etc. (LEFEBVRE, 1991, p. 110 – 111).

Por fim, Lefebvre ainda lembra que o automóvel cria as hierarquias e aprofunda a desigualdade na metrópole, pois se revela todo um sistema de signos que se esconde por trás da “lógica do automóvel”. “A hierarquização é ao mesmo tempo dita e significada, suportada e agravada pelos simbolismos. O carro é símbolo de posição social e prestígio” (LEFEBVRE, 1991, p. 112). A existência do automóvel enquanto um instrumento de circulação e utensílio de transporte é, portanto, apenas uma porção das suas funcionalidades.