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3. A “nova urbanidade” e a formação das identidades

3.3 Marcas da “nova urbanidade” em Salvador

Os trabalhos que utilizei para me basear sobre a discussão da nova urbanidade e do recuo da cidadania foram realizados sobre as cidades de São Paulo (CARLOS, 1997), (CALDEIRA, 2003); Rio de Janeiro (GOMES, 2006) e Los Angeles (DAVIS, 1993), (CALDEIRA, 2003). Não encontrei nenhum estudo específico sobre as marcas desses processos na Salvador contemporânea. No entanto, através de minhas vivências na cidade e com a pesquisa bibliográfica em outros trabalhos menos específicos, mas que se relacionam com a temática, concluo que a cidade de Salvador apresenta as mesmas características oriundas desses processos que foram apontados nessas outras cidades, salvo as especificidades locais.

Para Henri Lefebvre, não é necessário um exame muito atento das cidades modernas, das periferias urbanas e das novas construções para constatar que tudo se parece. [...] O repetitivo substitui a unicidade, o factual e o sofisticado prevaleceram sobre o espontâneo e o natural, o produto sobre a produção. Esses espaços repetitivos resultam de gestos e atitudes também repetitivos, transformando os espaços urbanos em produtos homogêneos, que podem ser vendidos ou comprados. Não há nenhuma diferença entre eles, a não ser a quantidade de dinheiro neles empregada. Reina a repetição e a quantificação (SERPA, 2007, p. 19).

De uma forma geral, podemos considerar que o espaço metropolitano de Salvador é marcado pela segregação. Na cidade percebemos que o trânsito de veículos é caótico, tendo as vias voltadas quase que exclusivamente para a circulação dos automóveis particulares. Há um déficit de equipamentos para a circulação dos pedestres, tais como passarelas, faixas de pedestres, calçadas e semáforos. Em um teste ocasional realizado por mim em um semáforo da Avenida Anita Garibaldi, localizada em região central da cidade, constatou-se que o sinal permanece verde aos veículos por 5m30s, sendo que para a travessia de pedestres, o sinal permanece verde por 12s. Segundo dados do Sistema Renavam, a frota de total de veículos em Salvador, em Maio de 2012, era de 713.932 veículos (DENATRAN)7, sendo que os carros totalizam 493.979 unidades, o que confere à cidade, uma marca de, aproximadamente, 1 carro para cada 5 habitantes. Já para a frota de ônibus coletivos, há um verdadeiro déficit, com uma frota operante total em

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Dezembro de 2011 de 2.451 veículos8. Tendo em vista que a cidade ainda não conta com um transporte público de massas, como metrô, e que seu sistema de trens é defasado e sucateado, podemos analisar todos esses dados e concluir que Salvador vive de acordo com a lógica do automóvel, que segrega a população entre os que têm veículos particulares e se isolam, e os que precisam do transporte público para se locomover e o têm em péssimas condições de utilização. Caldeira (2003) alerta que essas e outras transformações similares podem ser detectadas em muitas cidades do mundo, o que “compromete os valores de abertura e liberdade de circulação e põe em risco as interações anônimas e impessoais entre pessoas de diferentes grupos sociais” (CALDEIRA, 2003, p. 328).

As motocicletas em Salvador, assim como na maioria das grandes cidades brasileiras, são utilizadas em larga escala para se garantir a fluidez e velocidade nos deslocamentos. Como dito anteriormente, o trânsito da capital baiana encontra-se em situação agravada pelo alto número de veículos particulares, pelo déficit no transporte público e pelas precárias condições das vias de circulação, o que faz com que uso das motos com a finalidade do trabalho seja um verdadeiro trunfo, especialmente nas classes trabalhadoras. Segundo dados do DENATRAN (Maio, 2012), a frota de motocicletas da cidade é de 91.800 unidades. Comparando com as outras grandes capitais da Região Nordeste, Fortaleza e Recife, esse número pode ser considerado baixo, tendo em vista que em Fortaleza a frota de motos no mesmo período é de 194.808 unidades. Talvez, o que possa explicar tamanha discrepância em cidades de níveis populacionais similares, é o fato de que na capital cearense, o transporte através dos Moto-Taxis é regularizado.

Os enclaves fortificados constituem outra característica marcante da presença desses novos comportamentos oriundos da nova urbanidade na cidade de Salvador. Analisando os lançamentos imobiliários voltados paras as classes média e alta da cidade, constatamos facilmente que uma crescente parte desses empreendimentos caracteriza-se por ser do tipo “condomínio fechado”. Estão presentes todos aqueles itens descritos anteriormente quando da discussão sobre os enclaves fortificados. Muros altos, guaritas, seguranças, cães de guarda e vigilância eletrônica – para garantirem a segurança. Piscina, quadra poliesportiva, “garage band”, varanda gourmet e o playground - para garantir o lazer.

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Com tudo isso se tem uma perda crescente dos espaços públicos de sociabilidade entre pessoas de diferentes estratos sociais na rua, bem como uma segregação cada vez maior, como pode ser comprovada com o fato desses empreendimentos estarem, cada vez mais, localizados em lugares específicos e estratégicos. Em Salvador, nota-se o crescimento, em forma de “ilhas”, onde há a preferência para a localização desses empreendimentos de alto padrão, como a “Avenida Paralela” e a região do “Litoral Norte”, conforme apontou Henrique (2009):

No caso de Salvador, a vista (para o mar), a localização da Av. Paralela (certa distância dos bairros mais populares e a proximidade da praia – não em frente) e a infraestrutura (patrocinada pelo Estado) atraem os investimentos do mercado imobiliário, criando na cidade, espaços “luminosos” do ponto de vista técnico-científico-informacional. [...] Na Avenida Paralela encontram-se vários empreendimentos imobiliários, o maior deles com 18 torres de apartamentos em uma área de 100mil m², que alia a ideia da natureza, que está presente até no nome em francês do empreendimento, com as inúmeras possibilidades de lazer que serão oferecidas, fazendo com que o morador desfrute de todas as atividades de um resort sem sair de casa (HENRIQUE, 2009, p. 151).

Salvador se torna, a exemplo da Los Angeles dos anos 1980 e 1990, mais uma das “cidades fortalezas” (DAVIS, 1993), que passam a ser “brutalmente divididas entre ‘células fortificadas’ da sociedade afluente e ‘lugares de terror’ onde a polícia guerreia contra o pobre criminalizado” (DAVIS, 1993, p. 206).

Com todos esses fenômenos em curso, que caracterizam o processo de reprodução do espaço urbano em Salvador, nota-se um recuo e a destruição do espaço público e uma tendência latente de separação e divisão dos habitantes na cidade, que, como aponta Carlos (1997), se dá devido às formas de apropriação determinadas pela existência da propriedade do solo urbano:

Cada um num endereço específico, apontando para uma segregação espacial bem nítida, passível de ser observada na paisagem como produto da articulação entre uma hierarquia social e uma hierarquia espacial, que caracteriza os usos no espaço urbano. Essa delimitação, bem marcada, separando a casa da rua, reduzindo o espaço público apagando a vida nos bairros onde cada um se reconhecia, por que este era o espaço da vida, torna a cidade mais fria, anônima, funcional e institucionalizada (CARLOS, 1997, p. 208).

Por fim, gostaria de me ater aos espaços públicos de lazer, como os parques e jardins públicos, bem como as praias. Serpa (2007) desenvolveu uma importante contribuição para a Geografia no que tange a essa temática. Para o autor, a distribuição e a frequentação dos parques e jardins públicos em Salvador “podem

revelar todas as nuances da organização socioespacial da metrópole” (SERPA, 2007, p. 90), com um padrão que tende ao claro agravamento das desigualdades entre os diferentes bairros da cidade, resultado das políticas públicas empreendidas na cidade. Para as praias o padrão permanece o mesmo. Elas ainda podem ser consideradas como um importante local de sociabilidade das classes populares, mas as praias da orla atlântica, por exemplo, sofrem a “requalificação e revalorização estética”, enquanto outras, localizadas na orla suburbana, ainda segundo Serpa (2007), são destinadas, quase que exclusivamente, ao público do bairro e das localidades próximas, e que por isso ainda permaneçam abandonadas pelos poderes públicos.