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LEMINSKI E A INTUIÇÃO GERADORA DE CATATAU

6. A lei interna da passagem: perceber sub specie durationis

“Considero o tempo e contemplo o astral, melhor deixar a constelação Descartes para um aquijaz mais oportuno. Sabedores do amanhã, concentrando reminiscências dos remanescentes, lerão letras junto do meu corpo neutro, ensinando aos futuros coisas pósteras. Morte vinda, um texto me garante a eternidade, a árvore me cresce o nome na casca. Lá em cima, filhos, ficaremos em sangue ou em estrelas? Ou passarei como passa bicho para dentro de outro bicho, inscrito num organismo e um seguinte esperando a vez, círculos concêntricos num ciclo sem fim, o bicho A contendo o bicho a, contém o bicho b (cada bicho resulta da passagem de bichos infinitos por um apetite estrategicamente instalado). – Um parafuso arquimédico?” (Catatau, p.24.)

A lei interna da passagem é o que preside essencialmente a duração em geral, que se perpetua na propagação da força do élan. Podemos, pois, acompanhá-la e apreciá-la nas suas mais variadas emanações de ritmos e em formas de natureza diversas, tal como no psíquico, no vital e na matéria. A duração em geral remonta, portanto, a uma totalidade aberta de um Todo movente, em que a multiplicidade de todas as durações que se interpenetram coexistindo virtual e dinamicamente, num processo que se autoconstitui sem cessar.

Intuir a realidade em sua essência como criação é, antes de tudo, reencontrar o movimento e o ritmo ontológico da evolução criadora, revivendo o movimento do ato em que atualiza a gestação do novo. Numa passagem admirável de “A Evolução Criadora”, Bergson comenta:

Como redemoinhos de poeira levantados pelo vento que passa, os seres vivos giram sobre si próprios, suspensos no grande sopro da vida. Portanto, são relativamente estáveis, e imitam tão bem a imobilidade que os tratamos como coisas em vez de progressos, esquecendo que a própria permanência da sua forma não é mais do que a manifestação de um movimento. Por vezes, porém, materializa-se aos nossos olhos, numa fugaz aparição, o sopro invisível que os transporta (...) Deixa-nos entrever que o ser vivo é, sobretudo, um lugar de passagem, e que o essencial da vida tem a ver com o movimento que a transmite.172

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Eis, portanto, a lei inexorável do devir que, aliás, cada um pode experimentar em si mesmo. Uma experiência que afirma a Presença daquilo cuja tradução não é senão a permanência da transição, a partir do momento em que retiramos os antolhos que adormecem a nossa percepção medusada sob a miragem dos “ídolos da distância” 173. Estes ídolos que, para Bergson, representam apenas a imagem do mundo e da vida estancada em aporias conceituais, isto é, formulações de onde se propala “uma eternidade de morte” 174. Inversamente, portanto, a morbidez de tal perspectiva, o bergsonismo propõe a visão de uma eternidade viva, da qual se reconheça o apelo ao exercício constante em perceber as coisas sub specie durationis. A partir daí, com efeito, talvez se possa, enfim, “entrever que o ser vivo é, sobretudo, um lugar de passagem, e que o essencial da vida tem a ver com o movimento que a transmite”.

Inicialmente, a natureza da duração como experiência psicológica, surge pela necessidade de diferi-la do tempo da mecânica e das matemáticas. A constatação da existência incontestável de um tempo que flui internamente, na consciência, e que constitui a duração concreta da vida psíquica, suscita a descoberta de uma temporalidade irreversível e, ao mesmo tempo, irredutível às imagens do tempo cristalizado, reduzido a uma seqüência de simultaneidades. Mas, no plano superficial da experiência, o tempo só nos aparece como um misto e, por isso mesmo, será imprescindível haver uma diferenciação de sua natureza, dividindo-o sob seus dois aspectos, a duração-qualidade, sentida de imediato, da duração- quantidade, onde o tempo aparece referencializado pelas marcações dos instantes exteriores entre si, ao longo da extensão do espaço.

A hipótese bergsoniana sobre a existência de um élan vital, que seria como uma espécie de arché ou ponto de partida para se pensar a origem da vida e das coisas em geral, remonta a uma idéia de começo radicalmente distinta da metafísica habitual. Pois este ponto originário jamais deverá ser entendido aqui como um lugar estático de uma causa que se supõe distinta e exterior aos seus efeitos. Não. O princípio originário do élan é, em essência, um lugar móvel, que se autodescentra

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Sobre a recusa dos “ídolos da distância” Jankélévitch comenta que “Todo o bergsonismo é uma recusa dos ídolos da distância que desdobram do ator e o espectador... Por oposição à ótica intelectualista, geradora de aporias vertiginosas, de fantasias e pseudoproblemas, a intuição, que é ao mesmo tempo gnóstica e drástica, não se define como simpatia e como engajamento?” In

Primeiras e Últimas Páginas. Op. Cit. p.p.96-97.

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constantemente e em relação ao qual a intuição, que é “primeiro consciência, mas consciência imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e mesmo coincidência (...) em segundo lugar, consciência alargada, premendo contra os bordos do inconsciente que cede e que resiste, que se rende e que se retoma: através de alternâncias rápidas de obscuridade e de luz” 175, engaja- se para afirmar e reinstaurar no ser, dentro e fora de nós, o selo de uma lei que qualifica a própria natureza do espírito propagador do élan: a lei do devir, que através da duração afirma sua passagem de um modo irreversível.

Intuição e inteligência se apresentam, ademais, como direções inversamente divergentes, devires distintos de um mesmo movimento primordial que se divide, cada uma adotando uma direção, que se constitui como modos de perceber e entender a realidade. Nas palavras de Bergson:

A inteligência parte ordinariamente do imóvel e reconstrói como pode o movimento com mobilidades justapostas. A intuição parte do movimento, põe- no, ou antes, percebe-o como a própria realidade e não vê na imobilidade mais que um momento abstrato, instantâneo que o nosso espírito tomou de uma mobilidade. A inteligência brinda-se ordinariamente com as coisas, entendendo com isso algo estável, e faz da mudança um acidente que lhe viria por acréscimo. Para a intuição, o essencial é a mudança: quanto à coisa, tal como a inteligência a entende, ela é o corte praticado no meio do devir e erigido por nosso espírito em substituto do conjunto176.

Dois modos de percepção percorrendo caminhos distintos, porém, complementares na unidade múltipla da totalidade aberta do élan que se desenrola na duração. A primeira voltando-se para o espírito e a segunda, para a matéria. E, no entanto, se encontrando nos movimentos intermitentes de uma consciência que se retoma e se alarga “através de alternâncias rápidas de obscuridade e luz”, pois, como reconhece o próprio Bergson, se “A intuição é aquilo que atinge o espírito, a duração, a mudança pura. Seu domínio próprio sendo o espírito, quer apreender nas coisas, mesmo materiais, sua participação na espiritualidade”. 177

Se o modelo da percepção se afigura como um guia para fazermos uma idéia de como o ato da consciência intuitiva se faz presente, é porque esse modelo deve assumir a feição de uma percepção direta quando, nas entrelinhas da matéria, a

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O pensamento e o Movente. (Segunda parte) Op. Cit. p.29.

176

Idem. P.32.

177

intuição efetua o salto de um ato preciso, fraturando o circuito repetitivo das necessidades.

Como podemos notar, não é senão em atenção à lei interna da passagem – a vida “é essencialmente uma corrente lançada através da matéria, que retira dela o que pode” 178-, que a intuição suscita o seu apelo invocador, impelindo o pensamento no sentido de uma autosuperação. E o que seria essa corrente lançada através da matéria, senão o próprio movimento do espírito, entidade potencializadora da criação, fazendo com que o pensamento, em forma de ato, efetue um salto sobre si mesmo, ultrapassando, ao mesmo tempo, a resistência objetivante nas formas contingentes da matéria e, igualmente, dos automatismos mentais enredados no círculo do pensamento conceitual? E, no entanto, esse “ato cortante”, paradoxalmente, é o mesmo que reata com essa mesma ação, a consciência em um plano de sintonia e atenção bem mais vasto e fecundo.

E aqui, se torna relevante entender na noção de evolução empregada por Bergson, que não há nada de teleológico, posto que o papel da vida seja o de atualizar as virtualidades, insinuando-se na matéria através indeterminação, posto que:

Indeterminadas, ou seja, imprevisíveis, são as formas que ela cria à medida que evolui. Cada vez mais indeterminada também, ou seja, cada vez mais livre, é a atividade à qual estas formas devem servir de veículo.

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De um ponto de vista econômico, a força do élan que evolui através das formas do mundo organizado é uma força que se limita contingencialmente, mas que procurará sempre superar a si mesma, suscitando novas formas, posto que a sua adaptação se dê de maneira instável, como se estivesse sempre inadequada à forma da obra à qual tendeu produzir. Trata-se, portanto, de uma adaptação eminentemente dinâmica, viva e, sobretudo, atenta ao processamento que engendra o porvir de uma outra forma no interior de uma harmonia permanentemente instável. Onde houver vida, haverá sempre algum grau de tensão. Por isso, afirma Bergson:

178

A Evolução Criadora. Op. Cit. p.237.

179

Mas esta harmonia está longe de ser tão perfeita quanto se diz. Admite muitas discordâncias, porque cada espécie, e mesmo cada indivíduo, apenas retém da impulsão global da vida um certo élan, e tende a utilizar essa

energia no seu próprio interesse; nisto consiste a adaptação(...) Por

conseguinte, a harmonia não existe de fato; ela existe mais de direito: isto significa que o élan comum e que, quanto mais recuamos, mais as diversas tendências aparecem como complementares entre si. É como o vento que, ao chegar a um cruzamento, se divide em correntes de ar divergentes, sendo todas elas um só e o mesmo sopro. 180

Uma harmonia que “existe mais de direito” do que de fato, aponta-nos precisamente para a atenção que devemos expedir no trabalho da consciência intuitiva, no movimento preciso com que esta se articula como forma de percepção mais alargada e profundamente sintonizada com o plano da totalidade virtual, antes dos estados em que esta se atualiza nas representações mais distintas da consciência superficial, engendradas pela percepção da inteligência. É, pois, pela franja da representação “vaga” e “inútil” da intuição, esta parte do princípio evolutivo que sempre escapa aos condicionamentos contingentes das formas organizadas, posto ser “aí que temos de procurar pistas para expandir a forma intelectual do nosso pensamento; é aí que encontramos o impulso necessário para nos elevarmos acima de nós próprios”. 181 E o que seriam essas “pistas” que devemos procurar, senão a própria voz silenciosa da memória, a verdadeira responsável pela transmissão do élan vital criador? Passemos, então, à compreensão do momento em que se articulam esses elementos nas ondulações que constituem o real.

Em Catatau, não obstante o impasse da catatonia do personagem, nalguns momentos se verifica em Cartesius alguns lampejos sobre o engodo do que seja se representar através do fantasma do tempo idealizado o que significa uma saída do estado de hipnotismo em relação aos “ídolos da distância”. Vejamos:

Coréias certas no ritmo interfuturo, trazendo aos olhos o temor da treva. Surjo e me corrijo: supero o frêmito batismal. Tenho o sono leve, leve o único sonho que tenho, Me livra e me alivia e me leva no meio da melhor hora da festa (...)

182

Tudo não é muito. Ninguém sabe a qualquer hora o que acontecer. 183 Cada vez menos num passado longínquo, o atual dinâmico na vez. 184 Não abusa de ninguém, o tempo conhece o seu lugar. 185

180

A Evolução Criadora. Op. Cit. p.55.

181 Idem. p.54. 182 Catatau, p. 31. 183 Idem. p. 62. 184 Idem. p. 66.

O tempo resvala nesta verdade: estrondo de máquinas de guerra e operações poliorcéticas. Mas há o que quer que seja, um ápcylon sempre possível. 186

Quem é que está me hipnotizando? Dia, primavera dum mundo novo: tudo feliz. Idéia, boa. Hora, impropícia. 187

Nada esperem de mim os desesperados.Bem feito para o caracolega, sem jeito para morrer. Atortomentava os fantasmas que habitam os mármores e marfins da lógica, fazendo tudo dar certo: leva tempo mas chega. 188

185 Idem. p. 74. 186 Idem. p. 78. 187 Catatau, p. 84. 188 Idem. p. 86.

CAPÍTULO II