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3 Da narrativa elipsoidal

8. Occam: o mostroprisma

Enfim, o monstro se mostra pela voz de Cartesius e reacende a problemática da fusão e metamorfose entre os dois:

Nestes climas onde o bicho come os livros e o ar de mamão caruncha os pensamentos, estas árvores ainda pingam águas do dilúvio. Penso meu pensar feito um penso. Olho bem, o monstro. O monstro vem para cima de monstromim. Encontro-o. Não quer mais ficar lá, é aquimonstro. Occam deixou uma história de mistérios peripérsicos onde aconstrece isso monstro. Occam, acaba lá com isso, não consigo entender o que digo, por mais que persigo. Recomponho-me, aqui – o monstro. Occam está na Pérsia. Quod erat demonstrandum, quid xisgaravix vixit. Eis isso. Isso é bom. Isso revela boa apresentação. Assim foi feito isso. Algo fez isso assim, isso ficou assim. Era então isso. Isso ficou assim e assás assado, o erro já está içado. Ficou algo, deu-se. Isso contra isto. Isto mata isso. Isto. Histórias. Alguém cometeu algo? Ninguém fez nada. Que faz isso aqui? Isso serve para ser observado. Só para ser visto, só se passa isso. Aqui dá muito disso. Aqui é a zona disso. Agora se alguém desconfiar, ninguém duvide. Isso muda muito. Isso é assim mesmo. Os outros são alguns, uns são quaisquer. O osso do ofício no orifício disso. Histórias em torno disso. Eu nego isto, isto é, visto por esse monstroprisma [grifo nosso] 99.

A aparição de Occam, o “monstroprisma” provoca a reação da negação em Cartesius, que, de algum modo, poderia tranquilamente enunciar na última frase acima, parafraseando o famoso aforismo de Descartes “Nego, logo Existo”.

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O personagem-texto Occam, monstro semiótico, ostenta este nome em alusão ao monje Guilherme de Ockham, que na Idade Média foi o principal defensor do nominalismo. Para esta corrente filosófica, as idéias gerais ou universais não têm nenhuma existência real, quer na mente em forma de conceitos quer enquanto formas substanciais existentes em si mesmos. Tais idéias, enquanto signos lingüísticos, palavras, são somente nomes. Guilherme de Ockham, monje acusado de heresia, nominalista minimalista, segundo o Dicionário básico de filosofia de Hilton Japiassú “a ele se atribui a famosa ‘navalha de Ockham’ princípio de economia que diz: “entia non sunt:

multiplicanda praeter necessitatem” (não se deve multiplicar os entes existentes além do necessário)”.

Cf. p. 200.

99

Com a chegada do monstro Occam, a representação gráfica de alguns vocábulos sofrem alterações, iconizando as afetações decorrentes da presença do monstro através dos neologismos (“monstromim”, “aquimonstro”, “peripérsicos”, “aconstrece” e “monstroprisma”).

Juntamente com Occam, também entra em cena o tópoi da metáfora histórico-geográfica da Pérsia (= “Occam está na Pérsia”). A alusão às guerras greco-pérsicas é uma das constantes temáticas em Catatau. O espelhamento se realça aqui, na medida em que “Occam está na Pérsia” e a Pérsia está em Cartesius, agora, impregnado pelo “espírito” de Occam. Cartesius personagem e, ao mesmo tempo, cenário de uma guerra subjetiva que se projeta, por sua vez, na extensão do tecido da linguagem no texto. Além do que, a guerra entre gregos e persas venha metaforizar, ainda, a guerra entre supostos bárbaros e civilizados, americanos e europeus, colonizados e colonizadores, invadidos e invasores, luso- brasileiros e holandeses. Muitas guerras, portanto, estão em jogo, habitando as letras desse Catatau. Guerra que faz brilhar nas fraturas da escrita as figurações fulgurações dos fragmentos, rastros sígnicos de uma batalha festiva travando-se no campo da linguagem.

Occam, monstroprisma que emerge vez em quando do lago verbo-narcísico da loquacidade de Cartesius, emerge para o desespero deste, minando a tão pretendida harmonia de um sistema de pensamento que se desmantela em sintomas:

A figura é figurada. Desvidro-me. Não representa o que apresenta (...) Algomonstro está oculto atrás do ato nulo. O fato? Occam. O mapa é este. [grifo nosso] 100

Eis, portanto, o monstoprisma, monstro-mapa de letras moventes que “transcorre de imediato” num território de chão fugidio, fonte dos desequilíbrios em Cartesius.

Imprevisível monstro de máscara verbal intermitente, cuja presença “não representa o que apresenta”, mas que, talvez por isso mesmo, valha a pena se arvorar na tentativa de um diálogo viável:

A persona de Perséfone, a estrela constelada. Coisa late esconsa aqui, desapareceu num parecer parecido com o de Occam, o qual transcorre de

100

imediato. Desenvolve-se contradição no seio do equilíbrio, o invariável torna- se viável: diálogo. 101

Metáfora, também, de toda a complicação figurada pelo texto que, como abordaremos mais adiante, é a própria feição de um “Nó”, cujo enredamento enlaça palavras, temas, personagens reais e imaginários, referências espacio-temporais e, enfim, resultando na morte de Occam que se suicida, enforcando-se nos seus próprios nós. Vejamos como o narrador consegue “abater Occam”:

Deve ser morto esta noite. ass. O miguelomaníaco: de rente se tornaou declarado, nítido, óbvio, evidente, ínvio, Sílvio.Entre cartesices e certezas, piratarias? Telepatético! Urgh! Gruh! Occam, esta noite ipsa. Ass. Megalítico. Passa pouco de hoje, o dia tarde a sair de noite. Quem o viu, viu o morto? [...] Dado por monstro, foi-se: enforcado, esforça-se por ser. Vão os percálçulos, no sentido de abastecer Occam, me desembruto em abater Occam, apontando o suicida, com potencial de fogo e numéricas superioridades. 102 De Occam, funto. Al: al, al. Occam deve ser. Oh, eis! Repepito! Esta noite, centresper íspirito! [...] Soterrar. Occam. Convém. [...] Calma, em assomos formidáveis: a grandes defuntos, monstros sepulcrais! [...] A essas altura, o Outro está podre. 103

Este pedaço, vítima de um VADERRETRÓS, valha tabu: aqui, Occam, já, morreu, – superfície ainda fumegante do seu sangue e tinto dos seu vinhos, circuncisa a suas pegadas mistas às pistas versas por seus assassinos. 104

Todavia, esse monstro-texto pode renascer e das cinzas de suas palavras, haverá sempre o voto de um novo retorno através de outras palavras, alçando vôos como flechas persas e tupinambás, na memória transversiva do leitor-criador. Daí Cartesius enunciar:

Assassínios! Assassinatos! Quem como Occam. Não vence: não é de vencer. Passa por ele, passa a existir. Na pedra. No pau. Papiro. Pergaminho. Papel. [...] Prometendo sempre voltar a seus receptores, escondia-se por trás da sua passagem daqui para outra qualquer melhor parte. Sorriu no túmulo, primeira vez. Túnel? Trsnsgressio Cognitionis. 105

Vida e morte, portanto, intimamente vinculadas ao movimento constitutivo pelo qual se afirma o gesto criador e inventivo da escrita que, ao mesmo tempo, se lança na direção do espaço extra-verbal, tal como iremos conferir no próximo capítulo. 101 Idem. p. 43. 102 Catatau, p. 201. 103 Idem. 202. 104 Idem. p. 203. 105 Idem. p. 203.

CAPÍTULO III

POIESIS

DE EXTROVERSÃO: ENTRE CATACLISMOS &

CATATONIAS, CATATAU CATAPULTANDO UMA SIGNIFICÇÃO