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Podemos dizer que um marco histórico e essencial na educação brasileira foi configurado pela Lei 10.639/03, no que tange à incorporação de estudo, reconhecimento e importância das questões étnico-racial. Tal Lei quebra paradigmas e insere novas diretrizes e ações pedagógicas no contexto educacional que buscam trabalhar a história dos povos africanos e afro-brasileiros e a importância desta na formação do país.

Em vista da ausência de conteúdos relacionados à população afrodescendente e perante o grande empenho de militantes do Movimento Negro, foi possível a edição da Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003), de 9 de janeiro de 2003, que alterou o parágrafo 4º,Art. 26 da Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelecendo as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial das escolas, públicas e privadas, nos Ensinos Fundamental e Médio de todo o País, a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro- Brasileira. Em 2009, no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, foram registrados os deveres da União, estados, municípios, Distrito Federal, universidades, conselhos e demais setores ligados à educação para com a implementação dessa legislação.

A Lei n° 10.639/03 passa a vigorar acrescida dos seguintes artigos. 26-A, 79-A e 79- B, tendo como proposta trazer para discussões escolares as questões identitárias, sobre ancestralidade e resistência cultural, propondo a utilização de novas matrizes teóricas que contemplem outros olhares sobre o processo histórico da cultura afro-brasileira, vejamos:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História brasileira.

§3o (VETADO)3: As disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu conteúdo programático anual ou semestral à temática referida nesta lei.

Art. 79-A. (VETADO)4 Os cursos de capacitação para professores deverão contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro, das universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria.

Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.

De acordo com Sales Augusto dos Santos (2005, p.34), os movimentos sociais negros que estiveram engajados na luta antirracista, levaram mais de meio século para conseguir a criação da lei n° 10.639/03, porém tornar obrigatório o estudo do continente africano, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do negro na sociedade brasileira não é suficiente para que, de fato, se efetue a implementação da lei.

Santos (2005, p. 35) salienta que os movimentos sociais negros engajados na luta antirracista precisam estar sempre pressionando os governos municipais, estaduais e federais para que esta lei não seja somente letras mortas no sistema jurídico e sim que ela se torne executável. Portanto, as reflexões que temos hoje sobre a diversidade étnico-racial na educação é resultado de muitas lutas e conquistas, de perdas e ganhos do movimento negro engajado, embora elas não estejam acontecendo como deveria.

3 Razões do veto: “Estabelece o parágrafo sob exame que as disciplinas História do Brasil e Educação Artística, no ensino médio, deverão dedicar, pelo menos, dez por cento de seu conteúdoprogramático anual ou semestral à temática História e Cultura Afro-brasileira. A Constituição de 1988, ao dispor sobre a Educação, impôs claramente à legislação infraconstitucional o respeito às peculiaridades regionais e locais. Essa vontade do constituinte foi muito bem concretizada no caput do art. 26 da lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que preceitua: “Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela”. Parece evidente que o § 3º do novo art. 26 – A da lei nº 9.394, de 1996, percorre caminho contrário daquele traçado pela Constituição e seguido pelo caput do art. 26 transcrito, pois, ao descer ao detalhamento de programático à temática mencionada, o referido parágrafo não atende ao interesse público consubstantivo, na exigência de se observar, na fixação dos currículos mínimos de base nacional, os valores sociais e culturais das diversas regiões e localidades do nosso país. A Constituição, em seu art. 211, caput, ainda firmou como de interesse público a participação dos Estados e dos Municípios na elaboração dos currículos mínimos nacionais, preceito esse que foi concretizado no art. 90 , inciso IV da Lei n. 9.394, de 1996, que diz caber à União "estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum". Esse interesse público também foi contrariado pelo citado § 3', já que ele simplesmente afasta essa necessária colaboração dos Estados e dos Municípios no que diz respeito à temática História e Cultura Afro-Brasileira”.

4 Razões do veto: "O art. 79-A, acrescido pelo projeto à Lei nº 9,394, de 1996, preceitua que os cursos de capacitação para professores deverão contar com a participação de entidades do movimento afro-brasileiro das universidades e de outras instituições de pesquisa pertinentes à matéria. Verifica-se que a Lei nº 9.394, de 1996, não disciplina nem tampouco faz menção, em nenhum de seus artigos, a cursos de capacitação para professores. O art. 79-A, portanto, estaria a romper a unidade de conteúdo da citada lei e, consequentemente, estaria contrariando norma de interesse publico da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, segundo a qual a lei não conterá matéria estranha a seu objeto (art 7º, inciso II)”.

Ressaltamos que, a promulgação das leis n° 10.639/03 e n° 11.645/08, que alteraram a Lei no 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir a

obrigatoriedade das temáticas História e Cultura Afro-Brasileira e História e Cultura Afro- Brasileira e Indígena, respectivamente, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, foi fruto de um grande processo de lutas políticas e sociais. As duas leis representaram o reconhecimento da importância de valorizar a história e a cultura do povo negro e indígena como forma de reparar os danos causados à sua identidade e aos seus direitos desde a escravatura até os dias atuais.

É necessário ter a compreensão do contexto de elaboração da Lei 10639/03, bem como, a atuação determinante do Movimento Negro, colaboradores e seus atores sociais. Houve toda uma contextualização histórica, um longo processo de luta articulada por parte do Movimento Negro pressionando o Estado a estabelecer e construir Políticas Públicas de Igualdade Racial.

A referida lei não foi sancionada de um dia para o outro, antes de ser sancionada, passou por diversos estágios. Diversos acontecimentos relativos à causa negra vinham se intensificando no final da década de 80 e início de 90, quando pesquisas foram publicadas demonstrando o quanto a população negra estaria em defasagem em relação ao continente populacional branco em vários indicadores: saúde, educação, mercado de trabalho, entre outros. Essas pesquisas serviram também para comprovar o quanto a discriminação estava presente em nossa sociedade.

E, nesse contexto, o Movimento Negro, por sua vez, continuava presente, defendendo a causa negra há quase um século. Dessa forma, torna-se relevante destacar a importante trajetória de luta do Movimento Negro em favor da eliminação de todos os tipos de preconceito, discriminação e racismo, e seu papel fundamental na conquista da Lei 10639/03.

Sabemos que os movimentos sociais estiveram engajados na luta, e conseguiram a promulgação das referidas leis, porém, vale ressaltar que a responsabilidade de implementação das mesmas é do poder público. Nesse sentido, reconhecemos que não é responsabilidade do Movimento Negro a implementação da Lei 10639/03, porém, o trabalho desenvolvido por muitos, seja ele considerado um movimento negro ou um coletivo negro, tem tensionado as unidades escolares fazendo com que essa Lei não seja apenas letra morta no sistema jurídico e de fato ela seja executável.

A finalidade dessas Leis é promover um ambiente escolar democrático, cujas diversidades etnicorraciais e indígenas sejam contempladas, desde a organização do currículo

até as ações efetivas contra as práticas racistas, preconceituosas e discriminatórias, que chegam às crianças e aos jovens negros e indígenas. Possibilitando a desconstrução de verdades estabelecidas e engendradas nos currículos oficiais, nos livros didáticos e nas diversas práticas estabelecidas no cotidiano escolar, por meio de discursos fundamentados em uma ideologia colonizadora, e eurocêntrica.

Nesse viés, não há como pensar em uma escola pública, desatenta às relações étnicas que fazem parte da construção histórica, cultural e social deste país. É necessário compreender que o espaço escolar é formado por diferentes identidades, cultura, relações étnicas, entre outras.

O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana destaca algumas atribuições para cada ator do sistema de ensino, cuja abrangência deve acontecer nos âmbitos nacional, estadual e municipal, visando ações que buscam efetivar principalmente a implementação da Lei 10.639/03.

Desta forma, o Plano Nacional, em destaque, surgiu como uma proposta de auxiliar e orientar as instituições educacionais para que pudessem atender e trabalhar a temática étnico- racial. Contudo, construir um Plano em nível nacional requer muitos estudos, discussões, políticas públicas e estratégias para contribuir com o processo de erradicar o preconceito racial, discriminatório e garantir ao negro o direito de estar nas mesmas condições na educação.

O Plano prevê ações pontuais para combater a desigualdade racial na educação e fazer valer a implementação da Lei 10.639/03, destacando os seguintes objetivos:

- Desenvolver ações estratégicas no âmbito da política de formação de professores, a fim de proporcionar o conhecimento e a valorização da história dos povos africanos e da cultura afro-brasileira e da diversidade na construção histórica e cultural do país;

- Colaborar e construir com os sistemas de ensino, instituições, conselhos de educação, coordenações pedagógicas, gestores educacionais, professores e demais segmentos afins, políticas públicas e processos pedagógicos para a implementação das Leis 10639/03 e 11645/08;

- Promover o desenvolvimento de pesquisas e produção de materiais didáticos e paradidáticos que valorizem, nacional e regionalmente, a cultura afro-brasileira e a diversidade;

- Colaborar na construção de indicadores que permitam o necessário acompanhamento, pelos poderes públicos e pela sociedade civil, da efetiva implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana; - Criar e consolidar agendas propositivas junto aos diversos atores do Plano Nacional para disseminar as Leis 10639/03 e 11645/08, junto a gestores e técnicos,

no âmbito federal e nas gestões educacionais estaduais e municipais, garantindo condições adequadas para seu pleno desenvolvimento como política de Estado (p.19-20).

Compete às instituições que compõem o sistema educacional brasileiro a realização de algumas ações:

a) Incorporar os conteúdos previstos nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- brasileira e Africana em todos os níveis, etapas e modalidades de todos os sistemas de ensino e das metas deste Plano [...] na construção do futuro PNE (2012-2022), como também na construção e revisão dos Planos Estaduais e Municipais de Educação;

b) Criar Programas de Formação Continuada Presencial e à distância de Profissionais da Educação, com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino da História e Cultura Afro- Brasileira e Africana [...] (p.26)5

As ações para o Governo Federal consistem em:

a) Incluir as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e os conteúdos propostos na Lei 11645/2008 nos programas de formação de funcionários, gestores e outros (programa de formação de conselheiros, de fortalecimento dos conselhos escolares e de formação de gestores); b) Incluir na Política Nacional de Formação dos Profissionais do Magistério da Educação Básica, sob a coordenação da CAPES, as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais e História da África e Cultura Afro-Brasileira e Africana, com base no Parecer CNE/CP n. 03/2004 e Resolução CNE/CP n. 01/2004 e a Lei 11645/08;

c) Incluir como critério para autorização, reconhecimento e renovação de cursos superiores, o cumprimento do disposto no Art. 1º, § 1º da Resolução CNE/CP nº 01/2004. (p. 28)

Para os Governos Estaduais e Municipais são destacadas:

a) Apoiar as escolas para implementação das Leis 10639/2003 e 11645/2008, através de ações colaborativas com os Fóruns de Educação para a Diversidade Etnicorracial, conselhos escolares, equipes pedagógicas e sociedade civil;

b) Orientar as equipes gestoras e técnicas das Secretarias de Educação para a implementação da lei 10639/03 e Lei 11645/08;

c) Promover formação para os quadros funcionais do sistema educacional, de forma sistêmica e regular, mobilizando de forma colaborativa atores como os Fóruns de Educação, Instituições de Ensino Superior, NEABs, SECAD/MEC, sociedade civil, movimento negro, entre outros que possuam conhecimento da temática;

5 Vale ressaltar que outras ações são incorporadas, queremos aqui destacar apenas algumas de cada setor para compor nosso quadro de discussão.

d) Produzir e distribuir regionalmente materiais didáticos e paradidáticos que atendam e valorizem as especificidades (artísticas, culturais e religiosas) locais/regionais da população e do ambiente, visando ao ensino e à aprendizagem das Relações Étnico-raciais. (p. 30)

Conforme é demonstrado, cada setor/ator tem um papel importante e fundamental na constituição e na efetivação destas Leis. Vale ressaltar que o Plano ainda atribui ações a outros atores como Conselhos de Educação, Instituições de Ensino públicas e privadas, Ensino superior, Coordenações Pedagógicas, Grupos Colegiados e Núcleo de estudo, e Educação Básica (Fundamental e Médio), buscando articular todas as possibilidades até chegar ao educando.

Trata-se de política curricular fundada em dimensões históricas, sociais e antropológicas, oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros (CNE, 2004, p. 11).

Em se tratando das relações raciais, a diferença étnico-racial tornou-se um instrumento geracional das desigualdades sociais, sendo assim, o racismo é um grande condicionante da exploração capitalista, é uma ideologia criada pelas elites europeias para impor sua dominação sobre os povos. Entendemos que o tráfico de escravos e a revolução industrial foram fenômenos históricos que deram início ao sistema capitalista, nesse sentido, o racismo e o capitalismo são mecanismos de poder que se alimentam de suas potencialidades destrutivas para se fortalecerem. Dessa forma, torna-se compreensível que a luta pela construção identitária e contra o racismo é também fundamental para combater à exploração capitalista.

Diante do exposto compreendemos que os primeiros passos para construir relações educacionais de respeito e valorização das diversas etnias consistem em criar, nas escolas, espaços de experiências e vivências democráticas. Dessa forma, é necessário pensar um currículo que atenda às demandas de cada escola. De acordo com Sacristán (2000), precisamos ter em mente qual objetivo se pretende atingir, o que ensinar, por que ensinar, para quem são os objetivos, quem possui o melhor acesso às formas legítimas de conhecimento – segundo a nossa sociedade, que processos incidem e modificam as decisões até que se chegue à prática, como se transmite a cultura escolar, como os conteúdos podem ser inter-relacionados, com quais recursos/materiais metodológicos se trabalha, como organizar os grupos de trabalho, o tempo e o espaço, como saber o ‘sucesso’ ou não e as

consequências sobre esse sucesso da avaliação dominante e, principalmente, de que maneira é possível modificar a prática escolar relacionada aos temas propostos para discussão.