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A LIBERDADE, A SEXUALIDADE E A FÓRMULA DA LEI DA

Nos tópicos precedentes, estabelecemos algumas relações centrais no

que se refere à preservação da humanidade dos indivíduos envolvidos em

atividades ou relacionamentos sexuais. Num primeiro momento, analisamos o

significado de usar o outro enquanto meio, considerando, aí, as exigências da FH

em sua relação com os deveres para consigo próprio. Num segundo momento,

analisamos o status do consentimento mútuo na constituição das relações em geral.

Num terceiro momento, por intermédio do conceito de reciprocidade, analisamos o

status da união civil matrimonial no projeto ético kantiano, admitindo – para além de

sua filosofia – a possibilidade de uma relação moral extra-marital. Nos dois primeiros

momentos, fizemos as ressalvas necessárias no que diz respeito à relação entre a

FH, na fundamentação destes deveres, e a FLN, que parecia ocupar lugar de

importância significativa neste contexto. Agora, para chegar à conclusão dessa

análise problematizadora e crítica da ética sexual kantiana, torna-se necessário

determo-nos justamente sob o ponto de ligação dos conceitos anteriormente

trabalhados – consentimento, reciprocidade, humanidade. Trata-se da liberdade –

analisada sob a ótica da FLN – que, por sua vez, está indissociavelmente vinculada

a outro conceito: o de autonomia. Ambos são de importância suprema na filosofia

crítica do professor de Königsberg, tornando-se indispensáveis também quando se

objetiva empreender um olhar sobre a visão de Kant acerca da sexualidade humana,

uma área na qual as inclinações sensíveis atingem uma força que desafia

absurdamente a lei moral, e, portanto, o exercício da autonomia.

Não é preciso dizer que a autonomia é um conceito absolutamente central

na obra kantiana. Conforme o filósofo,

autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal (KANT, 1960, p. 85).

Por meio deste excerto, parece-nos que Kant oferece uma

fundamentação para que as ações sejam, de fato, morais, e tal fundamentação é o

princípio da autonomia. À medida que alguém impõe a si leis, por meio da própria

vontade, conformando tais leis ao querer de todas as outras pessoas, um contexto

moral é inaugurado. Neste sentido, a autonomia kantiana pode ser vislumbrada a

partir de duas perspectivas. Primeira: nenhuma autoridade externa é exigida para

nos fazer agir moralmente, ou para determinar nossa vontade; segunda: nós

podemos nos controlar a nós mesmos, graças à razão, que nos obriga,

independente de nossos desejos egoístas e/ou inclinações sensíveis (Cf. GUYER,

2003, pp. 71-72; SCHNEEWIND, 1992, p. 309). Nas Lições, por exemplo, nas

anotações de Vigilantius, podem ser encontrados vários trechos que comprovam

esta ótica binária do autor acerca do exercício da liberdade humana. A primeira

perspectiva comprova-se quando Kant considera que

a liberdade consiste somente nisso, que o agente utilize suas capacidades na sua própria escolha, em concordância com o princípio da razão; agora quem cedeu a si mesmo, com todas as suas capacidades, à disposição de outro e, assim, voluntariamente escravizou a si mesmo, iria alienar a sua liberdade (KANT, 1997, p. 342). (tradução nossa)

Já nas notas de aulas tomadas por Mongrovius, ao dissertar sobre a

relação entre a obrigatoriedade própria da lei moral, Kant afirma que a liberdade se

manifesta no homem quando ele está “empregando o poder que ele tem para

legislar além de suas fortes inclinações” (KANT, 1997, p. 237) (tradução nossa), e

que ela consiste no fato de que “todos possam agir de acordo com sua própria

vontade, sem ser necessário agir de acordo com a vontade de um outro” (KANT,

1997, p. 238) (tradução nossa). Mais à frente, novamente nas anotações de

Vigilantius, a ideia da liberdade em contraposição às inclinações reaparece. Aí o

filósofo afirma que “pela auto-compulsão, o homem, de fato, comprova-se livre, na

qual demonstra uma independentia arbitrii liberi a determinationibus per stimulos

72

,

e, portanto, dá evidência de sua liberdade” (KANT, 1997, p. 283) (tradução nossa).

A liberdade, então, negativamente, caracteriza-se pela renúncia da vontade à

determinação das inclinações sensíveis; positivamente, consiste na capacidade de

determinar-se pela razão (Cf. KANT, 1997, p. 263). Dito isto, depreende-se que há,

aí, uma tentativa de derivar a lei moral de uma base na qual está pressuposta a ideia

de liberdade. Logo, lei moral e liberdade são conceitos recíprocos, senão pode-se

afirmar até mesmo que o segundo é condição suficiente para o primeiro (Cf.

ALLISON, 1986, pp. 394-395; HENRICH, 2003, p. 57), pois já que

o grande abismo entre a natureza e a liberdade não pode ser superado pelo uso teórico da razão, pode e deve ser superado pelo uso prático da liberdade, de cujo ponto de vista a natureza deve ser capaz de ser vista como um reino em que as demandas da moralidade, tanto em nossas ações quanto em seus resultados podem ser satisfeitas (GUYER, 2000, p. 33). (tradução nossa)

Neste contexto – onde a natureza e suas leis agem em concordância com

as leis da liberdade, permitindo a manifestação destas últimas no mundo sensível –

podem surgir várias perguntas, como as sugeridas por Guyer: por que a propriedade

da vontade de ser uma lei para si mesma deveria equivaler à sua independência de

qualquer propriedade dos objetos da vontade? Por que Kant pensa que nós temos

uma obrigação incondicional de se esforçar para adquirir autonomia por meio de

uma lei auto-imposta? (Cf GUYER, 2003, pp. 70-71). No entanto, dentre estas e

outras perguntas que surgem ao redor da autonomia kantiana, levantadas por

Guyer, uma, para a presente discussão, se destaca. É a que interroga sobre

como Kant pensa que os seres humanos podem, de fato, alcançar autonomia nas condições empíricas da vida humana, que inclui, dentre outras condições, aquela de ser sujeito a uma ampla gama de inclinações, e de sendo capaz de obter controle sobre aquelas inclinações, se não sobre todas, somente por um lento processo de educação e maturação (GUYER, 2003, p. 71). (tradução nossa)

A autonomia, enquanto liberdade positiva, leva o homem, por meio da

auto-imposição da lei moral, a tornar-se independente dos estímulos sensoriais

oriundos das inclinações sensíveis e/ou propriedades dos objetos fenomênicos, que,

possivelmente, o levariam a agir não pelo motivo do dever exclusivamente, mas por

motivos alheios a este, impedindo a moralidade

73

. Isto não quer dizer, porém, que o

homem terá de extirpar as inclinações de sua vida, fato que seria, até mesmo,

impossível. A questão central é como a lei moral lida com as inclinações no sentido

de não fazê-las estímulos dos quais deverá se originar uma máxima de uma ação.

Tal máxima estaria fadada ao fracasso e poderia, inclusive, levar à concretização de

ações imorais. Para Kant, este objetivo só se concretiza quando a liberdade adquirir

autonomia, isto é, quando a liberdade negativa se transformar em liberdade positiva.

Neste sentido, as inclinações sensíveis, antes de serem consideradas um

mal a priori

– e não são – servem como instrumentos que, mesmo gerando

dificuldades, ensinarão à vontade o modo correto de agir, de tal modo que “nós não

podemos ter uma concepção coerente (...) de nossa habilidade de agir, se estão de

acordo com as exigências da moralidade ou em desacordo com eles, sem

inclinações” (GUYER, 2003, p. 74) (tradução nossa), até porque, sem elas, nem

humanos seríamos. Para que se possa alcançar, de fato, a autonomia no uso da

própria liberdade, não se exige do indivíduo a supressão das inclinações, mas sim

fazer com que a razão prática pura regule o papel que estas desempenham na

nossa vontade (Cf. GUYER, 2003, p. 74), a fim de que esta se coadune com as

exigências da razão pura

74

. Desse modo, a liberdade da vontade não pode ser outra

coisa senão a autonomia em si mesma, isto é, “a propriedade da vontade de ser lei

73 Sobre a possibilidade de existência do valor moral nas ações que, além de terem sido feitas pelo

motivos do dever, contarem com outros motivos paralelos, ver HERMAN, Barbara. On the value of acting from the motive of duty. The Philosophical Review, v. 90, n. 3, 1981, pp. 359-382.

74

Corroborando tal posição, Marcia Baron afirma ser “evidente que a posição de Kant nos seus últimos trabalhos de filosofia prática – a Religião, a Metafísica dos costumes e a Antropologia – não é que as inclinações são em si mesmas ruins, mas que nós devemos controlá-las ao invés de deixá-las nos controlar, e que não devemos nunca subordinar o dever à inclinação” (BARON apud BORGES, 2005a, p. 211). Borges, porém, ressalta que na Antropologia, a visão kantiana sobre as inclinações é mais negativa, visto que o filósofo às associa às doenças da mente, que podem nos cegar e impedir o propósito da razão prática (Cf. BORGES, 2005a, p. 211).

para si mesma” (KANT, 1960, p. 94). E dizer que a vontade é uma lei para si mesma

significa o princípio de “não agir segundo nenhuma outra máxima que não seja

aquela que possa ter-se a si mesma por objeto como lei universal” (KANT, 1960, p.

94), o que caracteriza o imperativo categórico. Para Kant, então, existe uma

identificação entre vontade livre e vontade que se submete à lei moral, constituindo-

se, ambas numa única e mesma coisa (Cf. KANT, 1960, p. 94). Dito de outro modo:

é impossível ser livre, na perspectiva kantiana, se suas escolhas – e, mais ainda, as

máximas que a estas subjazem – não estão fundadas na lei moral.

No entanto, desde a Fundamentação, o autor sugere que tal liberdade da

vontade está associada a uma contradição que, para ele, é aparente. Enquanto

possuidor de razão, o homem é pertencente ao mundo inteligível, e sua vontade é

uma “causalidade como causa eficiente que pertence a esse mundo inteligível”

(KANT, 1960, p. 104), mas também é consciente de que é membro do mundo

sensível, e sabe que, neste, as suas ações são “meros fenômenos daquela

causalidade” (KANT, 1960, p. 104), fato que faz com que suas ações estejam

submetidas às influências das inclinações e apetites

– o que não existiria se

fôssemos apenas membros de um mundo inteligível. O imperativo categórico surge,

por isso, graças à ideia da liberdade, quando o ser humano compreende-se como

submetido à lei da razão, própria do mundo inteligível, levando-o a aderir a máximas

que possam ser racionalmente universalizadas, tornando-as passíveis de serem

fundamentos de ações de todo e qualquer ser racional. A ideia de liberdade,

portanto, torna possível a autonomia, que só acontece quando o ser humano,

reconhecendo seu pertencimento a ambos os mundos, conforma sua vontade à

razão, elemento capaz de vinculá-los, possibilitando a existência da moral (Cf.

KANT, 1960, pp. 104-105).

É preciso ressaltar, portanto, a partir destas considerações, que “a

liberdade não é um conceito da experiência nem pode sê-lo, pois se mantém

sempre, mesmo que a experiência mostre o contrário daquelas exigências que,

pressupondo a liberdade, se representam como necessárias” (KANT, 1960, p. 106).

Se as exigências são necessárias, são a priori, o que configura o conceito de leis

naturais, pressuposto inevitável para a criação da moralidade. A aparente

contradição entre a necessidade das leis da natureza, que, apesar de posta sua

existência apriorística, devem se manifestar pela experiência, e a liberdade, cuja

realidade objetiva não nos é mostrada factualmente – deve dar lugar à ideia de que

ambos estão “unidos necessariamente no mesmo sujeito” (KANT, 1960, p. 108),

dada a compreensão da dupla realidade da existência humana: sensível e inteligível.

Somente a partir desta constatação será possível crer no

ideal de um reino universal dos fins em si mesmos (dos seres racionais), ao qual podemos pertencer como membros logo que nos conduzamos cuidadosamente segundo máximas da liberdade como se elas fossem leis da natureza (KANT, 1960, p. 117). (grifo do autor)

Faz-se necessário, contudo, ter consciência de que este como se não é

uma “mera cláusula retórica”, mas constitui-se numa crença de que, enquanto o

sujeito age, “natureza e liberdade podem unificar-se neste mundo sob a lei da

liberdade, e que o fenômeno poderá conformar-se ao supra-sensível” (LEBRUN,

2011, p. 90) (grifo do autor). Falar de um reino dos fins nos leva a crer, portanto, que

desde a Fundamentação, Kant esboça uma teleologia para a moral, principalmente

quando, ao reformular o imperativo categórico, ele apresenta a chamada Fórmula da

Lei da Natureza, chamada por Paton, em sua interpretação da filosofia moral

kantiana, de fórmula IA: “Age como se a máxima da tua ação se devesse tornar,

pela tua vontade, em lei universal da natureza” (KANT, 1960, p. 57), (enquanto a

primeira formulação é a fórmula I). É como se nos colocássemos na posição do

Deus Criador ao forjar o mundo. A diferença é que nós mesmos fazemos parte desta

criação, ao mesmo tempo em que somos o Criador (Cf. PATON, 1947, p. 146)

75

. As

máximas de nossas ações, portanto, devem sem avaliadas de um ponto de vista de

quem está criando um mundo, tornando-as possíveis de serem utilizadas por todos e

por si mesmo, mantendo a harmonia do cosmos. Neste sentido, “autonomia e

Criação são inseparáveis” (LEBRUN, 2011, p. 76). Tal constatação nos remete

àquela característica teleológica esboçada na Fundamentação: mesmo devendo ser

concebidas a priori, em virtude da sua necessidade, as leis da natureza possuem um

conteúdo empírico, graças ao exercício da liberdade autônoma. Por isso, Paton

afirma que “das ilustrações dadas na Fundamentação é claro que ao aplicar esta

fórmula nós assumimos o conhecimento empírico da natureza (particularmente da

natureza humana) e suas leis gerais” (PATON, 1947, pp. 146-147) (tradução nossa).

Isto assume uma importância bastante significativa em nossa discussão, a partir do

75

Lebrun prefere não usar esta alegoria de Paton, dizendo que “a autonomia não transforma, absolutamente, o sujeito em uma espontaneidade criadora; ela não o convida a imaginar-se, quimericamente, como um legislador celeste. O que a autonomia determina ao homem é que ‘aja

momento que notificamos que, apesar de Kant propor uma ética baseada em

princípios metafísicos, independente das motivações sensíveis e inclinações, a fim

de provar, na criação de um mundo moral, a dissolução da aparente contradição

entre mundo sensível e mundo inteligível, ele mesmo utiliza dos dados da

experiência para ilustrar a sua teoria

76

, fazendo do princípio da autonomia o

instrumento que confere conteúdo positivo ao homem enquanto sujeito inteligível

(Cf. LEBRUN, 2011, p. 76)

.

Assim,

a lei moral permanece a priori mesmo quando aplicada aos homens, mas se quisermos trazer casos particulares sob ele e habilitá-lo para afetar vontades humanas, temos de ter um juízo aperfeiçoado pela experiência. (PATON, 1947, p. 147) (tradução nossa) (grifo do autor)

A fórmula IA, portanto, aparece como uma tentativa kantiana de conferir

conteúdo à fórmula I. Em outras palavras, é como se esta só pudesse ser aplicada

por meio daquela

77

. A FLN permite-nos, a partir do horizonte teleológico, analisar os

dados da experiência em sua relação com os fins para os quais a humanidade está

destinada. Desse modo, o papel de legislador universal proposto pela fórmula IA, por

meio do conteúdo positivo conferido pelo exercício da autonomia, faz o homem

consciente do sujeito racionável que ele é chamado a ser (Cf. LEBRUN, 2011, p.

75), o que nos leva a crer numa vocação a ser assumida pelo homem na natureza,

isto é, uma função a ser desempenhada, função esta intrinsecamente unida à ideia

de Criação, remetendo-nos, necessariamente, ao “conjunto dos seres racionáveis

como uma totalidade sistemática”, que “legislam de comum acordo com vistas ao

advento do Bem Soberano” (LEBRUN, 2011, p. 76). Por isso, enquanto nos torna

possível o vislumbrar e o agir tendo em vista o reino dos fins, a FLN, por meio do

exercício da autonomia, é a via através da qual, na totalidade sistemática da

Criação, o homem torna possível a existência da moralidade, materializando, desta

forma, o vínculo necessário de sua existência sensível com o mundo inteligível. A

FLN, por isso, parece-nos ser o corolário do projeto integral kantiano de efetivação,

76

Basta conferir os vários exemplos apresentados na Fundamentação: o suicídio, a falsa promessa, o desenvolvimento dos talentos e a prática da solidariedade (Cf. KANT, 1960, pp. 56-59).

77 Paton ressalta, sobre a FLN, que se ela for considerada meramente como um conselho prático no

estimular a adequação de nossas máximas para serem leis morais, haveria pouco ou nada a ser requerido do agente. Tal argumento apresenta uma fragilidade, pois sugere que levaria a um mero cumprimento do critério intelectual da lei moral, ao menos nos casos dos deveres perfeitos (Cf. PATON, 1947, p. 146). Se levarmos em consideração esta perspectiva, pode-se apontar uma fraqueza no argumento kantiano: ele assume princípios empíricos sem os quais não chegaríamos na pura forma da moral, do que se infere que há, no mínimo, uma fratura no seu projeto ético, sugerindo incompletude.

no mundo sensível, do reino dos fins (Cf. LEBRUN, 2011, p. 78). O homem, agindo

como legislador universal – isto é, como se tudo dependesse dele, de suas ações –

assume no projeto kantiano o protagonismo pela efetivação deste reino

78

. E a

estrutura prática encontrada por Kant na Fundamentação, por meio da qual este

objetivo com vistas ao mundo inteligível se cumpre, é a análise das máximas que

subjazem as nossas ações. Quando universalizadas, estas máximas possibilitam o

juízo moral sobre os deveres, o que só se tornou possível graças à ideia teleológica

do homem enquanto legislador universal, fornecida pela fórmula IA.

É exatamente a partir das diferenças entre as duas fórmulas que Kant

chega à distinção importante à nossa discussão: aquela entre os deveres perfeitos e

os imperfeitos, mesmo que, para Paton, não esteja clara em lugar algum tal

distinção (Cf. PATON, 1947, p. 147). A nós, parece-nos que a aplicabilidade

empírica da fórmula IA, em detrimento da I, é que produzirá os deveres perfeitos e

imperfeitos, e é o próprio Paton que fornece esta possibilidade hermenêutica, ao

afirmar que, enquanto os deveres perfeitos não admitem exceção, os imperfeitos

sim, pois no caso dos perfeitos, devem ser realizadas algumas ações específicas, já

nos imperfeitos estamos obrigados a agir a partir de uma máxima. Paton, referindo-

se aos deveres imperfeitos, diz que “embora nós devamos agir na máxima da

benevolência, é deixado à nossa discrição decidir quem nós devemos ajudar, e em

que extensão devemos ajudar” (PATON, 1947, p. 148) (tradução nossa). Isto nos

leva a crer, por consequência, que “máximas opostas aos deveres perfeitos não

podem nem mesmo ser concebidas como leis da natureza sem contradição”, mas

“as máximas opostas aos deveres imperfeitos podem ser concebidas como leis da

natureza, mas não poderiam ser desejadas enquanto tal sem contradição” (PATON,

1947, p. 148) (tradução nossa), não podendo ser, por isso, universalizadas.

O questionamento que poderia surgir, neste momento, é o seguinte: qual

é a relação entre a discussão das máximas com a da sexualidade? Ao que

respondemos lembrando que homem tem um dever para consigo mesmo enquanto

ser animal, e entre um dos descumprimentos deste dever afigura-se o uso incorreto

da sexualidade, que – e isto é essencial relembrar – está condicionada, segundo

Kant, por um impulso da natureza que visa à conservação da espécie (Cf. KANT,

78

A ideia de vocação do homem na natureza, como vemos, está ligada não à individualidade, mas à coletividade. É o homem enquanto espécie que progride, geração após geração, através do civilizar- se, cultivar-se, moralizar-se por meio das artes e ciências. Tal ideia, portando consigo aquela do progresso, é, como se vê, marcadamente teleológica (Cf. LOUDEN, 2002, pp. 9-10).

2005, p. 343). A doutrina kantiana dos deveres, portanto, está completamente

circunscrita num plano teleológico, e isso inclui, obviamente, os deveres

relacionados à sexualidade. Para analisarmos a relação entre o uso da liberdade e a

sexualidade, poderíamos tomar como exemplo a prática da homossexualidade e a

máxima que a ela subjaz. Ela é passível de universalização sem contradição? Em

outras palavras: ela é concebível no plano ético kantiano a partir do crivo da Fórmula

da Lei da Natureza? Retomemos, a partir de então, o papel da teleologia na

construção dos juízos éticos do filósofo de Königsberg, a fim de analisarmos melhor

esta questão.

Lembremos que, para Kant, “todo órgão é também adaptado a um

propósito ou fim que é um elemento do propósito ou fim total” (PATON, 1947, p. 150)

(tradução nossa), afirmação já presente na KrV:

a razão tem de admitir, necessariamente, como princípio, que não se encontra nenhum órgão, nenhuma faculdade, nenhum impulso, por conseguinte nada de inútil ou desproporcionado ao seu uso, e portanto nada desprovido de finalidade, mas que tudo, pelo contrário, se adapta, rigorosamente, ao seu destino na vida (KANT, 2001, p. 366).

As leis da natureza, em Kant, são responsáveis pela promoção da

completa harmonia no cosmos, e a ação humana deveria sempre levar em