1.3 OS CRIMINA CARNIS
1.3.1 Crimina carnis secundum naturam
1.3.1.1 Prostituição
O autor tenta, no desenrolar do tópico Dos deveres para o corpo em
relação ao impulso sexual, nas LE, responder às perguntas sobre o uso das
faculdades sexuais, e, para tanto, apresenta, primeiro, as formas nas quais não se
pode fazer uso daquelas. São aquelas formas que, na Doutrina das Virtudes, o
filósofo chama de vícios que violam os deveres para consigo mesmo enquanto ser
moral e animal, onde acontece um uso indiscriminado do prazer, o que Kant
denomina de vaga libido. O relacionamento entre a natureza animal e moral do
homem ocupa lugar central nesta discussão. Neste contexto, sabemos que o
impulso sexual, apesar de ser intrínseco à natureza humana, é objetificante. A única
possibilidade, como se viu, para se fazer uso deste impulso sem degradar a
humanidade em si e no outro é o matrimônio. É-nos importante, contudo, também
observar com mais detalhes a análise kantiana das formas que ferem a
racionalidade da sexualidade
– aquelas que, apesar de permitirem a priori a
procriação, não estão interessadas nesta, mas somente na obtenção do prazer
sexual. A prostituição é a primeira delas. Os argumentos centrais para esta
condenação gravitam em torno da fórmula da humanidade e dos conceitos que a ela
se ligam: o uso de alguém simplesmente como meio (objetificação) e as relações
entre corpo e racionalidade.
Após perguntar sobre até onde estamos autorizados a fazer uso do
impulso sexual sem degradar a humanidade, e o quanto podemos permitir que
alguém satisfaça sua inclinação através de nós (Cf. KANT 1997, p. 156), Kant
pergunta: “As pessoas podem se vender ou se alugarem, ou, por qualquer tipo de
contrato, permitir ser feito uso de suas facultates sexuales?” (KANT, 1997, p. 156)
(tradução nossa). Aí está explícita a primeira referência à prostituição, da maneira
que ela é mais tradicionalmente compreendida: a troca do prazer sexual por uma
determinada quantia financeira. Entretanto, já vimos que, utilizando a analogia da
propriedade e do proprietário, o filósofo invoca um argumento que, à primeira vista,
cria uma impossibilidade lógica para uma provável aprovação moral da prostituição.
Como o ser humano é proprietário, não pode ser, concomitantemente, propriedade,
isto é, coisa. Como ele não é coisa, não tem propriedade sobre si mesmo, sendo-lhe
vedada a possibilidade de vender até mesmo um dente ou qualquer um de seus
membros, quanto mais o uso de suas faculdades sexuais. Ao fazer isso, ou ao
permitir-se ser tratado desta forma, o indivíduo está permitindo que a sua
humanidade seja degradada, visto que ela está sendo tratada como simples objeto
de satisfação do desejo sexual.
Desta forma, a fórmula da humanidade é explicitamente ferida
30. Tratar
um ser humano como meio é um atentado àquilo que o constitui enquanto tal: a sua
humanidade, que faz com que o homem seja sempre um fim em si mesmo, graças à
capacidade racional, da qual ele é possuidor. Sendo a razão aquilo que nos eleva
sobre todas as outras criaturas, deve-se suspeitar de qualquer coisa que vá contra
ela – máximas, ações, instintos – pois nisto há uma redução do nosso status e um
prejuízo ao nosso valor moral (Cf. MADIGAN, 1998, p. 108). Segundo Green, o
significado da expressão kantiana tratar alguém como meio, neste sentido, é o da
separação de alguns aspectos físicos da pessoa para o uso ou para a gratificação. É
o que ele chama de Interpretação da Dignidade/Integridade da fórmula da
humanidade (Cf. GREEN, 2001, p. 252). É esta interpretação que marca nossa
compreensão da condenação kantiana à prostituição
31.
Voltando às LE, mais à frente, o filósofo continua a expor seu pensamento
sobre o crimina carnis aqui em questão:
Os seres humanos não têm o direito, portanto, de se entregarem por lucro, como coisas, para o uso de outra pessoa, como um instrumento para a satisfação da inclinação (...) Nada é mais vil do que usar o dinheiro para dar a outra pessoa, de modo que sua inclinação seja satisfeita e permitir que aquela própria pessoa seja alugada. (KANT, 1997, p. 157) (tradução nossa)
Quando Kant faz referência ao pagamento ou cobrança pela satisfação do
desejo sexual, pode-se correr o risco de pensar que o acréscimo do valor financeiro
é o fundamento principal do seu argumento de condenação à prostituição. Na
verdade, a prostituição não é condenável pelo simples fato de agregar valor
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É interessante perceber que, até então, Kant não faz referência alguma ao fim da procriação, que seria o fim natural para qualquer uso da sexualidade. O que acontece é que a prostituição é um
crimina carnis secundum naturam, isto é, acontece numa relação que, hipoteticamente, permite a
geração da vida, mas age contra a razão, que ordena usar a humanidade sempre como um fim em si mesmo, e nunca como um mero meio. Em relação a este crimina carnis, portanto, é a FH que serve como critério de fundamentação do dever.
31
Conforme Green, há três interpretações da expressão tratar alguém simplesmente como meio: a primeira é chamada Ofensas contra a vontade racional, que se foca nos atos destrutivos, autocontraditórios e ofensivos em relação à razão, como o suicídio; a segunda é a citada no texto; e a terceira é a Co-legislação imparcial, centrada na capacidade humana de legislar, estabelecendo fins, no mundo sensível, que se ajustam à realidade supra-sensível. Aprofundaremos, no próximo capítulo, estas distinções (Cf. GREEN, 2001, pp. 251-256).
financeiro ao sexo, mas porque, ao fazer isso, as pessoas estão sendo tratadas
como mercadorias, isto é, como coisas, que estão à disposição de si e dos outros
(cf. MADINGAN, 1998, p. 108). O próprio filósofo afirma que este comportamento é
condenável porque “o homem não é sua própria propriedade, e não pode fazer o
que ele quer com seu corpo; pois já que o corpo pertence ao eu, ele constitui, em
conjunção com este, uma pessoa” (KANT, 1997, pp. 157-158) (tradução nossa). A
mercantilização dos indivíduos, como fica claro pelo exposto, os coisifica. A
insistência nesta perspectiva de coisificação não é redundância do autor. Tratar
alguém como coisa, o que acontece quando o que se tem em vista é a mera
satisfação do apetite sexual presente em nós, isto é, a satisfação de uma inclinação
sensível – que pode acontecer na prostituição ou não – causa uma fissura na
harmonia da personalidade humana, que é, para Kant, razão e sentidos. Isto porque
o tratar alguém como coisa
se relaciona à preocupação com apenas uma parte da pessoa, ao invés da personalidade de alguém em sua totalidade. E isso mostra uma falta de respeito para com as capacidades racionais do outro indivíduo, em oposição às suas qualidades sensitivas. (MADINGAN, 1998, p. 109) (tradução nossa)
Na prostituição, há uma fixação naquilo que as qualidades sensitivas de
alguém podem oferecer, em detrimento de sua atividade racional. Em outras
palavras, é como se o indivíduo fosse somente uma genitália da qual se pode
usufruir o quanto se deseja, afinal, se está pagando para isso. Deste modo, a falta
de respeito com as capacidades racionais do indivíduo, na verdade, é uma mácula à
sua humanidade, dado que esta se constitui justamente na capacidade racional de
estabelecer fins. Olhar o corpo e desprezar a racionalidade que é inerente a esse
corpo se constitui numa deturpação da antropologia kantiana, que é essencial para a
compreensão da lógica de sua moral. Percebe-se, então, que subjacente à
condenação kantiana à prática da prostituição está o seu conceito de ser humano,
que é constituído de corpo e self, sendo estes inseparáveis. Tal conjunto também
pode ser chamado de personalidade racional (Cf. HERMAN apud PAPADAKI, 2007,
p. 332). O que se vê aí é a recorrência à fórmula da humanidade para ratificar o
discurso de condenação à prostituição. É o imperativo categórico, coluna que
sustenta o edifício ético kantiano, invocando proteção à existência moral que se vê
ameaçada pela unilateralização da personalidade humana. O corpo não pode ser
um mero instrumento à disposição do sujeito moral. Não podemos usá-lo como bem
entendemos. O corpo é um aspecto importantíssimo da constituição do próprio
sujeito, tornando-se essencial na unidade da pessoa e partilhando, por isso, da
dignidade do ser racional, o que faz com que o nosso tratamento com relação a ele
seja regido pelas leis morais. Isto porque
a natureza animal de alguém (isto é, corpo, impulsos e capacidades) desempenha um papel necessário e substancial no apoio à existência e eficácia da natureza racional de alguém; além disso, já que ninguém pode separar-se do próprio corpo, seu tratamento dele reflete sua relação consigo como um todo. (DENIS, 1999, p. 229) (tradução nossa)
Esta fixação no usufruto do prazer sexual advindo do corpo, de modo
especial naquilo que a genitália pode oferecer, desconsidera, como vimos, a
racionalidade própria dos seres humanos, animalizando-os, alienando a
personalidade moral (Cf. RICHARDS apud NAHRA, 2005, p. 84). Parece-nos claro,
portanto,
que não é o caso do comércio sexual ser condenado enquanto venda de partes do corpo [como seria a condenação da venda de um dente ou membro]. Ao invés disso, ele é condenável porque significa se oferecer para um outro meramente para satisfazer o apetite sexual, já que conceder as partes sexuais para outro implica em conceder-se inteiramente. (NAHRA, 2005, p. 85) (tradução nossa)