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1.3. O Pensamento Religioso de Dostoievski

1.3.3. A liberdade na condição humana em Dostoievski

O humano em Dostoievski é livre. Evidentemente é preciso compreender o que é liberdade para Dostoievski. Segundo Evidokimov, em Dostoievski, liberdade não é um ―quê‖, mas um ―como‖, é algo que se dá em processo. Isso implica que não se pode dizer o que significa ser livre, apenas ―sofrer o fato de ser livre.‖120 Berdiaeff interpreta essa liberdade como a liberdade da alma, que se dá por meio das profundezas da livre consciência humana, portanto, supõe infinidade, uma liberdade sobrenatural.121

Para o homem moderno, segundo Pondé, é complicado compreender essa liberdade de Dostoievski, uma vez que a idéia moderna de liberdade tem um caráter essencialmente jurídico e político, compreendido dentro das limitações da convivência em sociedade e, até mesmo a liberdade moral, é vivenciada nesse sentido. Pondé tenta retratar esta liberdade sobrenatural mencionando Evidokimov.

118 Cf.PONDÉ. Luis. F. Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski .p.114.

119 BERDIAEFF, Nicolas. El Credo de Dostoievski. p 37

120 EVDOKIMOV apud PONDÉ. L. F. Critica e Profecia. A filosofia da Religião em Dostoievski. p.177.

121 BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p.77.

Segundo Evidokimov, uma característica do homem desgraçado é buscar determinismos, porquanto a liberdade essencial do ser humano, que ele conta com a contingência absoluta, não tem lugar na representação. Tal ser humano sobrenatural radicalmente livre e sem lugar na representação é exatamente um dos temas centrais de Dostoievski/.../ neste sentido, toda forma de definição de liberdade equivale à tentativa vã de definir Deus, a contingência absoluta, de ―prender o incognoscível em nós‖/.../ A idéia por trás dessa liberdade identificada pela ortodoxia e por Dostoievski em sua obra é, enfim, a idéia de que fora de Deus não há liberdade.122

Ao mencionar sobre as palavras do inquisidor,123Berdiaeff afirma que Cristo nega o milagre, o mistério e a autoridade na tentação do deserto (narrativa dos evangelhos Mt 4,1-11;

Lc 4,1-13). Ao negar esses elementos, ele está negando toda uma violência contra a consciência humana e limitação de sua liberdade. O milagre deve preceder a fé e não o contrário, pois somente assim a fé é livre. Com a aparição de Cristo nada viola a consciência humana, por isso, a religião do Gólgota é para Dostoievski a religião da liberdade.124

Dostoievski mostra que a liberdade pode matar a si mesma e demonstra isso através da rebeldia e insubordinação de Ivan Karamazov.125 A liberdade, como insubordinação e auto-afirmação do homem, conduz a negação não somente de Deus, mas do mundo, do próprio homem e da liberdade.126 Esta é uma inquietação que Dostoievski tem com o humano moderno, o qual nega esta liberdade da alma e acredita que a ciência vai descobrir a chave da auto-compreensão humana e que o humano é ―um ser em busca de suas causas naturais.‖ Para Pondé, Dostoievski encara esta paixão da modernidade pelo determinismo como uma segunda queda e que esse humano moderno acredita demais na razão, nas suas próprias ideias.127 Esta crença em si mesmo é para Dostoievski a destruição da imagem de Deus, o que faz o niilista, entendendo que assim coloca o humano em seu devido lugar: ―isto é a passagem de Deus ao homem divinizado; não o homem divinizado na figura de Jesus, mas o homem divinizado no lugar de Deus‖.128 À medida que se perde o referencial vertical, o ser humano se desfaz, se dissolve. ―Então não sobra ser humano para ficar no lugar de Deus; o que sobra é o espetáculo do niilismo, o espetáculo da dissolução da condição humana.‖129

122 PONDÉ. L. F. Critica e Profecia. A filosofia da Religião em Dostoievski p.116,117.

123 O Grande inquisidor é uma parábola mencionada por Ivan Karamazov ao seu irmão Aléxis Karamazov, em uma discussão sobre fé e niilismo no livro Irmãos Karamazovi.

124 Cf.BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p. 82.

125 Ivan Karamazov e uma das personagens do clássico de Dostoievski. Os irmãos Karamazovi.

126 Id.ibid. p. 86.

127 PONDÉ, Luis. F. Critica é Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 178.

128 EVDOKIMOV apud Luis. F. Critica é Profecia. A filosofia da religião em Dostoievski. p. 179.

129 Id. Ibid. p. 179.

Berdiaeff apresenta duas liberdades em Dostoievski: A que escolhe o bem e o mal e a que existe dentro do bem ou o que ele denomina de liberdade irracional e liberdade racional dentro da razão.

Esta dignidade do homem e sua fé, lhe obrigam a reconhecer ambas as liberdades: a de escolher entre o bem e o mal e a liberdade dentro do Bem; a livre escolha da verdade e da liberdade dentro da verdade. Não pode ser identificada a liberdade com o Bem, a Verdade ou a Perfeição. Tem sua natureza própria. Se a identifica com o Bem ou a Perfeição, é negá-la e reconhecer e aceitar o princípio de uma obrigatória imposição. Pois o Bem livre – que é o único e verdadeiro Bem – admite, necessariamente, o Mal também livre. E nisto consiste a tragédia da liberdade, que tão profundamente é estudada e analisada por Dostoievski. Esta é a entranha do mistério do cristianismo. Se inicia a dialética trágica. O Bem não pode ser imposto, não se pode impor o Bem a nada. A liberdade de fazer o Bem admite a de fazer o Mal. Pois esta conduz a supressão da mesma liberdade e tudo degenera ante esta fatal necessidade do Mal. E se, ao contrário, negamos a liberdade de fazer o Mal e só admitimos a de fazer o Bem, tudo degenera na fatal necessidade de fazer o Bem. E, portanto, se suprime a liberdade. Pois, esta ―fatal necessidade boa‖ já não é Bem, pois o verdadeiro Bem não pode existir sem a liberdade.130

Cristo, para Dostoievski, não é somente a verdade que dá liberdade, senão também, a verdade da liberdade e o ―Anticristo não é qualquer outra coisa que a negação da liberdade da alma humana e qualquer imposição da consciência.‖131 O niilismo e a revolução que antevia na Rússia não traria liberdade, pelo contrário, traria escravidão para as almas humanas. ―Para Dostoievski só existe uma forma de viver a liberdade de forma real/.../trata-se de exercer a liberdade dentro e em meio ao amor.‖132

130 BERDIAEFF, N. El Credo de Dostoievski. p. 72.―Esa dignidad del hombre y su fe, le obligan a reconocer ambas libertades: la de elegir entre el Bien y el Mal y la libertad dentro del Bien; la libre elección de la Verdad y a libertad dentro de la Verdad. No puede ser identificada la libertad con el Bien, la Verdad o la Perfección. Tiene su naturaleza propia. Si se identifica con el Bien o la Perfección, es negarla y reconocer y aceptar el principio de una obligatoria imposición. Pero el Bien libre – que es el único y verdadero Bien – admite, necesariamente, el Mal también libre. Y en esto consiste la tragedia de la libertad, que tan, profundamente ha estudiado y analizado Dostoievsky. Esa es la entraña del misterio del cristianismo. Se inicia la dialéctica trágica. El Bien no puede ser impuesto, no se puede imponer el Bien a nadie. La libertad de hacer el Bien admite la de hacer el Mal. Pero ésta conduce a la supresión de la misma libertad y todo degenera ante esa fatal necesidad del Mal. Y si, al contrario, negamos la libertad de hacer o Mal y sólo admitimos la de hacer o Bien, todo degenera en la fatal necesidad de hacer el Bien. Y por lo tanto se suprime la libertad. Pero, además, esa ―fatal necesidad buena‖ ya no es el Bien, puesto que el verdadero Bien no puede existir sin la libertad.‖

131 Id. ibid. p. 84.

132 PONDÉ, Luis. F.Critica e Profecia. A filosofia da religião em Dostoievsky .p. 180.