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A linguagem adultocêntrica: A diminuição da criança

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CAPÍTULO I CRISTIANISMO DA LIBERTAÇÃO, INFÂNCIAA

1.8 A linguagem adultocêntrica: A diminuição da criança

“Este menino é bonitinho”. “Sua fala foi lindinha”. “Que comidinha maravilhosa!” No Brasil é recorrente o uso de diminutivos na fala e na escrita cotidiana. Claro que, assim como na utilização de qualquer palavra, é preciso perceber bem o contexto no qual está sendo aplicada para melhor entender o que o/a pronunciante está querendo significar. A utilização das “palavrinhas” pode expressar uma ironia, um carinho, uma acentuação na pequenez da coisa, entre outras intenções.

55 É importante dizer que o autor assume a estreita relação que o seu conceito de ideologia tem com o de Marx, contudo, sem deixar de fazer a crítica necessária e o ampliando: “Mas é importante enfatizar que relações de classe são apenas uma forma de dominação, constitui apenas um eixo da desigualdade e exploração; as relações de classe não são, de modo algum, a única forma de dominação e subordinação. Com a ajuda da visão à distância fica claro que a preocupação de Marx com as relações de classe era enganadora, sob certos aspectos. Embora Marx estivesse correto em enfatizar a importância das relações de classe como uma base da desigualdade e exploração, ele parece negligenciar, ou menosprezar, a importância das relações entre os sexos, entre os grupos étnicos, entre os indivíduos e o estado, entre estado-nação e blocos de estados-nação; ele tendeu a pressupor que relações de classe formam o eixo estrutural das sociedades modernas e que sua transformação era a chave para um futuro livre de toda dominação” (THOMPSON, 2011, p. 77-78).

Analisando memórias e livros a respeito da infância no século XIX, a historiadora Miriam L. Moreira Leite (2016, p. 36) alertou para a polissemia das palavras e aponta como, já em tal século, o diminutivo estava sendo empregado no Brasil. “Os diminutivos também, tanto podem significar tamanho pequeno quanto pouca idade ou simplesmente uma forma afetiva de tratamento, sem referência a tamanho ou cor, como meu neguinho”.

No entanto, atualmente o sufixo inho/inha tem sido usualmente empregado para se referir à criança ou para se comunicar com ela. “Que gracinha! Esse vestidinho amarelinho combinou muito bem com o sapatinho da garotinha”. Quantas coisas existentes para o público adulto sofrem mudanças quando direcionadas às crianças: “Escolinha de futebol”; “Carrinho de bebê”; “Cantinho da leitura”; “TV Globinho”; Festinha de aniversário etc.

Há aqueles que discordam que adultos façam uso de palavras no diminutivo e os acusam de estarem promovendo uma verdadeira infantilização, com os outros ou consigo mesmo. Até esses acabam reforçando que tal uso é mesmo coisa de criança. Afinal de contas, “não pega bem” para um adulto ficar usando palavras “infantilizadas”.

Na atual sociedade capitalista o desejo de ter mais, de acumular, de possuir uma maior quantidade possível de bens é considerado um valor. Portanto, quando se quer dizer que alguém ou algo tem importância, costuma-se empregar advérbios de quantidade (intensidade), substantivos aumentativos e/ou expressões que pressuponham classificação superior. Por exemplo: “muito importante”, “grande importância”, “demasiadamente importante”, “coisa de gente grande”, “de primeira qualidade”, “de primeiro mundo”, “ensino superior”, “primeira classe”. Nesse sentido, o que não tiver equivalência com uma quantidade maior fica desvalorizado socialmente.

O adultocentrismo alimenta e é alimentado pela sociedade do lucro, do acúmulo, na medida em que o adulto é identificado com aquilo que é mais e maior, enquanto a criança representa e é representada com o que é menos e menor. Nesse contexto, a linguagem representa valores etários e suas relações de poder.

Na sociedade capitalista o pequeno ou o pouco é desvalorizado. Talvez seja por isso que chamar crianças e adolescentes de “menor” carrega um peso tão pejorativo. O menor é aquele que não tem o mesmo tamanho que os adultos (mesmo que alguns adolescentes tenham uma estatura maior que muitos adultos); é como se

ainda faltasse um pedaço, está incompleto; que não é igual aos mais velhos. Para o adultocentrismo menor será sempre menos.

O linguista russo Mikhail Bakhtin (2002, p. 97-98) assinalou que as relações sociais e a produção da linguagem são inseparáveis.

Cada época histórica da vida ideológica e verbal, cada geração, em cada uma de suas camadas sociais, tem a sua linguagem: ademais cada idade tem a sua linguagem, seu vocabulário, seu sistema de acentos específicos, os quais, por sua vez, variam em função da camada social, do estabelecimento de ensino (a linguagem do cadete, do ginasiano, do realista são linguagens diferentes) e de outros fatores de estratificação (BAKHTIN, 1998, p. 97-98). O sufixo “ão”, por exemplo, produz valor social às palavras e às coisas, pois amplia o tamanho do significante e consequentemente sua importância. Seu antagonista, portanto, é o sufixo “inho/inha”. É comum, por exemplo, profissionais de saúde em atendimento pré-natal ou em consultas pediátricas tratarem mulher grávida de “mãezinha”. Assim, tudo que é biológico e socialmente reconhecido como menor e com menos força, tais como as crianças, adolescentes, mulheres e deficientes, é hierarquicamente diminuído.

Enquanto para as crianças e as mulheres está reservado o sufixo “inho/inha”, para o homem adulto heterossexual o sufixo “ão”, demonstrando-lhe superioridade não somente em relação ao feminino e ao infantil, mas também a outros homens. Tal como são denominados os estádios de futebol, espaços majoritariamente frequentados e governados por homens adultos e locais onde se pratica e é cultuado o esporte mais amado pelos brasileiros: Geraldão, Castelão, Albertão, Prudentão, Mangueirão, Barradão, dentre outros. Embora nem todos esses nomes sejam oficiais, são, no entanto, mais conhecidos. Isso mostra o quanto seus frequentadores valorizam tais construções e as atividades ali realizadas. E provavelmente também acreditam que serão igualmente “engrandecidos” por ali estarem.

Ainda no âmbito do futebol existem nomenclaturas utilizadas para identificar a categoria conforme as idades dos jogadores, sendo que aquelas denominadas com palavras no diminutivo ou que indiquem os primeiros meses de vida são reservadas para as crianças esportistas: “chupetinha”, “fraldinha”, “mamadeira”, “dente de leite”, pré-mirim”, “mirim”.

Até alguns movimentos sociais, que combatem a hierarquização nas relações sociais, podem estar reproduzindo a linguagem adultocêntrica, mesmo nas melhores

intenções de querer “empoderar” a meninada. O Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra, por exemplo, apesar de considerarem que sua educação com as filhas e filhos de camponeses é “revolucionária”, insistem em chamá-las de Sem Terrinhas.

Os argumentos para continuarem usando o diminutivo, como uma forma de reconhecimento da especificidade (por seu tamanho?) da criança ou como uma forma de demonstrar carinho para esta parcela da população tão marginalizada, são bastante deficitários. Pois, tal situação se assemelha àquela criticada por feministas e pelas discussões de gênero: a invisibilização da mulher pela masculinização da gramática e da fala. No mesmo sentido da defesa por uma linguagem inclusiva de gênero é preciso pensar também numa linguagem que reconheça as crianças como pessoas que são, e não meramente como um vir a ser.

A luta entre segmentos sociais expressa-se também na luta consciente e inconsciente entre as diversas, diferentes e contraditórias materializações linguísticas de suas diferentes visões de mundo. A dominação de classe dá- se e consolida-se por meio da dominação de linguagem. Em uma sociedade dada, a linguagem dominante tende a ser a linguagem da classe dominante. A hegemonia de uma classe impõe-se igualmente pela hegemonia de sua linguagem (CARBONI; MAESTRI, 2012, p. 109).

Da mesma forma que as dominações de classe e de gênero se consolidam pela dominação da linguagem, assim também acontece a consolidação da dominação sobre outras categorias sociais, incluindo a geracional.

Destarte, o uso da fala e da escrita precisa igualmente estar em sintonia com aquilo que a luta pela valorização e o reconhecimento devido às crianças e aos adolescentes se propõe. Pois, conforme Carboni e Maestri (2012, p. 114), “[...] na luta pela libertação social, não importa apenas o que se diz e, portanto, o que se escreve, mas também o como se diz e o como se escreve”.

Por fim, o adultocentrismo e os demais conceitos elucidados neste capítulo são essenciais para melhor se compreender a história do nascimento da educação popular com crianças e adolescentes na periferia urbana da Arquidiocese de Olinda e Recife, importante expoente do cristianismo da libertação, como se verá no próximo capítulo.

CAPÍTULO II - A EXPERIÊNCIA DA ILHA DO MARUIM E A EDUCAÇÃO POPULAR

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