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1.(RE)PENSANDO AS RELAÇÕES ENTRE LITERATURA E SOCIEDADE

4. CONTO: UM GÊNERO LITERÁRIO QUE RESISTE AO TEMPO

4.2. NEI LOPES – SAMBA EM VERSO E PROSA

4.2.4. A linguagem que “sai (não desfila)” n(d)o conto

―Hoje, Seu Manduca sai (‗quem desfila é soldado‘, costuma dizer) na Velha Guarda da escola que ajudou a fundar.‖ (LOPES, 2006, p. 112); ―[...] apesar de sair (quem desfila é soldado)‖ (LOPES, 2006, p. 114) – O narrador apresenta as explicações, a escolha da palavra, que rompe com as relações de autoritarismo, de regras, quando se pensa na palavra desfile, que pode ser definida como ―marchar ou passar em filas; seguir-se um ao outro‖49. Essa ruptura se fortalece no verbo ―sair‖, que traz as conotações de exposição, de liberdade, de exteriorização de sentimentos.

Na relação da fundação das agremiações com a própria história da participação dos negros na construção do país, heróis invisíveis que são, ―num gestual que simbolicamente dizia: ‗Vejam! Todo o esplendor de que vocês desfrutarão agora, fomos nós que semeamos, com nosso suor e nosso sangue; para oferecer hoje a vocês, respeitável público!‖ (LOPES, 2006, p. 111)

No trecho anterior, a linguagem se configura por um grupo de palavras que se unem não só para expressar a presença do negro, num dos maiores espetáculos brasileiros, mas também todo trabalho escravo e livre que marcam a presença negra no Brasil.

Traz ao cenário a palavra porta-machado - ―saiu como porta- machado no Flor do Lavradio, ainda no tempo dos ranchos‖ (LOPES, 2006, p. 111), que, segundo Louise Peres50, remonta aos batedores que cercavam o casal de baliza e porta estandarte brandindo ―machadinhas‖ no tempo dos ranchos.

48

Segundo Cuti (2011) ―inconsciência negra, algo que não é o resultado de mera elaboração intelectual, algo que, por ter sido já elaborado, vai além dela. Pertence mesmo ao estar-no-mundo.‖ (grifo do autor) (p. 55)

49

definição retirada do dicionário Michaelis: Dicionário de Português Online.

Disponível em

http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues- portugues&palavra=desfilar. Acesso em 7 de novembro de 2013.

50

Louise Peres - Veja Rio - 07/02/2012 – ABC do Samba. Disponível em http://clubalfa.abril.com.br/entretenimento/especial/o-abc-do-samba/ Acesso em 7 de novembro de 2013.

Aparentemente, num amálgama de Othelo, de Shakespeare, e Otelo (Grande Otelo), surge a personagem de nome Lord Othelo, que declama, no primeiro casamento de Seu Manduca, o poema do ―Negrinho Bastião‖. Pesquisas, no sentido de identificar a existência desse poema, não encontraram nenhum registro.

Segundo Deise de Brito (2011), ―Bastiãozinho‖ foi um dos apelidos de infância de Grande Otelo, o que permite inferir que a escolha do nome Lord Othelo e do poema ―Negrinho Bastião‖ não foram aleatórias e que essas analogias podem estar relacionadas ao fato de o escritor, sendo pesquisador, cujo trabalho ―é referência entre os estudos e cultura afro-brasileira‖ (EVARISTO, 2011, p. 140) ter utilizado esses nomes propositalmente.

Ao se referir às cores utilizadas para a decoração da festa do terceiro casamento de Seu Manduca, relaciona o vermelho e o branco, utilizados na escola de samba do protagonista e por Xangô, que é um orixá ligado à força.

Esses trechos e palavras se afinam com a definição de linguagem feita por Eduardo de Assis Duarte (2011), pois apontam para ―uma discursividade que ressalta ritmos, entonações e, mesmo, toda uma semântica própria, empenhada muitas vezes num trabalho de ressignificação que contraria sentidos hegemônicos na língua.‖ (p. 394)

Portanto, o conto aqui analisado apresenta uma linguagem que identifica uma literatura afro-brasileira.

4.2.5. O(a) professor(a) descortinando “Uma furtiva lágrima” Como já foi revelado na análise do conto de Cuti, o(a)s professore(a)s participantes do Curso de formação de professores observaram a presença de elementos identificadores de uma literatura afro-brasileira, a partir da leitura dos cinco contos, que estão sendo aqui analisados, percebeu-se que, para o conto ―Uma furtiva lágrima‖, novamente, os cursistas verificaram traços de afro-brasilidade em trechos do texto, mas, conforme se pode averiguar no Gráfico, a seguir, a menção aos elementos identificadores não foi alcançada pela maioria.

Gráfico 2 – Presença de identificadores no conto de Nei Lopes 0 10 20 30 40 50 60 70 Elementos Identificadores temática autoria ponto de vista linguagem público texto

O Gráfico demonstra que os cursistas concebem a existência de uma literatura afro-brasileira e que, neste universo, os elementos identificadores ainda engatinham. Portanto, a temática se evidencia, seguida da linguagem, que, neste conto de Nei Lopes, é permeada pelo samba, universo marcadamente brasileiro e, naturalizado como constituinte da cultura da população negra, o que facilita o reconhecimento por parte dos cursistas.

Essa afirmação se fundamenta no fato de que no inconsciente coletivo se insurge a ideia de que ―samba é coisa de negro‖, automaticamente, um conto que fala de samba, de carnaval se encaixa na literatura afro-brasileira.

A afirmativa é falsa? É possível encontrar na história dados que adunam os sujeitos negros às origens do samba, porém se faz necessário positivar o reduto do samba e do carnaval como território negro, de manifestação cultural, uma vez que a alegação também transporta uma carga de negatividade, que limita o universo dos sujeitos negros, já que se perdem de vista as nuances culturais e de resistência desse gênero musical.

Observando o Gráfico, percebe-se que nenhum cursista considerou a possibilidade da existência de um público leitor negro. Esse dado poderia ser um indício de que, para esses cursistas, inexiste a perspectiva de se investir na criação de um público alvo formado pelos negros e negras brasileiras? A leitura do elemento identificador

―público‖ não foi devidamente analisada? A temática envolvendo carnaval e samba não cria essa expectativa?

Esses questionamentos servem para se pensar a proposta dos Cadernos Negros, que buscavam esse público ideal, capaz de se identificar na escrita feita por negros(as). Os relatos dos integrantes do Quilombohoje retratam algumas experiências feitas na busca desse leitor ―ideal‖, como a narrada por Cuti (2011):

O Assunção me disse: ‗Olha, tem uma mulher que disse que todo dia toca o CD‘. Então veja: você está comunicando com um universo de ouvintes e leitores que talvez antes não tenham sido leitores ou ouvintes de poesia. E, esse universo pensa, esse universo sente, esse universo tem em si uma concepção muito própria do que ele gosta, e é nesse contato que a gente vai fazendo, como disse a Nazareth, a obra. (p. 58)

Esses cursistas são professores de Literatura e, dentre os identificadores, o único que lhes passa totalmente despercebido é o público. Pensando no papel de mediador entre o jovem leitor e o texto literário, que lhes foi apontado no início deste estudo, esse dado se torna pelo menos preocupante.

Outro dado que pode ser destacado é que, dos setenta e dois cursistas que responderam essa atividade, apenas dezoito perceberam o conto ―Uma furtiva lágrima‖ como um conto afro-brasileiro. Estes citaram trechos do conto ao fazer essa relação. Destaca-se um cursista, que além de mencionar, teceu o seguinte comentário:

Um dos contos que, no meu modo de ver, mais demonstra aspectos da literatura afro-brasileira é ―Uma furtiva lágrima‖, de Nei Lopes. A Temática envolvendo elemento de cultura afro-brasileira – escola de samba – e religiosidade: ―(...) A sede da Capelinha toda embandeirada de vermelho e branco, cores da escola e do Xangô Ogodô de Seu Manduca (...)‖ (CursistaS)

O depoimento do cursista parece imprimir a ação dos contos sobre o leitor. Percebe-se que a leitura literária impacta seus leitores de forma diferenciada. A percepção desse cursista extrapola a simples citação e se arrisca na tessitura de comentários.

Essa declaração acima também auxilia no esclarecimento de que os cursistas se sentem à vontade em escolher alguns contos, e que esta

opção leva em conta traços de literatura afro-brasileira, registrada por meio de pequenos excertos extraídos do conto eleito por eles.

Nessa perspectiva, o número de dezoito cursistas, que citaram o conto em análise, não fragiliza a inserção do mesmo no contexto da literatura afro-brasileira, significa que, no âmbito dos cinco contos apresentados e para esse grupo de setenta e dois professores(as), ele não foi o conto que mais chamou a atenção. Essa ideia se faz presente no depoimento do cursista que, dentre as suas escolhas, reporta-se apenas ao conto ―Olhos d‘água‖. Ele relata ―Os demais contos também apresentam algumas características, no entanto, no que identifiquei melhor foi o citado acima.‖ (Curssita T)

Nota-se, portanto, que os cursistas optaram por alguns contos em detrimento de outros, o que é admissível, uma vez que a atividade permite essa abertura.

4.3. JÚLIO EMÍLIO BRAZ, ESCRITOR DE JOVENS LEITORES