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A Literatura Testemunhal de Levi

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A literatura testemunhal de Primo Levi traz à tona os absurdos inimagináveis em torno desta carnificina, vividos pelos Häftling12. Ela sai em busca dos rastros dos Häftling- sobreviventes, dos afogados, aqueles que foram exterminados logo após a entrada no Lager e aqueles que padeceram pela fome, pela sede, pelos terríveis maus tratos e trabalhos inúteis imputados pelos alemães. Seus livros também retratam os “muselmann”13, os intestemunháveis, os que sucumbiram à morte, os integrantes do sonderkommand14 (obrigados a participar da Solução Final do seu povo). As obras abordam ainda o poder alemão, espelhado e presentificado pelos oficiais e soldados das SS.

Muitos historiadores, filósofos, cientistas e literatos buscam e buscaram entender os rastros deixados pelos Häftling dos Lager, entender como “um homem pode fazer tanto mal a outro homem”. O rastro para, Walter Benjamin (2006), é a marca, (a pegada) deixada por um animal em seu caminho, cabe ao caçador, recompor, a partir dessas marcas, um percurso que o permita encontrar o animal buscado. O rastro, segundo Gagnebin (2006) inscreve a lembrança15 de uma presença que não existe mais e que

sempre corre o risco de se apagar definitivamente.

Por que a reflexão sobre a memória utiliza tão frequentemente a imagem – o conceito – de rastro? Por que a memória vive esta tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da memória e do rastro. (GAGNEBIN, 2006: 44 - grifo da autora)

12 Häftling (prisioneiro em alemão). Nos livros de Primo Levi escrito também como Häftlinge. Mantivemos

somente uma grafia, para facilitar a leitura, Häftling e por ser mais comumente utilizado nos livros de Primo Levi.

13

Muselmann (muçulmanos em alemão). Na linguagem do Lager, era o prisioneiro que havia abandonado

qualquer esperança de sobrevivência.

14 Os Sonderkommand (Os Esquadrões Especiais), na qualidade de portadores de um horrendo segredo,

eram rigorosamente separados dos outros prisioneiros.

15

Halbwachs afirma que a lembrança, é em larga medida uma reconstrução do passado com ajuda de dados

emprestados do presente e, além disso, preparada por outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora se manifestou já bem alterada. (HALBWACHS apud SELIGMANN, 2003)

Benjamin considerou ser impossível uma narrativa linear e totalizadora porque ele entende a interpretação do humano em pautas que envolvem componentes dissociativos e cindidos. Por isso, o rastro não estaria encaixável nesta narrativa linear, pois ele produz cortes, esquecimentos e dissonâncias (desarmonia).

Levi sempre buscou os rastros sobre a aniquilação total e proposital dos judeus pelos nazistas nos Lager, comprovar a tentativa dos alemães de apagar os rastros do que fizeram principalmente próximo do término da guerra, quando a derrota era eminente. A queima dos arquivos dos Lager mostra isso e dos corpos, antes apenas empilhados aos milhares ou colocados em valas comuns. Os cadáveres eram tratados dessa forma – espalhados em covas pelos campos de concentração – em razão de os nazistas acreditarem em uma vitória certa. No entanto, aos poucos, perceberam ser necessário apagar os rastros. Eles fizeram uma revisão: melhor apagar tudo.

Os próprios prisioneiros foram obrigados a desenterrar aqueles pobres restos e a queimá-los em fogueiras a céu aberto, como uma operação dessas proporções, e tão incomum assim, pudesse passar totalmente inobservada. (LEVI, 1990: 2)

A obra literário-testemunhal de Levi está contextualizada em Auschwitz. Em seu caso, fica mais patente a consideração de que todo enunciado só tem sentido no contexto em que é produzido. Há um sujeito, um EU que se coloca como o responsável pelo que se diz e é em torno desse sujeito-testemunha que são organizadas as referências de tempo e de espaço. No caso da Shoah, a testemunha é a pessoa portadora da memória. Ser testemunha judia do nazismo significa, assim, ser também sobrevivente em relação a ele. Agamben, em O que resta de Auschwitz (2008), fala que, em latim, há dois termos para representar a testemunha. O primeiro, testis, de que deriva o nosso termo testemunha (qualquer testemunha) significa etimologicamente aquele que se põe como terceiro, entre dois contendores. O segundo, superstes, indica aquele que viveu algo, atravessou até o final um evento e pode, portanto, dar testemunho. Já o testemunho é a compilação de relatos, narrativas, documentos, registros referentes àquilo sobre o qual se fala.

Levi ao escrever a história dos Lager, coloca que não teve como objetivo formular novas acusações ou levar ao conhecimento dos leitores pormenores atrozes sobre os campos de extermínio, mas talvez fornecer documentos para um estudo sereno sobre a alma humana, por isso sua narrativa teve um caráter pioneiro com relação ao relato testemunhal. Quando o mundo ainda se encontrava sob o caos pela destruição provocada pela guerra e estarrecido pelos milhões de mortos nos campos de concentração e de

extermínio nazista, Levi em Se isto é um homem16, editado 1947 descortina totalmente o mistério dos Lager, sempre ocultado pelos alemães. Sua leitura encontrou pouca receptividade entre os leitores. O momento era de constrangimento político e psicológico e de pouca disposição individual e coletiva para revolver uma ferida ainda pungente. Era o mesmo constrangimento, quem sabe, quando os soldados russos chegaram a Auschwitz, em 27 de janeiro de 1945 e se depararam com a ignomínia e o indescritível.

Quatro jovens soldados a cavalo, que agiam cautelosos com as metralhadoras embraçadas, ao longo da estrada que demarcava os limites do campo. Quando chegaram ao arame farpado, detiveram-se, trocando palavras breves e tímidas, lançando olhares trespassados por um estranho embaraço, para observar os cadáveres decompostos, os barracões arruinados, e os poucos vivos. Pareciam-nos admiravelmente corpóreos e reais, suspensos (a estrada era mais alta do que o campo) em seus enormes cavalos, entre o cinza da neve e o cinza do céu, imóveis sob as rajadas do vento úmido que ameaçava o degelo. Parecia- nos, e assim era, que o nada atravessado de morte, no qual vagávamos fazia dez dias como astros esbatidos, tinha encontrado o seu próprio centro sólido, um núcleo de condensação: quatro homens armados, mas não armados contra nós; quatro mensageiros da paz, de rostos rudes e pueris sob os pesados capacetes de pêlo. Não acenavam, não sorriam; pareciam sufocados, não somente por piedade, mas por uma confusa reserva, que selava as suas bocas e subjugava os seus olhos ante o cenário funesto. Era a mesma vergonha conhecida por nós, a que nos esmagava após as seleções, e todas as vezes que devíamos assistir a um ultraje ou suportá-la: a vergonha que os alemães não conheceram, aquela que o justo experimenta ante a culpa cometida por outrem, e se aflige que persista, que tenha sido introduzida irrevogavelmente no mundo das coisas que existem, e que a sua boa vontade tenha sido nula ou escassa, e não lhe tenha servido de defesa. (LEVI, 2004: 11-12)

A literatura de testemunho, de acordo com Seligmann (2003) é um conceito que, nos últimos anos, tem feito com que muitos teóricos revejam a relação entre a literatura e a “realidade”. O conceito de testemunho “desloca o ‘real’ para uma área de sombra: testemunha-se via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. Um relato marcado pelo elemento singular do “real”. Quem testemunha se depara com uma experiência carregada de eventos traumáticos e indizíveis.

De acordo com Rodrigues (2006), a linguagem do indizível do testemunho aponta para três dimensões que interagem entre si, citadas por Shoshana17: a histórica, a poética

16

Se Isto É Um Homem (1947), demorou tempo para encontrar um editor, talvez por ser ainda muito cedo

para que a sociedade enfrentasse a magnitude do ocorrido durante a noite do terror nazista. ALTARES, Guilherme, O horror sem adjetivos de um testemunho inédito de Primo Levi. El País. Pesquisa realizada em 11/03/2017

17

Shoshana Felman, judia-americana, escritora e atualmente professora de Literatura Comparada e de

Francês na Universidade de Emory (Atlanta – EUA). Desde a década de 1990, Felman escreve textos sobre testemunho e trauma, particularmente no contexto da Shoah, e outros traumas coletivos.

e a clínica. Podemos perceber na literatura testemunhal de Levi estas três dimensões: seu testemunho se reporta a um acontecimento histórico, particularmente sua experiência pessoal em Auschwitz vivido por um ano. Pode-se afirmar que sua escrita é, em muitos momentos, poética, ultrapassando o discurso meramente descritivo, deixando-se levar pelas metáforas e as analogias. E sua necessidade confessa de narrar que soa como uma emergência, como se empreendesse a tentativa de uma cura que não se resolve por meio da escrita.

A narrativa de Levi, se insere não estritamente na ordem do real enquanto realidade empírica. Ela pertence a uma outra ordem, isto é, à do “real” como trauma, como experiência que não se deixa narrar tal como se passou, pois permanece inscrita na esfera do indizível. O que se consegue escrever é outra coisa. A enunciação desponta como um ato por vezes desconexo, no qual o que foi vivenciado perdura como um rastro. (RODRIGUES, 2006: 121)

A necessidade de testemunhar torna-se um gesto de si para o outro, um discurso performático, no sentido que não relata efetivamente o que se passou, porém ao mesmo tempo não é falso, nem verdadeiro. Segundo Rodrigues (2006), trata-se de um discurso mais conotativo que denotativo, cuja motivação se mantém subjacente, maior e mais grave que o próprio enunciado, e que se demonstra ser, em muitos casos, um discurso para curar o incurável. Levi, após a sua libertação de Auschwitz tentou continuar com a sua profissão de químico, porém a sua necessidade de testemunhar falou mais alto. Foi como escritor, escrevendo livros e artigos, dando palestras, entrevistas e mantendo uma longa correspondência com os alemães que tentou aplacar a sua dor e deixar emergir a sua necessidade premente de levar aos outros o que foi os Lager nazistas. Ao escrever o prefácio de Se isto é um homem, já manifestara a sua necessidade de narrar.

Estou consciente, e peço compreensão, dos defeitos estruturais do livro. Ele nasceu, se não de facto, pelo menos como intenção e como concepção, já nos últimos dias do Lager. A necessidade de contar aos “outros”, de tornar os “outros” conscientes, tomara entre nós, antes e depois da libertação, o caráter de um impulso imediato e violento, ao ponto de rivalizar com as outras necessidades primárias: o livro foi escrito para satisfazer essa necessidade; em primeiro lugar, portanto, como libertação interior. Daí o seu carácter fragmentário: os capítulos foram escritos não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência (...) Parece-me supérfluo acrescentar que nenhum dos factos é inventado. (LEVI, 2001: 9-10

De acordo com Seligmann (2003), aquele que testemunha sobreviveu – de modo incompreensível - à morte: ele como que a penetrou. Se o indizível está na base da língua, o sobrevivente é aquele que reencena a criação da língua. Poderíamos nos atrever a dizer

que Levi seguiu os conselhos de seu amigo Steinlauf, ao alertá-lo sobre os cuidados com o nosso corpo, não podemos permitir que os “nazistas” se apropriem de nossos pilares, por isso, “é preciso querer sobreviver, para contar, para testemunhar” (LEVI, 2001, 40). Na literatura de testemunho, Seligmann (2003) nos indica dois pontos centrais da literatura de testemunho: primeiramente, ela é mais que um gênero, é uma face da literatura que vem à tona na nossa época de catástrofes e faz com que toda a literatura seja revista a partir do questionamento da sua relação e do seu compromisso com o “real”. Em segundo lugar, esse “real” não deve ser confundido com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e naturalista: o “real” deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação, como os eventos-limite como os genocídios do século XX, dos armênios, dos judeus, dos tutsis, dos sinti e roma.

Reafirmando que a literatura de Levi nos leva a entender

que o real, uma vez tomado como matéria prima da escrita, não é o real puro, mas o real em meio às cenas, reminiscências, pensamentos, lembranças, desejos. Trata-se do real fisgado por uma trama significante. ´(...) O trauma é uma marca do humano. É o que inscreve o sujeito na ordem da linguagem, e, ao mesmo tempo, uma marca do que não é absorvível pelo simbólico. O trauma seria, em última instância, o que funda a memória do homem como sujeito falante. (MACÊDO, 2014: 46-47)

A literatura testemunhal de Levi tenta nos inferir o que há de excepcional a ser relatado: sobre a viagem para Auschwitz que em dado momento revela ¨muitas coisas foram ditas e feitas entre nós; mas é bom que delas não se guarde memória”, sobre a chegada no Lager, quando dois grupos de estranhos indivíduos, avançavam em formação, um passo arrastado, a cabeça decaída para a frente e os braços rígidos, com as roupas às riscas, sujas e rasgadas. E todos os que haviam chegado tinham também a certeza que, amanhã, seriam um deles. Tantos outros fatos de espantos, sustos, morros e torturas e situações inenarráveis.

Binjamin Wilkomirski, escritor suíço da obra Fragmentos, publicada em 1995, um relato autobiográfico transparente como sobrevivente do Holocausto, em que narra a sua suposta passagem pelos campos de concentração quando ele tinha pouco mais de três anos. Depois de dezenas de entrevistas, palestras e a publicação dos pára-textos que acompanharam o livro, descobriu-se que ele é uma farsa. Seu nome não é Binjamin Wilkomirski, é Bruno Doessekker, não é judeu, apenas conheceu os campos de concentração na qualidade de turista e de estudioso de história. Toda a obra foi escrita

baseada na leitura de dezenas de textos autobiográficos, de documentos e livros. No entanto, toda a força de sua obra advém justamente do fato dela ser fictícia, pois os autênticos sobreviventes são incapazes de narrar com tanta precisão os detalhes do “olhar da medusa”. Apenas um erudito e estudioso da Shoah como Wilkomirski poderia construir uma peça tão impactante quanto Fragmentos (mesmo que esta obra de fato realize a promessa contida no seu nome, ou seja arrebente-se em fragmentos, diante da revelação da farsa), todavia ele não é um testemunho pois “não estava lá”.

Em Levi não se trata de ficção, mas de uma vivência que resiste à decifração, não se apresenta em uma linguagem comum, nem numa figuração fiel ao que aconteceu. O autor induz os leitores a pensar, no drama individual e coletivo, efetivamente vivido no Lager.

No prefácio Se isto é um homem, Levi exalta-se e intima o leitor a ver o que se passa em torno de si, a tomar conhecimento do vivido e traumatizado.

Vós que viveis tranquilos Nas vossas casas aquecidas,

Vós que encontrais regressando à noite Comida quente e rostos amigos: Considerai se isto é um homem Quem trabalha na lama

Quem não conhece paz (...)

Meditai que isto aconteceu Recomendo-vos estas palavras. (...)

Repeti-as aos vossos filhos.

Ou então que desmorone a vossa casa, Que a doença vos entreve,

Que os vossos filhos vos virem a cara. (LEVI, 2001: 7)

A necessidade, confessa de Levi de narrar, soa como uma emergência, como se empreendesse a tentativa de uma cura que não se resolve por meio da escrita. O que ele viu e viveu foram instantes catastróficos, instantes inaudíveis. De acordo com Rodrigues (2006) catástrofe18 é, por definição, um evento que provoca um trauma, palavra grega, que quer dizer “ferimento”. E trauma deriva de uma raiz europeia com dois sentidos: “friccionar, triturar, perfurar”, mas também “suplantar” “passar através” Nesta contradição – uma coisa que tritura, perfura, mas que, ao mesmo tempo, é o que nos faz

18 Etimologicamente a palavra “catástrofe” provém do grego e significa, literalmente, “virada para baixo”

suplantá-la -, revela o paradoxo da experiência catastrófica, que não se deixa apanhar por formas simples de narrar.

O cotidiano do Lager estava coalhado de inúmeros desnudamentos vexatórios: devido ao controle dos piolhos, às buscas nas roupas, à lavação matinal, à visita das sarnas; e, além disso, devido às seleções periódicas, nas quais uma “comissão” decidia quem ainda estava apto para o trabalho e quem ao contrário, estava fadado à eliminação. Ora, um homem nu e descalço sente os nervos e os tendões truncados: é uma presa inerme. As roupas, mesmo aquelas imundas que eram distribuídas, mesmo os sapatos ordinários com sola de madeira, são uma defesa tênue, mas indispensável. Quem não os tem não se percebe a si mesmo como um ser humano, e sim como um verme: nu, lento, ignóbil, vergado ao chão. Sabe que poderá ser esmagado a todo momento. (LEVI, 1990: 68)

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