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Cena de Enunciação

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A “cena enunciativa” ou “cena de enunciação” tem importância, na medida, em que ela é uma rica fonte de informação no que se refere a como determinado discurso emergiu e foi enunciado. De acordo com Maingueneau (2015), o termo “cena” apresenta ainda a vantagem de poder se referir, ao mesmo tempo, um quadro e um processo: ela é,

ao mesmo tempo, o espaço bem delimitado pelo qual são representadas as peças, e as sequências das ações verbais ou não verbais que habitam esse espaço.

A cena de enunciação de um gênero discursivo não é um bloco compacto. Ela faz interagir três cenas: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia. No caso da narrativa de Levi, estão sob o domínio do trágico, mais que trágico - porque não é uma ficção; trata-se de uma realidade vivida -. É tão inaceitável que ao narrá-la, às vezes, a catarse torna-se quase que improvável.

A cena englobante remete ao tipo de discurso a que pertence o texto, ao seu estatuto pragmático, ao seu funcionamento social. As obras literárias de Primo Levi trazem um discurso político/testemunhal. O seu discurso é político, pois em toda a sua literatura, ele tem um propósito claro de denunciar o ocorrido no Lager de Auschwitz, visto que o fez logo após a sua libertação, sendo que o seu livro começou a ser escrito em dezembro de 1945. A preocupação de narrar e denunciar, visto por ele como uma necessidade primeira de uma libertação interior, todavia como uma ordem de urgência. No retorno à sua terra natal, Turim, ele percebeu que as pessoas não queriam ouvir seus relatos sobre Auschwitz, sobre a existência e o ocorrido no Lager e a sua experiência enquanto Häftling.

Em uma cidade polonesa Trzebinia, dentre um grupo de operários e camponeses, um civil, muito amável aproximou-se de Levi, falava polonês e muito bem o francês e o alemão. Levi, viu nele todos os requisitos para que pudesse, finalmente, após o longuíssimo ano de escravidão e silêncio, ser o mensageiro, o porta-voz do mundo civil.

Tinha uma avalanche de coisas urgentes para contar ao mundo civil: coisas minhas mas de todos, coisas de sangue, coisas que, me parecia, acabariam por fazer tremer sua consciência e seus fundamentos. Na realidade, o advogado era amável e benévolo: interrogava-me, e eu lhe falava vertiginosamente daquelas minhas tão recentes experiências, de Auschwitz próxima, mas que assim mesmo parecia por todos ignorada, da hecatombe da qual eu fugira sozinho, de tudo. O advogado traduzia em polonês em benefício do público. Ora, eu não conheço o polonês, mas sei como se diz “judeu” e como se diz “político: e percebi logo que a tradução da minha história, embora sentida, não era fiel. O advogado me descrevia ao público não como um judeu italiano, mas como um prisioneiro político italiano. Perguntei-lhe logo a razão, surpreso e quase ofendido. Respondeu-me embaraçado: “C’est mieux pour vous. La guerre n’est pas finie”. As palavras do grego.

Percebi que a onda quente do sentir-se livre, do sentir-se homem entre os homens, do sentir-se vivo, refluía longe de mim. Encontrei-me de pronto velho, exangue, cansado, além de toda a medida humana: a guerra não terminara, a guerra é sempre. Os meus ouvintes foram-se em pequenos grupos: deviam ter entendido. Eu sonhara algo semelhante,

todos sonháramos nas noites de Auschwitz: falar e não sermos ouvidos, reencontrar a liberdade e permanecer solitários. (LEVI, 2004: 81-82)

A necessidade de testemunhar. Testemunho que remete a vida dos prisioneiros no campo de concentração e de extermínio nazista, Auschwitz, que parece garantir a literariedade textual dado a incredulidade sobre o acontecido.

A cena genérica vai mais além, pois são os discursos particulares que implicam determinadas circunstâncias e condições de enunciação. Quais são os participantes? Qual o lugar e o momento necessário para realizar este discurso? Qual o modo de inscrição na temporalidade, que atua em diversos eixos: a periodicidade ou a singularidade das enunciações, sua duração previsível e sua continuidade.

Na cena genérica, da escrita de si de Levi, os participantes são todos aqueles identificados na Zona Cinzenta do Os afogados e os Sobreviventes, o qual Levi não concebe ser possível simplificá-los “entre nós e eles”, numa bipartição amigo-inimigo, pois não era possível, no interior do Lager, reduzir estes participantes a dois blocos, o das vítimas e o dos opressores. A luta pela sobrevivência fazia com ela se tornasse premente, visto que, o ingresso dos Häftling já demonstrava com “os chutes e os murros desde logo, muitas vezes no rosto; a orgia das ordens gritadas com cólera autêntica ou simulada; o desnudamento total; a raspagem dos cabelos; a vestimenta de farrapos” (LEVI, 1990: 18), que só havia uma direção e ela era individual. Auschwitz contribuía para que fosse um lugar de colapso moral onde os privilégios de alguns prevaleciam em detrimento de uma grande maioria.

As duas cenas, a englobante e a genérica, definem o espaço estável no interior, pois os enunciados ganham sentido. Em muitos casos, são estas duas dimensões que compõem a cena de enunciação. As normas constitutivas da cena genérica não bastam para dar conta da singularidade de um texto. “Enunciar não é apenas ativar as normas de uma instituição de fala prévia; é construir sobre essa base uma encenação singular da enunciação: uma cenografia. ” (MAINGUENEAU, 2015: 122). Todavia, como Primo Levi consegue ressignificar este palco trágico existencial? Ele narra o surreal com a máxima normalidade possível. O leitor sim, recriará o clima surreal.

Maingueneau (2001) diz que para o discurso, a cenografia é tanto enunciação da obra (processo fundador da obra) como produto da obra (inscrição legitimante de um texto estabilizado). Ela define as condições de enunciador (Eu) e de co-enunciador (E TU, aqui e agora), mas também o espaço (topografia) e o tempo (cronografia) a partir dos

quais se desenvolve a enunciação. Primo Levi recaptura o todo da sua paratopia para que o leitor o reconfigure e o ressignifique.

A cenografia se apoia na ideia de o enunciador, por meio da enunciação, organiza a situação a partir da qual pretende enunciar. “Todo discurso, por seu próprio desenvolvimento, pretende, de fato, suscitar a adesão dos destinatários instaurando a cenografia que o legitima. ” (MAINGUENEAU, 2015: 123). Esta é imposta logo de início, mas deve ser legitimada por meio da própria enunciação. No caso, das obras testemunhais em questão, o sujeito do enunciado se identifica com o sujeito da enunciação. Como? Se o primeiro é o mais inefável e o outro o mais prático possível. O discurso deve fluir normalmente em meio ao caos e ao horror do narrador-testemunho.

A noção de cenografia é muitas vezes mal interpretada, pois costuma ser encarada como uma simples cena, como um quadro estável no interior do qual se desenrolaria a enunciação. Duas questões devem ser consideradas na cenografia: “por um lado, a obra enquanto objeto estético autônomo e, por outro, como a condição dos escritos, os lugares e os momentos da escrita”. (MAINGUENEAU, 2001: 134)

A cenografia, na literatura de Levi, é a sua obra enquanto objeto estético. Ele prima por toda uma estética, onde vai delineando os quadros e levando o leitor a se envolver naquele espaço abominável de Auschwitz, como no seu retorno a sua Itália, nas descrições do interior da Rússia e, muitas décadas depois, percebe-se a sua total indignação do ocorrido em Os afogados e sobreviventes. A estética da sua obra está intrinsecamente ligada a condição dos escritos, embora em lugares e momentos da escrita particulares, porém Levi está sempre lá em Auschwitz, não conseguiu desvencilhar-se deste lugar inenarrável.

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