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2. Trajetórias poéticas

2.4 A máquina de fazer poesia

“Talvez nós julguemos receber de um objeto tanta mais vida quanto mais somos obrigados a lha dar”

Valéry

O universo poético se diferencia da mera imitação da Natureza. Utilizamos a palavra Natureza grafada com letra maiúscula, pois estamos trabalhando com uma significação específica deste termo. Esta Natureza seria a Terra, o espaço físico onde o homem instala-se, a Physis. É o que existe a priori, antes do mundo criado pelo homem. A Natureza é a matéria primordial que nos foi legada.

Quando dizemos que o universo poético se diferencia da mera imitação da Natureza, não queremos dizer que a Natureza não existe no universo poético, pelo contrário, ela é

matéria essencial deste universo. Mas a Natureza não é utilizada de forma estritamente mimética no discurso poético.

Ora, todo dizer é sempre um dizer de algo, um falar de isto e aquilo. O dizer poético não difere nisto das outras maneiras de falar. O poeta fala das coisas que são suas e de seu mundo, mesmo quando nos fala de outros mundos: as imagens noturnas são compostas de fragmentos das diurnas, recriadas conforme outra lei. (PAZ, 1996, p.55).

A poesia não é a arte de fixação exata da matéria a priori do mundo, a poesia funda mundos novos a partir dessa matéria pré-concebida.

Estabelece-se na poesia uma disposição particular e não-habitual da Natureza, ditada através de uma estrutura discursiva “anormal”. Concomitantemente a esse novo modo de estruturação material emerge um novo modo de sentimento de mundo.

Ou seja, a reestruturação da materialidade da Natureza e a instauração de um novo mundo significativo são faces da mesma moeda chamada poesia.

Como a atividade poética transforma a materialidade da Natureza e cria uma realidade fantasiosa?

Iremos deslocar, neste tópico, um pouco nosso olhar da apreensão do que ocorre no nível discursivo; nos voltaremos agora para questões mais gerais da constituição da arte poética.

Entre a Natureza propriamente dita e a poesia existe o ser, o homem que faz poesia. É a partir deste homem que a Natureza é transformada em poesia. Por isso o sujeito é essencial à poesia. O homem é a essência da poesia. Já dizia Wilde (1972, p.10): “a arte reflete o espectador e não a vida.”.

Chamaremos essa essência do homem que transforma Natureza em poesia de interioridade, e chamaremos a Natureza de exterioridade. O homem que cria poesia estabelece um diálogo entre a realidade externa e a realidade interna. E a partir deste dialogo emerge, também em forma de matéria, uma natureza nova que chamamos poesia.

A Natureza é a matéria-prima que passa pela interioridade do sujeito poético e é transformada em matéria trabalhada e artística.

Dissemos acima que o homem é a essência da arte (da poesia), pois é através da necessidade de revelar esse mundo interno que a engrenagem de criação poética começa a se movimentar. A interioridade é a energia propulsora da poesia:

Em todas as estruturas verbais literárias, a orientação definitiva da

significação é interna. Em literatura, as exigências da significação externa

são secundárias, pois as obras literárias não pretendem descrever ou afirmar e, portanto, nem são verdadeiras, nem falsas... Em literatura, as questões de realidade e de verdade são subordinadas ao objetivo literário essencial que é o de produzir uma estrutura verbal que encontre sua justificação em si mesma; e o valor designativo dos símbolos é inferior à sua importância enquanto estrutura de motivos ligados. (FRYE apud TODOROV, 1978, p.19, grifo nosso).

A realidade interna é diferente da externa; ela possui cores, formas, sons próprios; não existe a priori e sua essência não é material como a essência da realidade externa. A poesia é o resultado da tentativa de dizer a interioridade que em essência é indizível e amorfa.

Para Cassirer (apud NUNES, 2004, p.99)essa lógica trabalha com movimentos:

[...] que articulam as cores, as linhas, os ritmos, as palavras, em conjuntos significativos, que não apenas ‘traduzem’ os sentimentos do artista, mas lhes conferem uma existência palpável e objetiva, que não somente exteriorizam a sua percepção das coisas, mas transformam essa percepção num modo autêntico de ver e de sentir.

Maurice-Jean Lefebve (1980) chama de “distorção da percepção” o resultado fascinante da “interferência entre o imaginário (o que o espírito se representa interiormente) e o real (o que se oferece efetivamente aos nossos sentidos)”.(p.12).

Esse jogo em que o artista utiliza formas do mundo “real” para compor e expressar seu mundo imaginativo interno pode ser chamado de interseccionismo. É um efeito que:

[...] revela-se sempre como a intersecção de uma parte do real (o significante da linguagem e suas diversas combinações objetivas) e de uma parte de irreal (o significado, as conotações e evocações derivadas). (LEFEBVE, 1980 p.13).

O que denominamos, logo acima, de Natureza seria para Lefebve, voltando restritamente ao nível discursivo, o significante. E o que designamos de ordem interna é para ele o significado, as conotações.

Como já observamos, o poeta é o ser que tem a capacidade de apreender o mundo externo através do olhar intuitivo e deslocado. E essa percepção ganha forma material através da palavra poética. O poeta tem a necessidade de expressar sua sensibilidade e a linguagem poética é a forma de expressão que mais se encaixa no fluir dessa sensibilidade.

Como já dissemos também, o poeta não só tem um olhar altamente perceptivo, mas possui uma alta capacidade imaginativa e criativa, e por isso consegue transcrever seu mundo interno de forma a constituir uma arte poética.

Pensando de uma forma mais objetiva, poderíamos dizer que a poesia, essa fala conectada com o lado interno, é a fala que quer fundir em um discurso a necessidade de expressão sensível e a capacidade imaginativa. “Pensamento e linguagem são para o artista instrumentos de uma arte.” (WILDE, 1972, p.9). Ou como diz Nunes (2004, p.67):

São duas as fontes do conhecimento: a Sensibilidade e o Entendimento. É por meio da Sensibilidade que intuímos os objetos, e, de acordo com as percepções dos sentidos, os representamos no espaço e no tempo.

A poesia é a estrutura condensada que liga a necessidade humana feroz de a mente imaginar, criar, inventar, com a outra necessidade feroz de extravasar sentimentos e sensações. O organismo poético, dessa forma, é composto de mente e coração, ou seja, razão e sensibilidade (interioridade). Essa interioridade fagocita o mundo “real”, externo e o regurgita com novas cores, odores formas e movimentos. A poesia é uma: “[...] operação capaz de transformar o mundo [, um] exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia não revela este mundo, cria outro.” (PAZ: 1995, p.15).

A interioridade reorganiza as formas da realidade e libera essa nova organização na materialidade da palavra. O discurso poético, tentando adequar-se a essa realidade interna, inunda-se de combinações inusitadas de palavras, de imagens, cores, ritmos, símbolos, etc. tornando-se incomum. Cohen (1978, p.97) especifica: “[...] o poema não é a expressão fiel de um universo anormal, mas a expressão anormal de um universo comum.”

Poderíamos, assim, demonstrar um formula de criação poética:

Realidade organizada (Natureza) Æ absorção sensível da Natureza Æ caos interno (imaginação)Æ trabalho árduo de mente e coração Æ reorganização do caos Æ poesia em materialidade.

É claro que essa formula é uma ilustração de um possível esquema da atividade poética, mas na verdade, essa atividade não tem uma forma pré-determinada; a poesia é, antes de tudo, liberdade e sua máquina de criação e funcionamento não pode ser matematicamente formulada, apenas esboçada.

Denominamos esse esboço de “máquina de fazer poesia”. É uma máquina que justamente por materializar a interioridade, produz algo que não se esgota. A poesia, uma vez produzida e materializada, poderá continuar sempre a despertar magia e encantamento.

Gilbert Durand (1988, p.16) desenvolve um olhar parecido com esse nosso esboço da dimensionalidade da palavra poética, quando analisa a palavra enquanto símbolo. Constata três faces da palavra simbólica: a parte ligada à exterioridade, o vínculo com o interior e com o inconsciente coletivo e a finalização poética em forma de símbolo:

[...] todo símbolo autêntico possui três dimensões concretas: ele é, ao mesmo tempo, ‘cósmico’ (ou seja, retira toda sua figuração do mundo visível que nos rodeia); ‘onírico’ (enraíza-se nas lembranças, nos gestos que emergem em nossos sonhos e constituem, como bem mostrou Freud, a massa concreta de nossa biografia mais íntima); e, finalmente, ‘poético’, ou seja, o símbolo também apela para a linguagem, e a linguagem mais impetuosa, portanto a mais concreta.

Pensando no discurso poético e suas especificidades, podemos, ainda, desenvolver o esboço de uma fórmula do que acontece com a palavra até virar material poético, dessa forma:

Matéria-prima bruta e corrompida (palavra no mundo) Æ quebra sintática, semântica, morfológica, fonológica Æ reorganização própria dos níveis do discurso (in absentia, in

praesentia) Æ poesia em materialidade.

Podemos dizer ainda que: poesia é a materialização da essência. Isso que chamamos essência é o sentimento imaginativo do poeta, é o que designamos de constituição interna e que pode ser chamada também de: mente, espírito, coração, ou ainda, subjetivismo e interioridade.

Como já suscitamos acima, para a essência tornar-se materialidade poética, utiliza palavra e, em seu conteúdo, aspectos da Natureza, ou o que podemos chamar de aparência. Assim, surge outra formula:

Aparência + essência = materialidade essencial (poesia)

A palavra é a matéria prévia, o barro sem forma de que o poeta se utiliza para expressar a essência da sua fantasia imaginativa. A poesia é a idealização concretizada de uma essência naturalmente indizível, amorfa, inodora, e que, no entanto, vive dentro e quer viver fora também.A poesia é dependente da palavra apesar de querer transcendê-la.

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