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2. Trajetórias poéticas

2.5 Poesia – a linguagem original.

“Como se obedecessem a misteriosa lei de gravidade, as palavras retornam à poesia espontaneamente.”

A poesia é a tentativa de dizer o ser em sua profundidade. Quando dizemos “ser em profundidade”, estamos falando de algo que é inato do homem, da essência. Porém não estamos falando de uma essência imanente que seria algo que está no homem desde antes de ele existir, ou que vem de algo superior a ele. Essa essência inata se faz existir em sociedade, em conjunto, dentro de uma cultura, de um sentimento de mundo e por isso é algo que é comum.

No entanto, essa essência inata existe no homem mesmo antes de ele aprender a falar ou utilizar palavras. Ou seja, essa essência já existia nos homens primitivos que ainda não haviam inventado uma forma institucionalizada para se comunicar (o alfabeto). Assim como existe nas crianças pequenas que ainda não aprenderam a se comunicar através de palavras.

O material de interesse da poesia é justamente essa essência inata. “Esse estrato, que tem o seu lugar na sensação anterior ao discurso [...].” (BOSI, 2004, p.37). A poesia começa a existir antes de ser dita, no cerne dessa interioridade comum. Por isso é a forma de expressão que simboliza através das palavras a constituição essencial do homem. É a linguagem essencial por natureza.

Alguns estudiosos acreditam que a poesia é a forma de linguagem original, é o elo direto que liga essência imanente e expressão exterior. A palavra “original” aqui quer dizer que a poesia não é somente a linguagem “verdadeira” do ser, que expressa a interioridade, mas também é original pois foi a primeira linguagem utilizada pelos homens. “A poesia pertence a todas as épocas: é a forma natural de expressão dos homens.” (PAZ, 1996, p.12).

Não é difícil entender isso quando pensamos que o homem primitivo, assim como o poeta, para dizer o mundo, tentava expressar plenamente os aspectos do ser, dizer concretamente a sua interioridade, ou seja, as sensações, os sentimentos, as emoções de forma geral. A linguagem surge como uma metáfora da interioridade, um símbolo da ebulição existencial. Era uma época em que mithos e logos eram duas faces da mesma moeda e a sensação de mundo era integra e plena, por isso mais próxima do ser em sua totalidade.

O homem que faz poesia é aquele que justamente quer desvendar essa origem, quer ligar o mais diretamente possível interioridade e exterioridade. Quer expressar suas emoções da forma mais fiel e pura e para isso utiliza essa linguagem pouco corrompida que

é altamente simbólica, que tem ritmo próprio. “Com fórmulas mágicas ou encantações rituais, ela [a poesia] responde ao sonho de uma comunhão direta do homem com o mundo e o seu criador.” (LEFEBVE, 1980 p.33).

Essa tentativa de aproximação direta de exterioridade e interioridade é o que Lefebve chamou de encarnação. A encarnação é na verdade uma utopia, não existe concretamente, como dissemos, é uma “tentativa” que nunca se concretiza.

A encarnação constitui, pois, a tentativa de superar a contradição opacidade – transparência e de reaproximar a linguagem literária dessa linguagem adequada e original, essa linguagem em que o significante e o significado coincidem, essa linguagem dos deuses que [...] é o mito da literatura. (LEFEBVE, 1980 p.69).

A poesia é a arte que tenta restabelecer a capacidade originária de percepção. Octavio Paz (1996, p.68-69) diz que a “palavra poética funda os povos”, pois é a transcrição imediata de um instante, de um arquétipo, ou seja, de um modelo de vida, de realidade.

A sensação de comunhão de mundo é mítica, é como o sentimento cósmico do homem primitivo em que a razão e a emoção não são aspectos separados de compreensão de mundo. “Razão e imaginação (“transcendental” ou “primordial”) não são faculdades opostas: a segunda é o fundamento da primeira e o que permite perceber e julgar o homem”. (COLERIDGE apud PAZ, 1996, p.77).

Para o poeta e para o primitivo, a forma de compreensão empírica não é a única e a mais satisfatória para absorver o mundo. A comunhão do sensível com o inteligível é que cria a real dimensão cosmológica. “Muito antes que o mundo seja dado à consciência como um conjunto de ‘coisas’ empíricas e como um complexo de ‘propriedades’ empíricas, ele se lhe dá como um conjunto de forças e efeitos míticos”. (CASSIRER, 2004, p.14).

A imaginação é justamente a carga pensante necessária para que a interioridade se plasme na palavra. A imaginação é a instância não racional que vê os sons, as cores que existem por dentro e transporta-os para a linguagem na forma de imagem. Os sentimentos são transpostos por um imaginar que sente.“A imagem é um modo da presença que tende a suprir o contato direto e a manter, juntas, a realidade do objeto em si e a sua existência em nós.” (BOSI, 2004, p.19).

A imaginação trabalha com a matéria da Natureza que existe a priori e a partir dessa matéria cria uma realidade fantasiosa e diferente. Ela capta o existente e cria o novo, absorve e constrói.

A imagem não decalca o modo de ser do objeto, ainda que de alguma forma o apreenda. Porque o imaginado é, a um só tempo, dado e construído. Dado, enquanto matéria. Mas construído, enquanto forma para o sujeito. Dado: não depende da nossa vontade receber as sensações de luz que o mundo provoca. Mas construído: a imagem resulta de um complicado processo de organização perceptiva [...]. (BOSI, 2004, p.22).

A realidade fantasiosa que emerge é vaga, fugaz, mas materializa-se e fica registrada na linguagem poética. A fantasia está mais próxima da impressão, da sensação do que do entendimento lógico e empírico. A linguagem poética consegue aprisionar um pouco o mundo das sensações na folha de papel, nasce um mundo híbrido com diversos horizontes que mescla mito e razão; experiências e essências; que evoca, suscita, ressuscita. A imaginação é uma forma de conhecimento que tem a faculdade de expressar através de símbolos e mitos.

Imaginação e razão, em sua origem, são uma e mesma coisa, terminam por fundir-se em uma evidência que é indizível exceto através de uma representação simbólica: o mito. Em suma, a imaginação é, primordialmente, um órgão de conhecimento, posto que é a condição necessária de toda percepção; e, além disso, é uma faculdade que expressa, mediante mitos e símbolos, o saber mais alto. (PAZ, 1996, p.78).

Esse saber mais alto, ligado ao lado sensível, muitas vezes não é facilmente expressável. Dessa forma, a imaginação é um projetar do que, muitas vezes, não existe. Delineia o inexistente para estabelecer uma nova contingência das coisas e distanciar-se do mundo ordenado. Imaginar significa colocar-se fora através da linguagem. A consciência imaginativa esta livre das determinações do real; o sujeito, pela imaginação, tem a liberdade de tematizar e narrar o que é inexistente no mundo.

E a poesia é a forma de linguagem que não busca nomear e relacionar diretamente coisa e nome (isso se chama X), seu dizer se baseia nas imagens e no silêncio e por isso é o tipo de linguagem que está mais próxima do ser.

Por isso a realidade da fantasia é a tentativa de dizer o absoluto, ou seja, é o lugar onde as diferenças se somam para criar uma realidade única e plena. Na fantasia preserva- se o sentimento original e a visão mitológica. A realidade transcrita é multicolorida, relativa, sugestiva, ilimitada, epifânica. A fantasia é a instância em que o ser tenta saciar uma necessidade supra-real, de que a religião, imbuída da carga racional, não dá conta.

[A imaginação] decompõe toda a criação, segundo leis que provêm do mais profundo interior da alma, recria e articula as partes (daí resultantes) e cria um mundo novo. (BAUDELAIRE apud FRIEDRICH, 1978, p.55).

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