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2. A ARQUITETURA, A POESIA TRÁGICA E IDEIA E A MÚSICA

2.3 A música

Nos capítulos precedentes, estudamos todas a belas artes sob o ponto de vista geral que adotamos; começamos pela arquitetura artística, que tem como finalidade estética exprimir a vontade objetivada no baixo grau que nos é dado apreender, isto é, a tendência surda, inconsciente, necessária, da matéria, onde no entanto, já se manifesta um antagonismo e uma luta internos no combate da gravidade contra a resistência; terminamos com a tragédia que nos faz ver, no mais alto grau dessa objetivação, essa mesma luta da vontade consigo mesma, mas com proporções e uma clareza que nos assustam; agora, uma vez terminada esta revista, constatamos que uma arte ficou excluída dor nosso estudo, e isso tinha de acontecer fatalmente, visto que uma dedução rigorosa deste sistema não lhe deixava nenhum lugar: é a música. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 337).

A intenção de colocar a citação acima tem como objetivo mostrar a trajetória de nosso trabalho até aqui. Daqui pra frente faremos uma análise de uma arte de fundamental importância e que está acima de todas as outras, inclusive, o filósofo reservou um lugar especial para a ela em sua estética; a música. A música se diferencia de todas as artes até aqui analisadas,.a sua peculiaridade consiste na diferença de expressividade no que toca ao prazer estético ou ao êxtase estético. A que deve essa peculiaridade da música em relação as outras artes? É que a música não expressa a cópia, a imitação de uma ideia que se manisfesta no munGRHOHFKHJDDFRPSDUDUDP~VLFDDXPD³OtQJXD XQLYHUVDO´ RQGH WRGRV RV VHQWLPHQWRV VmR H[SUHVVRV GH XPD IRUPD XQLYHUVDO $ P~VLFD QXQFD objetiva o fenômeno, forma do princípio de individuação, ela vai acima da ideia abarcando a essência do mundo. Não é objeto de nosso estudo fazermos uma analogia entre o que Schopenhauer compreende por música e a nossa contemporânea Indústria Cultural, mas, a título de reflexão pode- se constatar que aquilo que é objetivado pela Indústria Cultural está tão infinitamente distante do que o esteta compreende por música que não merece nem sequer uma analogia. O Esteta jamais pensaria a música como uma manifestação da vontade como mercadoria, como objetivação do princípio de individuação e estando voltada e à serviço dos interesses individuais. A forma como o filósofo pensa de uma melodia jamais poderia assemelhar-se ao que se toca em grande parte no PXQGR KRMH 6FKRSHQKDXHU FRPR DUWLVWD H ³VXMHLWR SXUR TXH FRQKHFH´ EXVFDYD QD P~VLFD XPD elevação que culminava num êxtase que o fazia sentir que estava acima do mundo fenomênico. Elevação esta que só o tempo melódico podia propiciá-lo e extasiá-lo. Tanto é que ele via no êxtase estético da música a possibilidade de libertação da vontade afirmando: ³DPLQKDH[SOLFDomRREULJD- nos a conVLGHUDUDP~VLFDFRPRDFySLDGXPPRGHORTXHQXQFDSRGHVHUUHSUHVHQWDGRGLUHWDPHQWH´ (SCHOPENHAUER, 2001, p. 339) Ou seja, uma forma sem matéria que as distingue das outras artes, ele chega a compará-OD D XP PXQGR GH ³HVStULWRV DpUHRV´ LQGHSHQGHQWH GH TXalquer materialidade.

Schopenhauer faz uma comparação entre a música e o mundo quando nos diz que:

o mundo é apenas o fenômeno das ideias multiplicado indefinidamente através da forma do princípio de individuação, única forma do conhecimento que está ao alcance do indivíduo enquanto indivíduo. Mas a música, que vai para além das ideias, é completamente independente do mundo fenomenal; ignora-o totalmente, e poderia de algum modo, continuar a existir, na altura em que o universo não existisse: não se pode dizer o mesmo das outras artes. A música, com efeito, é uma objetividade, uma cópia tão

imediata de toda a vontade como o mundo o é, como o são as próprias ideias cujo fenômeno múltiplo constitui o mundo dos objetos individuais (SCHOPENHAUER, 2001,p. 340). Vimos que se diferencia das outras artes no sentido de que nela não temos uma representação das ideias, no caso como a arquitetura, por exemplo, que representa o combate entre a resistência e a gravidade, mas a representação da vontade com as suas ideias. O esteta faz uma diferença entre sombra e ser referindo-se as outras artes e a música. O êxtase musical abarca o ser, enquanto as outras artes as sombras das ideias. É por isso que a música tem um poder de profundidade que vai para além das sombras e exprHVVDR³FRUDomRGRPXQGR´$WUDYpVGDP~VLFDp possível expressar todas as ideias da vontade desde as suas manifestações menos complexas como as que representam a vida inorgânica nos graus inferiores da vontade, e que culmina no homem a sua forma mais desenvolvida. A gravidade, a resistência, a fluidez e todas as forças que regem a natureza podem ser expressas através de acordes musicais, a matéria orgânica e inorgânica são transformadas em sons. Imaginemos o som da gravidade e o da fluidez sendo representado num violino! O da resistência num baixo! Ele chega a afirmar que se todo o universo desaparecer a música continua claro que ele está se referindo ao universo humano e não ao universo total, porque com o aniquilamento do homem os sons continuam e a trama existencial deixa de existir apenas para o homem. A gravidade, a fluidez, a resistência dependem do homem para existir como vontade e representação? A vontade por si só tocaria os sons representativos do universo?

As outras artes não objetivam a vontade imediatamente, mas através de ideias, ao contrário da música que expressa diretamente a coisa em si; a vontade. O mundo é o fenômeno das ideias em sua multiplicidade que se objetiva através do princípio de individuação única forma de conhecimento acessível ao indivíduo. É por isso que o autor dar uma ênfase mais profunda à música GDGDDVVXDVFDUDFWHUtVWLFDV³XOWUDSDVVDUHP´RPXQGRIHQRPrQLFR

Que relação há entre o baixo contínuo e as ideias primitivas da vontade? O baixo contínuo é uma extensão da vontade como expressividade musical?

Nos sons mais graves da escala musical, no baixo contínuo, apreendemos a objetividade da vontade nos graus inferiores, como a matéria inorgânica e orgânica, a massa planetária. Os sons agudos, mais ligeiros e mais fugidios, são todos, como se sabe harmônicos que acompanham o som, fundamental, e ressoam ligeiramente sempre que se produz aquele. Recomenda-se mesmo, em harmonia, que só se

introduza num acorde os harmônicos da nota grave fundamental, de modo que esses sons ressoem simultaneamente como sons distintos e como harmônicos da nota fundamental (SCHOPENHAUER, 2001,p. 340). Ele faz uma relação entre os seres que tem a sua origem na massa planetária com os sons do baixo contínuo e das notas superiores. O baixo contínuo expressa o que acontece na natureza, o seu processo de desenvolvimento, a sua materialidade através de sons da escala musical. O baixo contínuo representa a plataforma da natureza, o seu sustentáculo. Para Schopenhauer nenhuma matéria é desprovida de vontade, todo o universo é vontade. Podemos refletir sobre essa afirmativa no sentido de que se todo o universo é vontade, podemos afirmar que a pedra, a água, o ar, o fogo, a luz, a fluidez, as nuvens, os relâmpagos, os trovões, os raios, a planta, o animal e o homem são manifestação dessa vontade única. O que diferencia um ser de outro quanto a vontade é apenas o grau de sua objetivação, mas a vontade é a mesma em todos os seres, já que ela é o fundamento do universo ou para ser mais claro, ela é o próprio universo em suas múltiplas manifestações.

Para deixar bem claro a analogia feita sobre o baixo e aquilo que acontece na natureza e no homem, podemos mencionar as músicas que são tocadas nos filmes representando as cenas da vida. Os sons que representam medo num filme de terror, ou os que objetivam alegria num de comédia ou aqueles que tocam o suspense expressam universalmente a essência da vida que é una.. É por isso que o autor afirma que a música é universal. O som de terror que é tocado numa determinada cultura,. mesmo que as características sejam diferentes, eles expressam o mesmo sentido. A música traduz o coração da vida em todas as suas manifestações. Ele fala de duas tonalidades na música;

Assim como há em nós duas disposições essenciais do sentimento, a alegria ou pelo menos o bom humor, a aflição ou pelo menos a melancolia, assim a música tem duas tonalidades gerais correspondentes, o sustenido e o bemol, e conserva-se quase sempre numa ou noutra. Mas na verdade não é extraordinário que haja um sinal ± o bemol ± exprimindo a dor, que não seja doloroso nem fisicamente nem sequer por convenção, e contudo tão expressivo que ninguém se possa enganar? Por este fato se pode avaliar a que ponto a música entra na natureza íntima do homem e das coisas (SCHOPENHAUER, 1985,p. 144).

Se a vida humana é prazer de um lado e dor do outro, podemos constatar que o bemol exprime todas as dores do mundo; a tristeza, a melancolia, os problemas cotidianos, as crises

emocionais, os conflitos que geram profundíssimos sofrimentos, enfim, o bemol leva o homem a compreender como a vida é vontade de dor ou dor da vontade. O sustenido, por outro, nos indica os momentos de alegria, de êxtase propiciado pelos sons da escala musical. Não faz-se necessário ter conhecimento profundo de música para constatar esse fato. O ouvido é suficiente para fundamentá- lo. Ele afirma que a música de dança em bemol expressa a decepção de um prazer medíocre obtido através de muitos aborrecimentos. Noutra passagem das Dores do Mundo fazendo apologia a sinfonia profunda nos diz que:

Uma sinfonia de Beethoven descobre-nos uma ordem maravilhosa sob a desordem aparente; é como um combate encarniçado, que passado um momento se resolve num belo acorde ± uma imagem fiel e perfeita da essência deste mundo, que gira através do espaço sem pressa e sem repouso. Num tumulto indescritível de formas sem número, que se dissipam incessantemente. Mas ao mesmo tempo através desta sinfonia falam todas as paixões, todas as comoções humanas; alegria, tristeza, amor, ódio, medo, esperanças, com infinitos cambiantes, e, contudo perfeitamente abstratas, sem coisa alguma que as distinga nitidamente umas das outras. É uma forma sem matéria, como um mundo de espíritos aéreos (SCHOPENHAUER, 1985,p. 146).

A música é a forma temporal da vontade desmaterializada? É o êxtase o tempo da vontade acima do princípio de individuação? Voltemos ao sujeito puro que conhece que extasia através da arte. O sujeito puro que conhece é o próprio Schopenhauer? Que êxtase o esteta deveria sentir com a sublimação musical propiciado pelos sons? Sabemos que Schopenhauer quando fala de música e que a define como coração das coisas, não está se referindo a música em geral. No caso da citação, a referência é a música sinfônica que tem esse poder de desvelar e revelar o íntimo das coisas e do mundo. O sujeito puro que conhece elevando-se acima do mundo fenomênico sente a essência da vida abstratamente.

Quando ouço música, a minha imaginação compraz-se muitas vezes como pensamento de que a vida de todos os homens e a minha própria vida não são mais do que sonhos de um espírito eterno, bons e maus sonhos, de que cada morte é o despertar (SCHOPENHAUER, 2001,p. 147).

O êxtase estético musical propicia a elevação do filósofo acima da miséria e da desgraça universal da condição humana. Mas, por outro, tem o poder de representar a magnitude e o que há de mais sublime na vida humana. O que seria da vida humana sem a sublimidade propiciada pelo êxtase musical? A metafísica musical da música sinfônica não deixa de fora nenhum sentimento que existe no homem e na natureza, desde os mais elevados aos mais baixos graus da escala da vida. É por isso que o esteta dar uma ênfase e separa a música de todas as artes, conceituando-a como o remédio para todas as dores e misérias do mundo. No êxtase, o desejo é apaziguado e consequentemente a dor cessa. Mas a música consegue suprimir os nossos desejos? Ela tem esse poder niilístico de aniquilar com a desgraça humana? Ou representa um paliativo temporal para amenizar os nossos males? É possível a libertação total a partir da música? Uma sinfonia conduz o homem a um repouso eterno? Que relação podemos fazer entre a música e a causalidade? Será a causalidade o limite da música? A música rasga o Véu de Maya ou o Véu de Maya rasga o êxtase musical? Após o sentimento de um prazer sublime a causalidade nos chama para novamente olhar a nossa condição de frente? Com toda a força que há na música, o que o artista propicia aos espectadores é um êxtase temporal e momentâneo, não podemos viver eternamente no sublime da música, por isso o seu efeito perde o encanto na justa medida em que o som se esvai no tempo. A música é a dor e o prazer no tempo, a vida e a morte no tempo, a felicidade passageira nas sublimes partituras. A tentativa da vontade de suprimir-se na música através de um conhecimento intuitivo representa uma ação pedagógica no sentido de tentar conhecer-se a si mesma? É possível uma pedagogia da vontade, já que ela tenta aprender com as suas próprias dores?

Ao final do livro III o esteta conclui que não é pela via musical que a vontade será DQLTXLODGD2³QLLOLVPR´PXVLFDOpXPDIRUPDSURYLVyULDGHDFDOPDUDYRQWDGHHFRQVRODURKRPHP no tempo musical. A libertação total só poderá acontecer mediante uma força mais profunda e magmática que faça ao homem compreender que a fonte de todas as dores é a vontade, o seu fundamento. Para isso, faz-se necessário um desprendimento total de sua essência e dos seus interesses individuais. Que categoria de ser tão poderoso fará das dores do mundo as suas próprias dores? É através de uma dor profunda que o libertará totalmente do querer viver e o elevará ao querer morrer? Portanto, mesmo que a música não tenha o poder de uma libertação total da dor, a vontade aprendeu com ela e elevou-se a um grau maior de reflexão e conhecimento de si. Com efeito, ³Hste conhecimento puro, profundo e verdadeiro da natureza do mundo torna-se ele mesmo a finalidade do artista de gênio: este não vai mais longe´ (SCHOPENHAUER, 2001,p. 147).

3. A ORIGEM DA TRAGÉDIA E A SUBLIMAÇÃO SCHOPENHAURIANA:

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