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Viu-se que o inconsciente coletivo apresentado por Jung é uma mescla de ideias e predisposições inatas que são transmitidas de geração em geração, desde os primórdios da espécie humana e que, portanto, têm uma base biológica que traz informações, sentimentos,

86 sensações, lembranças de um tempo remoto. Quando o indivíduo nasce, essas tendências naturais que compõem o conteúdo psíquico do inconsciente coletivo e que são potencialidades, ou seja, que são como sementes aguardando as propícias condições para germinar, no decorrer da vida, diversas situações vão abrindo espaço para que essas tendências naturais sejam colocadas em prática, pois elas dependem da experiência do indivíduo para se desenvolverem ativamente. Dessa forma, as sementes germinam, isto é, as potencialidades inatas se desenvolvem e desabrocham. Esses conteúdos foram constituídos ao longo de milênios, a partir de repetidas experiências dos ancestrais e os instintos que permitiram a uniformidade funcional da psique, porque sendo eles inconscientes, sua manifestação acontece independente da vontade:

Mediante a análise do inconsciente pessoal, o material coletivo juntamente com os elementos da individualidade são conscientizados. Uma vez abolidas as repressões de ordem pessoal, a individualidade e a psique coletiva começam a emergir, fundidas uma na outra, liberando fantasias pessoais até então reprimidas. Aparecem sonhos e fantasias, que se revestem de um aspecto diferente (JUNG, 2008, p. 144).

Na performance, o artista interessado por compreender sua própria existência observa seu instinto, a fim de encaminhar certas forças advindas dele, no qual é encontrado todo um acervo do seu próprio trajeto de experiência. Ele encontra, assim, a utilidade de todo material psíquico e o direciona ao exercício de sua atividade criativa. Sobre essa condução do artista, assumindo o seu instinto como força motriz de sua obra, Artaud diria que “O ator não passa de um empírico grosseiro, um curandeiro guiado por um instinto mal conhecido” (ARTAUD, 2006b, p. 114). Dessa forma, privilegiando a reconexão profunda com o caráter instintivo sobre um discurso superficial, Artaud não deixa de reforçar a sua importância acerca desse fenômeno, porque “o instinto comparece para suprir essa ausência de uma noção que não se pode definir; e não é preciso cair de tão alto para emergir nas paixões medianas como aquelas de que o teatro contemporâneo está cheio” (ARTAUD, 2006b, p. 118).

Nessa uniformidade de ação, os instintos exprimem-se numa projeção imagética deles mesmos, trazendo sua forma simbólica arcaica: os arquétipos. No termo popular, os arquétipos, como símbolos alquímicos, seriam um tipo de memória que vem da pré-história, isto é, são conceitos que o homem primitivo armazenou em seus genes e que permanece em toda a humanidade:

De qualquer modo, quer se trate ou não de criptomnésia, surge inconsciente de uma pessoa civilizada uma imagem divina autêntica e primitiva, produzindo um efeito vivo, que poderia dar o que pensar a um psicólogo da religião. Nessa imagem nada há que possa ser considerado “pessoal”; trata-se de uma imagem totalmente coletiva, cuja existência étnica há muito é

87 conhecida. Trata-se de uma imagem histórica que se propagou universalmente e irrompe de novo na existência através de uma função psíquica natural. Mas isto não é de se estranhar, uma vez que minha paciente veio ao mundo com um cérebro humano cujas funções continuam a ser as mesmas que entre os antigos germanos. É o caso de um arquétipo reativado, nome com que designei estas imagens primordiais. Mediante a forma primitiva e analógica do pensamento peculiar aos sonhos, essas imagens arcaicas são restituídas à vida. Não se trata de idéias inatas, mas de caminhos virtuais herdados (JUNG, 2008, p. 24, grifo do autor).

Jung descobre que os arquétipos se expressam de maneira tipicamente humana, ou seja, que obedecem a certos padrões. Então, a ideia de arquétipo oferece semelhanças funcionais no modo como se expressa a fantasia humana. Dessa disposição funcional, para a prática clínica, Jung recorrerá a essas imagens arcaicas para trazer uma hipótese de trabalho que servirá para a investigação de fatos ou para a compreensão tanto dos vastos fenômenos clínicos, quanto culturais. Assim, Jung debruça-se nas histórias, nos contos de fada e, com mais afinco, na mitologia grega, que é propriamente um símbolo, porque nela se concernem diversas histórias sobre os desejos, tanto humanos como de deuses, sendo ambos pertencentes à mesma classe, além de outros fatores como os próprios sentimentos, a traição, o ódio, a inveja, o poder, a ganância etc.78

Tratando-se de colocar essas imagens simbólicas no plano artístico, o performer utilizá- la-á como elemento de criação do seu imaginário, numa intuitiva produção poética, embora Artaud, tratando dessas mesmas imagens, advindas do inconsciente, faça sua crítica sobre quando se atribuem a elas a definição “poéticas”, banalizando-as:

Proponho a renúncia ao empirismo das imagens que o inconsciente carrega ao acaso e que também lançamos ao acaso chamando-as de imagens poéticas, portanto herméticas, como se essa espécie de transe que a poesia suscita não repercutisse em toda a sensibilidade, em todos os nervos, e como se a poesia fosse uma força vaga e que não varia seus movimentos” (ARTAUD, 2006b, p. 68).

É colocada também ao performer a possibilidade de desvendar e compreender com mais assiduidade as formas como essas imagens se apresentam, pois elas são revestidas de um imaginário coletivo, cujas personagens podem vir a ser míticas e literárias, componentes essenciais aos estudos artísticos de pesquisa e performance. É a partir delas que se

78É de suma relevância ressaltar que mesmo que os arquétipos sejam constituídos quase que inteiramente por elementos oriundos do inconsciente coletivo, sendo igual para todos os seres humanos, eles também compreendem elementos individuais provenientes da consciência do próprio indivíduo e do seu inconsciente pessoal. Desenvolvendo-se de forma autônoma, os arquétipos têm personalidade própria: são figuras simbólicas individualizadas e bastante complexas que residem na psique.

88 proporcionam ao artista possíveis revelações de seus comportamentos, complexos e de sua própria experiência pessoal e coletiva:

A consciência interior é parte de uma imagem que se constrói e que trás [sic] ligada a si o fundo invisível do corpo. Esta imagem tem vários vetores de força que a mantêm e desenvolvem. Alguns destes vetores são culturais e outros resultam da acumulação de experiências e consequência das aprendizagens do corpo, matérias e conhecimentos a partir dos quais se criaram imagens que comunicam num nível profundo. Estas imagens são utilizadas pelos artistas ao tornarem o corpo o seu instrumento e matéria de criação, propondo uma apreensão e aprendizagem do mundo que, desse modo, transforma em experiência comum o sofrimento e o prazer. As imagens do corpo são inclusivas e pertencem a todos nós sendo na sua parecença que se define o coletivo e nas suas singularidades que se imprime o subjetivo. Além disso ao serem inclusivas puxam-nos para um espaço de participação, no qual não é possível escapar. É essa a sua natureza inclusiva: um apelo para o mergulho dentro de si ao olhar e sentir o corpo do outro. Todos estão incluídos e ninguém sofre sozinho, ou ninguém se extasia, também, de forma isolada. Estas imagens interiores expostas através do corpo são um apelo à participação. E tomam um cariz político e social que as artes parecem querer puxar para o seu interior. As imagens do corpo de cariz artístico e, em particular, performativo, têm um forte apelo para a referida aprendizagem, a qual se pode considerar um constante mapeamento do corpo para o desvelar dos vários sujeitos de que este é feito e que os dispositivos auxiliam a desvelar (GARCIA MIGUEL, 2017, p. 64-65).

Artaud, por sua vez, considerando esses símbolos alquímicos como partes transcendentes que carregam uma densidade psicológica, considera-os como estados filosóficos da matéria que convidam o performer a se atentar quando elas se apresentam:

Os Mistérios Órficos que subjugavam Platão deviam ter, no plano moral e psicológico, um pouco desse aspecto transcendente e definitivo do teatro alquímico e, com elementos de uma extraordinária densidade psicológica, evocar em sentido inverso símbolos da alquimia, que fornecem o meio espiritual para decantar e transfundir a matéria, evocar a transfusão ardente e decisiva da matéria pelo espírito (ARTAUD, 2006b, p. 43).

Dessa forma, esses símbolos nada mais são do que o espírito que quer ganhar espaço sobre o corpo, ou entre outras palavras, é mais um conteúdo energético que busca sua expansão. Através da linguagem fisiopsicológica, esses símbolos permitem tornar possível a manifestação artística ao fornecer sentidos múltiplos, diferentemente da palavra, com a sua lógica de discurso, que tende mais a contribuir para o seu achatamento. Sendo assim, os arquétipos ajudariam também a reconstituir o equilíbrio do indivíduo.

É necessário traçar aqui um paralelo com a história empírica do presente autor desta dissertação, quando o mesmo iniciou sua investigação sobre a interpretação dos seus sonhos, conforme ele foi o analisado, por via da terapia junguiana. A partir daí, começou a considerar as imagens simbólicas essenciais, uma vez que forneciam indícios de obstrução referente à

89 repressão de sua condição sexual, que ele sustentou durante anos a fio, a ponto de deixá-lo num quadro de depressão aguda. As imagens simbólicas que se apresentaram em seu sonho garantiram-lhe futuramente uma tatuagem nas costas, como forma de recordação de uma superação extremamente fundamental e significativa, pois se tratava justamente do bloqueio de seus instintos, de sua energia motriz vital. A partir daí, fez-se notar que a proposta de relembrar todo o simbolismo não só apresentado em forma, mas também em cores e sensações, enquanto ele sonhava, um caminho norteador de perspectivas abrir-se-ia às interpretações interligadas à sua história de vida, podendo também chegar-se mais próximo da causa. Foi o que aconteceu. As imagens do inconsciente apresentaram-se como aviso e como resposta ao seu bloqueio e às suas inquietações. Depois, essas imagens revelavam-se em estado de sensibilidade aflorada do corpo, quando o autor desta dissertação exercia a sua faculdade criativa e inventiva na performance:

Se, por um lado, o artista segue os seus instintos, também é forçado a percorrer caminhos que o tornem comunicante. É nesta abertura condicionada que o corpo do artista se tornou objeto de arte possível, objeto estético. E inscreve nesse objeto também o corpo do espectador, o que implica logo um processo de múltiplas subjetivações (GARCIA MIGUEL, 2017, p. 180).

De acordo com Jung, há a existência de inúmeros arquétipos desenvolvendo-se em potencial a partir do inconsciente coletivo, todavia apenas algumas dessas forças conseguiram desenvolver-se consideravelmente, a ponto de serem conceituadas.