• Nenhum resultado encontrado

Jung possuía uma visão abrangente sobre a vida, pois permitia-se adentrar ao desconhecido e a observar-se, desde cedo, servindo dele mesmo como matéria prima de muita coisa, além também de se debruçar sobre a alquimia77 e sobre os textos com conhecimentos mais antigos, desde o Egito. Foi a partir daí que avistou os mesmos símbolos e figuras geométricas que se manifestavam em seus sonhos. Logo, a simbologia foi sua força motriz de

77 Aqui se faz necessário ressaltar que Jung, acreditando ser Hermes Trismegisto, o criador da Alquimia e da psicologia, trata as duas disciplinas de forma interligadas, para enfim serem propícias à interpretação da simbologia oculta nos sonhos.

83 investigação dentro da psicologia analítica, pois ele detectou através dela o seu poder de ação fenomenal no inconsciente da psique. Assim, não era nada de anormal e limitado para ele aceitar essa condição do sonho, pois acreditava que o ser humano estava inserido no mundo não de forma isolada e autônoma, e sim de forma conjunta e dependente, isto é, num campo vibracional. Se o indivíduo tivesse esse reconhecimento de sincronia com o universo, ele estaria mais propenso a receber esses estímulos inatos e para adquirir presença e clareza no mundo. Caso contrário, se ele não conseguisse romper com a hábito de fazer projeções sobre os outros e sobre si, ele tenderia a ficar num campo superficial das idealizações, isto é, mais ele afastar- se-ia dessa sincronicidade com o mundo, distanciando-se também da relação de presença para com ele.

Na vida cotidiana, o homem é instruído a refletir sobre o que quer dizer, a fim de deliberar a melhor maneira de exprimir as suas palavras. Então, o homem atribui nome às coisas, utilizando-se de uma coerência lógica para o emprego de seu discurso. Logo, o homem treinado empregará o seu ponto de vista, baseado num modelo estrutural racional de linguagem, para não se fazer incompreendido. Assim, não medirá esforços para, se possível, renunciar ao máximo do uso de metáforas complexas. O que difere, por sua vez, do sonho, em que se encontra o acúmulo de imagens contraditórias e destituídas de coerência, reveladas numa atemporalidade. As coisas consideradas aparentemente comuns e corriqueiras podem vir a se tornar atraentes e admiráveis, ou podem conter um aspecto amedrontador. Entre outras palavras, de modo diverso, o inconsciente contém todo um material que se manifesta opostamente aos conteúdos disciplinados adquiridos pela consciência. Dessa forma, quando o indivíduo acorda, tentando recordar-se do que foi transmitido pelo sonho com exatidão, ele notará a dificuldade da compreensão do mesmo na íntegra e logo cessará de se tornar notória em sua memória, pois o perturba e o incomoda, anulando assim a sua capacidade de associação com situações de sua vida histórica. Como ele desconhece o sentido do conteúdo do inconsciente transmitido em sonho, então ele se abstém de averiguá-lo, ignorando-o a fim de não se sentir confuso e desnorteado em seus pensamentos. Todavia, quando se analisa os conteúdos do inconsciente exprimidos pelo sonho, revela-se mais próxima a importância emocional que se insere na profundidade da psique do indivíduo. É com o olhar vigilante sobre eles e incluindo-os na sua criatividade, que a performance, debruçando-se sobre a observação desses fenômenos inconscientes, vai buscar a oportunidade de indagações pessoais. Na coragem de se prostrar diante do desconhecido mundo do sonho, a performance vai encontrar alternativas de reconciliação relacional consigo e com outro, na própria experiência do artista:

84 A performance introduz a matéria dos sonhos, a realidade da vida, a ilusão, as ficções pessoais e coletivas, as fantasias e as expectativas individuais. Os objetos de arte produzidos pela performance formam-se de uma matéria que os afasta de um olhar que reproduz o mundo, distanciando-se de uma perspectiva mimética do exterior. Procuram uma sobreposição do mundo interior relativamente ao mundo exterior. Deixam de ser feitos à mão – no sentido do artifício manual e virtuoso – e introduzem o corpo como fazedor. Daí o seu carácter confuso e, com frequência, inacabado. Esta condição de “corpo-palco” imprime-lhes um traço distintivo que separa as performances das obras de teatro. A sua escrita, a sua dramaturgia, realização e relação com o mundo, segue por caminhos em que a experiência e os seus limites se posicionam na fronteira entre a vida e a arte (GARCIA MIGUEL, 2017, p. 99- 100, grifo do autor).

A importância que se tem na interpretação dos sonhos dá-se porque os conteúdos inconscientes que se manifestam carregam todo aspecto da personalidade total do indivíduo. Externar e reorganizar esses conteúdos inconscientes ajudam a reorganizar a psique, junto à consciência, podendo ser capaz de mudar também o caráter. Na análise dos sonhos, esses aspectos enraizados na psique invisível do inconsciente são tão relevantes por serem imagens vigorosas, que detêm as experiências e conceitos da consciência e os transformam num sentido inconsciente. Isso se dá porque o pensamento consciente das afirmações racionais coloca limites na pluralidade que o inconsciente é capaz de produzir. A característica do sonho é simbólica, porque se utiliza de uma linguagem ilustrada que não exprime uma causa de forma direta, mas sim indiretamente, em metáforas. O sonho não tem por intuito proposital camuflar o que se tornou subliminar, mas devido ao reflexo da dificuldade do homem em perceber o conteúdo emocional, ele oferta possibilidades de interpretação, através de imagens que estejam em consonância com a causa do indivíduo em questão. Apesar da história do conhecimento da civilização ocidental a partir de Sócrates ter banalizado esse componente da psique, desviando o olhar sobre os conteúdos oriundos dele, a ação do inconsciente continua perpetuando no homem ininterruptamente. Por vezes são transmissões de mensagens ou avisos sobre todo tipo de influência externa, visando através do sonho restabelecer de forma sutil o equilíbrio psíquico. A este processo, Jung chamará de função compensatória dos sonhos, pois os sonhos compensam as debilidades da personalidade, ao mesmo tempo que podem ou não advertir o indivíduo dos perigos da escolha de seu atual rumo.

Há no sonho uma certa comunhão que aproxima o indivíduo da sua própria natureza, rompendo com qualquer subterfúgio que ele idealizou e acreditou ser sua configuração enquanto ser humano. Artaud compactuará com a desmistificação de que a consciência se coloca sobre o inconsciente, e acredita também que o sonho é capaz de fornecer ao artista a liberação dos sentidos que se aproximam de uma sensação verdadeira e primordial de fronteira

85 entre a vida e a arte. Da mesma maneira que fazer terapia não é algo prazeroso, quando se coloca à tona atitudes que o indivíduo tem dificuldade de aceitar, da mesma forma é para o pensamento de Artaud, em que a crueldade da revelação aterrorizante é fundamental no seu teatro performativo, que busca a “liberdade mágica do sonho”:

Queremos fazer do teatro uma realidade na qual se possa acreditar, e que contenha para o coração e os sentidos esta espécie de picada concreta que comporta toda sensação verdadeira. Assim como nossos sonhos agem sobre nós e a realidade age sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um sonho, que será eficaz na medida em que será lançado com a violência necessária. E o público acreditará nos sonhos do teatro sob a condição de que ele os considere de fato como sonhos e não como um decalque da realidade; sob a condição de que eles lhe permitam liberar a liberdade mágica do sonho, que ele só pode reconhecer enquanto marcada pelo terror e pela crueldade (ARTAUD, 2006b, p. 72-23).

A dificuldade não se apresenta, por exemplo, na mentalidade primitiva, porque nela se encontra a qualidade de conservação deste material psíquico: os instintos. O homem primitivo era guiado por esses instintos e, já o seu descendente, não. A priori, esses instintos que criavam formas e se projetavam através dessas imagens nos sonhos, tinham seu grau de importância pelas visões dos líderes ou chefes da tribo, pois eles tinham mais clareza da associação dessas imagens como um aviso das forças da natureza. Em seguida, o conteúdo dessas imagens era repassado e logo compreendido pelos outros indivíduos da comunidade. Já com o descendente, ou seja, o homem racional no processo de civilização, desenvolveu-se o controle dos instintos, adotando a separação da consciência com a profundidade instintiva da psique. Apesar do esforço de controle e até punições sobre os que mantinham contato com os conteúdos do inconsciente, o caráter desses fenômenos instintivos nunca deixou de existir parcialmente no homem da civilização ocidental.

É justamente através do fenômeno instintivo que se trará o campo simbólico nos sonhos, por vezes incompreendidos. Serão tratados no tópico a seguir, sendo uma das esferas mais admiradas da teoria junguiana, os arquétipos e os instintos. Esses servirão como ferramenta importantíssima de contribuição criativa e estrutural de certas performances, visto que ao resgatar essas imagens, resgata-se também a carga emocional do inconsciente pessoal e do inconsciente coletivo de uma cultura.