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Mapa 4 Mapa político e administrativo de Alagoas e suas microrregiões

6 OS TRABALHADORES “QUASE ESCRAVOS” E A “HIDRA” ALAGOANA

6.1.2 A manutenção do Latifúndio e das condições de vida e trabalho em Alagoas

No capítulo 3, item 3 desta tese, “Brevíssima história econômica de Alagoas e sua

197 Feliz expressão utilizada por Mintz.

estrutura social persistente”, vimos como a economia açucareira alagoana passou sem grandes transtornos pela abolição da escravatura, em função da disponibilidade de grande número de homens livres e pobres, ex-escravos recém libertos, reserva de mão de obra de moradores facilmente absorvidos já acostumados aos rigores do trabalho e às condições de vida nos engenhos. Esses agora “cidadãos livres” continuariam a viver, ao longo das primeiras décadas da República, a experiência do coronelismo, já conhecida no império. Entre 1945 e 1955, o processo usineiro reverterá o processo de divisão por herança, reorientando o processo de acesso à terra novamente para a concentração que se radicaliza entre 1956 e 1965, exatamente na região aqui estudada, a Zona da Mata Norte Alagoana, assim como a sua área contígua, a Zona da Mata Sul Pernambucana, retirando o direito de lavoura dos trabalhadores já que trabalhavam seis dias semanais. Assim nos descreve Andrade, os trabalhadores dessa região nessa época:

Por isso os trabalhadores nessa área não se fixavam mais; nada possuindo, vivem errantes, trabalhando hoje em um engenho, amanhã em outro. Uma trouxa, denominada geralmente “bomba”, é o único bem que transportam em suas sucessivas mudanças, (…) A proletarização e, consequentemente, o empobrecimento cada vez maior do trabalhador rural levam o mesmo ao descontentamento, à insatisfação.198 Nessas condições, viviam os trabalhadores de engenho em engenho num empobrecimento que os desagradava. Para retê-los, os fazendeiros agiam de duas formas: uma delas era procurando oferecer assistência médica e odontológica paliativa sem grandes consequências; a outra era o sistema de “compra do trabalhador” ou também conhecido como “sistema de barracão ou cambão”. Andrade também nos descreve esse sistema:

O proprietário facilitava ao trabalhador pequenos empréstimos; este, ganhando pouco, com família numerosa e abastecendo-se em barracão que cobrava sempre preços elevados, ia semanalmente fazendo novos empréstimos, nova dívida. Quando o débito se elevava o proprietário começava a negar novos empréstimos, alegando que a conta estava grande. Ameaçava de um desconto semanal no salário afim de que fosse feita a amortização do débito. O trabalhador, desesperado, procurava sair para outa propriedade, mas o credor não consentia que ele se mudasse se não saldasse a conta. Então ele pedia um empréstimo equivalente ao débito ao proprietário do engenho onde ia morar e, se conseguia. Pagava o débito anterior e se mudava: não era livre (…) … saía fugido (…) da propriedade do credor, era comum que este conseguisse o apoio de uma autoridade que fosse prender o foragido (…). Às vezes, o trabalhador que fugia ficava na propriedade do credor trabalhando durante o dia e permanecendo à noite preso em um quarto sob guarda dos vigias em verdadeiros cárceres privados.199 Na mesma linha, nas décadas de 60 e 70, demonstra Lima (2006) como o estado de Alagoas irá se isolar dos impactos industrializantes da SUDENE, através do “fechamento” político do Estado, protagonizado pela classe dominante canavieira que, tomando um rumo

198 ANDRADE, Manoel Correia. A terra e o homem no Nordeste: Contribuição ao estudo da questão agrária no

Nordeste. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1998, p. 118.

inverso de outros estados do Nordeste, irá não só impedir a criação de alternativas econômicas, como aprofundar o domínio e a dependência do estado de Alagoas sob o poderio sucroalcooleiro. Chegamos à década de 80, quando, sob o impacto da reestruturação produtiva e da liberação dos mercados do açúcar e do álcool, como demonstra Péricles (2007), a agroindústria sucroalcooleira vai se concentrar na chamada “matriz limitada” complementar e tradicional. Um ensaio de diversificação produtiva ocorre em 1980 com a instalação do polo cloroquímico alagoano, porém como pondera Lopes (2017), não só essa alternativa se esgota rapidamente, pela escassez de financiamento, como a agroindústria canavieira volta a se fortalecer, apoiada num processo de reestruturação produtiva sustentada no assalto aos cofres públicos estaduais e estimulada pela ampliação das exportações de commodities e matérias- primas ainda na década de 1990. Luiz Sávio de Almeida, um outro grande estudioso da realidade alagoana, assim sintetizou todo esse processo histórico de Alagoas:

Desejamos, neste final, explicitar os seguintes pontos:

1- Em Alagoas, o sistema supre as suas necessidades, após a abolição, lidando com a pobreza local, evitando qualquer linha de mudança na agricultura, para continuar como incorporadora intensiva de mão-de-obra;

2 – Não se pronuncia qualquer choque significativo interno no capital, pois não havia necessidade de modificações na performance da acumulação;

3 – O sistema constrói uma continuidade entre a produção agrícola e a industrial, sob a guarda dos interesses do capital de financiamento;

4 – Esta continuidade implica uma estratégia política em que se ratifica a base do poderio político dos senhores de terra;

5 – Por razões de natureza estrutural, o único local possível para que apareça uma tentativa de contestação organizada ao sistema, é Maceió.200

No capítulo 4 desta tese, vimos como, analisando diversas fontes referentes ao período de 1985 a 1997, pode-se constatar o efeito dessa longa permanência do domínio canavieiro alagoano que passou ao largo, e se moldou, segundo suas conveniências, às mudanças no mundo e no Brasil, conseguindo manter seu padrão de dominação até fins do século XX.

Os olhares sobre o mundo do trabalho na zona canavieira de Alagoas passaram por diversas visões, desde aquelas dos agentes do Estado, vindos de diferentes partes do país, de missionários religiosos, alguns vindos de países capitalistas centrais e, nas entrelinhas, o olhar patronal assim como dos próprios trabalhadores. Através desses olhares, foi possível entrever um mundo do trabalho atravessado pela tensão social despontada nos medos dos trabalhadores e na livre e manifesta violência dos patrões e seus prepostos. Revelou-se um momento da história em que, na conjuntura internacional, órgãos como a ONU reconheciam e adequavam

200 ALMEIDA, Luiz Sávio de. Chrônicas alagoanas; notas sobre poder, operários e comunistas em Alagoas.

seus conceitos e legislação para dar conta de uma diversidade de formas de exploração semelhantes à escravidão espalhadas pelo mundo. Paralelamente às mudanças de postura da ONU, organizações nacionais, especialmente a Comissão Pastoral da Terra, estimularam e apoiaram suas congêneres estaduais a levantar denúncias e a não se calar diante do horror vivido por trabalhadores submetidos a práticas violentas a nível local. Em Alagoas, o empenho dos membros da CPT/AL em apoiar a luta por direitos civis elementares dos munícipes e em romper com o silêncio, nascido do medo, estimulando a denúncia e a auto-organização dos trabalhadores, provocou mudanças no comportamento desses trabalhadores, assim como provocou uma reação violenta da classe dominante que pode contar com o apoio de agentes do Estado. Tanto nas denúncias de atrocidades cometidas contra os trabalhadores, quanto na reação da classe dominante local é possível identificar manifestações de resistência, assim como é possível identificar um padrão de tratamento que não nos permite usar, sem grandes dúvidas, a expressão “homens livres” para os trabalhadores da Zona da Mata Norte. Ao mesmo tempo, a interação entre a gerência do Estado e os interesses privados de famílias de fazendeiros e usineiros nos remete ao conceito de coronelismo.