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Mapa 4 Mapa político e administrativo de Alagoas e suas microrregiões

2 A ATUALIDADE DAS PRÁTICAS ILEGAIS DE ESCRAVIDÃO

2.1 MAS DE ONDE VEM MESMO A PALAVRA “ESCRAVIDÃO”?

2.1.3 A hierarquia dos homens livres do século XIX: Dos plenamente livres aos livres

O burlo da legislação com a escravização de homens livres dependia da situação em que se encontrava o homem livre. O homem livre era no século XIX, tanto quanto hoje, uma categoria cheia de matizes. No capítulo 2 de seu livro, “Homens livres na ordem escravocrata”, Maria Sylvia de Carvalho Franco procura estabelecer uma hierarquia social dos homens livres, através da qual se pode identificar diferentes matizes da liberdade, dependência ou vulnerabilidade de uns em relação a outros. Coloca que o grande proprietário de escravos e de terras é o que dispõe de maior grau de liberdade sobre si e seus afazeres, porém mesmo ele, em certas circunstâncias, se via em posição de dependência de um outro detentor de propriedades, o tropeiro: “Na fase de abertura de fazendas, o fazendeiro dependia do tropeiro de seus prazos e preços, entretanto o controle pessoal garantiu ao fazendeiro a regularidade de suprimento e ao tropeiro, a formação de sua clientela. O ‘bom nome’ aparecia como penhor das transações comerciais”. Nesse sentido, continua Franco:

Em relações de mercado os homens se enfrentam como portadores de uma liberdade que significa habilitação ao direito de propriedade e igualdade jurídica. Assim, esse conceito de liberdade só poderá ter seu conteúdo precisado à luz do regime de propriedade, apreendido não apenas através de sua expressão codificada, que prescreve direitos “formais”, mas sobretudo através das condições que regulam a distribuição efetiva do poder, desvendando-se assim os limites dos direitos “vividos”. Em resumo, o conceito genérico de liberdade implícito nas relações de mercado, que é firmado no princípio da propriedade privada, só poderá alcançar teor explicativo quando nuançado em função do sistema de dominação a que se conjuga. Levando em conta essas considerações, ficará claro como e por que as relações entre fazendeiro e negociante de tropas estiveram longe de se cumprir pelas vias racionais e “livres” que a natureza mercantil do contato estabelecido entre eles poderia virtualmente engendrar.15 (FRANCO, 1997, p. 68)

Ela divide o grupo dos tropeiros em: negociantes de animais e condutor de tropas. O tropeiro negociante de animais, por ser portador de propriedades (200 a 300 mulas), seria pouco ligado, porém mesmo assim ainda ligado, mantendo uma relação de mercado com menor grau de obrigações de ordem pessoal com o grande fazendeiro16. O tropeiro condutor de tropas era parte do pessoal da fazenda tendo sua importância medida pelo valor da carga e pelo tempo que essa ficava sob seu controle. Além disso, sua ocupação o qualificava para a atividade de capanga por conhecer os caminhos e ser perito em agir sem deixar vestígios. O segundo tipo de tropeiro guardaria um grau de dependência bem maior em relação ao fazendeiro, mas abaixo dele ainda haviam outros grupos de homens livres.

Abaixo dos tropeiros, Franco nos apresenta os donos de pousadas ou vendeiros. Os vínculos entre esses e as propriedades territoriais definiam seu grau de dependência, cuja posição oscila entre o nivelamento com as camadas populares e a dependência dos grandes proprietários.

A posição oscilante e o comportamento dúbio do vendeiro representam mecanismos que garantem seu próprio equilíbrio na sociedade. A malandragem, a esperteza, e o expediente consistem, para ele, na forma possível de acomodação a uma ordem social em que sua atividade é marginal e quase dispensável. Este quase que falta para que ela inexista, não é suficiente, por outro lado, para dotar aquele que a exerce de uma situação definida no mercado e uma correspondente posição social estável.17

Neste ponto, Franco chama a atenção para o fato de que essa hierarquia entre diferentes homens livres se apresentava enevoada e indefinida. Entre a intimidade com o fazendeiro e com o escravo, o vendeiro desenvolvia sua técnica competitiva da astúcia e da malícia, oportunisticamente, tirando proveito para si de qualquer meio de acumular recursos, mesmo

15 FRANCO, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997, p.

68.

16 “Essa dependência pendia pesar mais para o tropeiro, à medida que se consolidavam as plantações e aumentava

a diferenciação de fortunas (…) …o tropeiro supõe a existência do senhor de terras. Embora itinerante e submetido circunstancialmente a proprietários diferentes, haverá sempre um senhor, sob cuja égide se encontrará e de cuja mercê dependerá o êxito de seu trabalho. ” Idem, ibidem, p. 68-69.

17 FRANCO, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997, p.

que por transações ilegais, como os furtos nas fazendas feitos pelos escravos.

Os próximos homens livres, abaixo do vendeiro, nessa escala, são os sitiantes. Esses pequenos proprietários se viam ligados aos grandes proprietários pelo elo comum da propriedade, cuja diferença era nuançada pelo parentesco divino do compadrio, vínculo que garantia as ambições políticas dos grandes proprietários, que colocava ambos dentro de um mesmo parentesco divino e, portanto, iguais. Entretanto esse parentesco divino estabelecia uma série de deveres e observâncias, promessas trocadas que estabeleceriam o vínculo de dominação baseada na fidelidade e na dependência.

Toda essa discussão ressalta, portanto, que não só no tratamento costumeiro, como na representação consciente do fazendeiro, o sitiante era pessoa. O reconhecimento dessa qualidade se reforça quando se faz ver que o tipo de ajustamento elaborado entre eles, mediante a dominação pessoal, mobilizava basicamente os atributos indispensáveis para participar de uma associação moral. (...) A lealdade inclui o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele e o imperativo de sua retribuição equivalente. Do ponto de vista jurídico também o reconhecimento do benefício recebido, o sentimento de gratidão por ele e o imperativo de sua retribuição equivalente. Do ponto de vista jurídico também o reconhecimento do sitiante como pessoa era completo. A condição de homem livre tornava-se integral com a prática do direito de propriedade e com o exercício de direitos políticos. Essas considerações mostram como a integração do sitiante à vida social se fazia mediante a exigência dos atributos específicos de sua humanidade: a consciência moral e faculdade da razão.18 Porém Franco também chama a atenção para o fato de que esse mesmo sitiante, aparentemente tão integrado na vida social, tem sua humanidade negada quando compelido a comportamentos automáticos, portanto fora do seu arbítrio e juízo, exigidos pela lealdade que deve ao fazendeiro.

Por fim, o último grau de homem livre abaixo do qual estaria o escravo. Nesse último degrau da liberdade se encontraria o agregado, que reelabora o antigo modo de vida caipira em terra alheia, e o camarada (do grande ou pequeno proprietário), que rompe com o mundo caipira ao integrar-se à lógica econômica de mercado. Os dois estavam inseridos num contexto de desenvolvimento da exploração lucrativa da terra que ainda convivia com a economia de subsistência. Ambos, apesar de eventualmente convocados em juízo, por terem o predicado de aceitação de sua palavra de honra para efeitos legais, tinham a sua vontade diluída pelo interesse daqueles de quem dependiam, ou seja, de seus patrões.

São inúmeras e profundamente interessantes as reflexões da autora sobre esses dois tipos, todavia para este trabalho cabe enfatizar dois aspectos, um ligado a essência da diferenciação desses dois tipos de homens livres e pobres daqueles que eram escravos.

18 FRANCO, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997, p.

Quando incorporado à esfera da justiça, regulada por normas gerais, o homem pobre é despido de sua condição objetiva de dominado, de pessoalmente submisso a um senhor, para revestir-se plenamente de suas prerrogativas de homem livre. Perante a lei, torna-se equiparado a qualquer de seus superiores; como qualquer deles, é “testemunha jurada aos Santos Evangelhos”, capaz de discernimento e digno de crédito, essencialmente diverso do escravo, apenas informante não juramentado. As condições formalmente igualitárias em que o rico e o pobre são colocados, quando sujeitos ambos a uma situação regulada abstratamente, permitem que se observe como o valor social de ambos é de todo diversos e como a conduta de ambos está orientada para a negação daquele nivelamento.19

O outro aspecto é ligado à possibilidade de sua sujeição de homem livre e pobre à servidão. Este aspecto parte da análise de uma legislação da Câmara de Vereadores de Guaratinguetá que, em 1897, definia que qualquer um, trabalhando “por suas mãos em serviço de roça”, seria obrigado a prestar serviços nas estradas municipais; aos fazendeiros ficava definido encaminhar um quarto de seus trabalhadores. Para a autora fica então escancarada qual a visão sobre o homem livre e pobre que se encontrava na consciência da classe dominante, distinguindo o tipo de encargo legal de cada um. Assim, essa sociedade paulista escravocrata do século XIX postularia e anularia o reconhecimento da condição humana ao homem livre e pobre, que teria sua moral desqualificada em função de sua posição social, que o colocava como dependente e devedor da classe dominante.

Franco conclui, expondo dois caminhos diferentes para cada grupo de homens livres e pobres. O primeiro caminho trilhado pelos portadores de meios de ascensão social e econômica, como os vendeiros, tropeiros e sitiantes, que através da dimensão pessoal, poderiam esperar superar a dominação em que se encontravam. O segundo caminho seria dos que dependiam de seus superiores para as necessidades mais elementares, que sendo portador de uma existência social dispensável, percebia sua sujeição como benefício, concebendo assim, sua condição como imutável.

Destarte, antes da abolição legal da escravidão (1888), outras possibilidades de redução de pessoas legalmente livres à condição análoga à de escrava (logo, sem sustentação jurídica) se faziam nos matizes que intermediavam esses dois polos opostos e interdependentes: ser proprietário e ser propriedade. O aspecto legal da discussão é relevante e não deve ser perdido de vista, todavia tem seus limites. Onde a propriedade legal de trabalhadores não era possível, a posse ilegal deles, sustentada num abismo social que não se constrangia diante da lei, tornava possível a escravização ilegal.

A hierarquia de matizes, que caracterizou categorias como “homem livre” ou

19 FRANCO, M. S. C. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Fundação editora da UNESP, 1997, p.

“liberdade” na sociedade escravocrata do Brasil do século XIX, encontrará no pós-abolição experiências semelhantes. Novas contradições vão se manifestar dentro de uma estrutura social e econômica persistente, mas experimentada de múltiplas maneiras.

Quadro 1 - Hierarquia social de livres na sociedade escravocrata paulista/séc. XIX20

Tipo Condição Denominação Identidade Situação

Livres com posses

Plena liberdade Grande proprietário de escravos e de terras Posse de terras e escravos Detentor da Liberdade plena sobre si e seus afazeres Entre plena liberdade e alto grau de liberdade Tropeiros Negociantes de animais Posse de mulas (entre 200 a 300) e escravos Quanto mais fazendeiros têm como cliente mais relação de mercado sem obrigações de ordem pessoal Livres responsáveis pelas posses dos patrões De baixo grau de dependência a médio grau de dependência Condutor de tropas Empregado do fazendeiro Importância medida pelo valor da carga e

pelo tempo que ficava responsável por ela Livres com Pequenas posses Grau de dependência varia segundo seus vínculos com os de cima e os de baixo Donos de pousadas e vendeiros Estimula os “de baixo” à dívida e ao furto ou se torna feitor do fazendeiro. Faz qualquer negócio Comércio local de baixo rendimento e acumulação predatória Dependência oscila entre os “de baixo e

os de cima” conforme as oportunidades Sitiantes Elo comum com fazendeiros: a propriedade da terra Pequena propriedade Dependência via compadrio – gera comportamentos automáticos, fora do juízo e da razão Livres sem nenhuma posse Dependência total - uso no mesmo grau de “posse”, completa sujeição pessoal Agregado Reelabora vida caipira em terra alheia Produz para subsistência e mercado Predicado da palavra de honra de homem livre Camarada Vende sua força de trabalho Produz para o mercado

Aceita em juízo, mas diluída pelo interesse dos seus patrões.