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A matriz sobre o território: costura e esgarçamento

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Origens

O Brasil, desde sua criação como nação, Colônia, depois Império e República, foi fundado pela fusão das matrizes tupi, africana e europeia. (RIBEIRO, 1995). Esta matriz original uniu-se posteriormente com a nova imigração, resultando no contingente brasileiro que conhecemos. Desde logo, se formam classes dirigentes, superiores, notadamente formada pelo descendente do branco europeu: o ‘patronado’ e o ‘patriciado’, os poderes proprietários e políticos, respectivamente. Sob eles, os homens-livres, que lhes orbitavam e serviam, e deles então viviam as benesses pela instituição do ‘favor’. Nas camadas mais baixas, os escravos, ou seus descendentes, e toda a gente operária e trabalhadora. Desde cedo se estabelece, portanto, um alijamento do trabalho frente ao poder. A grande massa trabalhadora, ainda rural, já estava afastada das decisões sobre seu futuro. Esta situação social se perpetua e se reproduz, com diferentes matizes, ao longo do tempo.

“... E entre nós, ainda se encara naturalmente a submissão do “nativo” e se enaltece o colonizador, especialmente nos aspectos sociais, econômicos e culturais... E reafirmando, jamais ajustamos contas com o passado – com a escravidão, com a colônia, com a iniquidade.” (TELLES, 2013)

Esta estruturação se verifica notadamente na valorização extrema da economia, que se confunde com o social. O que não é economicamente viável – leia-se rentável – é colocado como um empecilho e como gordura a ser cortada. Portanto, os serviços públicos que deveriam ser estendidos e defendidos por todos, servem apenas à camada marginal da sociedade, quase como ‘caridade’, e desta forma, de péssima qualidade.

“Há, portanto, grande distância entre a sociedade e o social, considerando-se o social tudo aquilo que não pode se transformar em sociedade, pois, enquanto economia, a sociedade é ativa e o social é passivo. E assim, assuntos prioritários em qualquer sociedade como saúde, educação, transporte coletivo assumem visão assistencial, aspectos que

40 nos aproximam da sociedade que se desenvolvia coligada com a antiga corte, já abordados por Alfredo Bosi.” (TELLES, 2013)

Como resultado deste processo, o Brasil é um país privado. Com tal constituição, o público só se instala com muito esforço de grupos que, ou acreditam nessa possibilidade, ou, prioritariamente, dela necessitam. Ocorre que, historicamente, esses grupos sempre foram marginalizados do poder e das decisões. Descendem daqueles que constituíam as categorias mais baixas da sociedade, e aos quais nunca foi dada oportunidade de participação nos rumos do país. O público é na verdade apropriado pelas organizações mais poderosas, que assim exploram seus lucros e investimentos.

Território

Qual o território resultante desta matriz de formação? Quais as estruturas urbanas resultantes. Como não poderia deixar de ser, o território é retrato fiel da estrutura social, arcaica e pretensamente moderna. Formas urbanas arrojadas são criadas sobre uma estrutura precária, inconclusa, incoerente. Atende-se apenas a interesses, de várias ordens, dominantes. Como resultado de uma estrutura complexa de poder e dominação, a cidade não é o espaço de convívio. Ao contrário, se torna o espaço da segregação e do medo. (RIBEIRO, J. apud TELLES, 2013)

São Paulo, a maior cidade brasileira neste início de terceiro milênio apresenta um retrato fidelíssimo deste processo. Não há praticamente vida pública, uma vez que esta não interessa às classes dominantes. As atividades públicas, quando não incorporadas a algum equipamento espetacularizado, são cada vez mais privatizadas e pasteurizadas pela mídia (CHAUÍ, 2006, apud) (ARANTES, apud GIROTO, 2013). O cotidiano foi privatizado. Empreendimentos vendem a segurança e o conforto, que deveriam ser públicos a endinheirados, reféns da situação em que são, ao mesmo tempo, vítimas, pois objetos do medo instalado, mas também algozes, porque, enquanto parcela decisiva da sociedade, tal como se constituíram historicamente em homens livres servis favorecidos, nada fazem para alterar o quadro. Apenas o reproduzem e o fortalecem, com o trabalho servil e o sonho, comprado, de participarem das elites. (RIBEIRO,J. apud TELLES, 2013)

41 Lotes, primeiramente, e atualmente glebas inteiras das cidades são privatizadas em forma de condomínios, verdadeiros guetos de tranquilidade e exclusão ao revés, onde a sociedade capaz se protege da violência urbana. Territórios isolados, murados, eletrificados, que incorporam todas as benesses “necessárias à vida”.

Simulacros de cidade, os centros comerciais, os tais “shopping-centers” se proliferaram pela cidade nos últimos 50 anos, tornando-se o grande destino ‘público’ das classes médias e elevadas. O equipamento se diversificou, atendendo atualmente praticamente todas as classes. Ilhas de conforto, nas quais se pode estacionar facilmente e por suas ‘ruas-mall’ caminhar com tranqüilidade, dedicando-se exclusivamente à tarefa-fim, as compras. Sua evolução o levou inclusive a incorporar espaços de trabalho e moradia, como verdadeiras fortalezas de segurança e comodidade. Tornam assim, desnecessárias, aos seus usuários, a cidade e a coisa pública.

A face mais evidente deste processo de esgarçamento do território público se dá naquele que seria o espaço público por excelência: a rua. Nela, a privatização se dá pelas células-móveis do privado, o automóvel, ao qual a cidade parece destinada. A este ‘ser’ urbano é destinado os grandes esforços do poder público. Rasgos territoriais, fraturas, cicatrizes urbanas são feridas no território em nome de uma mobilidade impossível e ilógica. A célula-móvel do espaço privado é preponderante sobre qualquer outro elemento urbano, e sua preponderância é aceita e defendida com unhas e dentes pela classe servil. Sonho vendido de um poder e status irrealizável. Horas privadas são despendidas nestes aparelhos, diariamente, em um ir e vir sem sentido. E os reclamos são sempre de mais espaços a eles, mais fluxos, passando sobre o que na frente estiver: bairros, casas, parques, calçadas, patrimônio histórico, o que seja. Não há reclamo por alternativas metropolitanas, coletivas, pois estas são, historicamente, destinadas as classes menos favorecidas, e, portanto, impensáveis como possibilidades para as classes médias. Não são símbolos de status e prosperidades, ao contrário, são testemunhos do fracasso individual.

Tal como ocorria com propagandas de cigarro, atualmente se vende o sonho de vida rural, selvagem até, para esses seres citadinos. “Jipões” 4X4 são comprados para que seu possuidor se sinta um verdadeiro ‘cowboy’, mesmo aqueles que jamais terão a oportunidade de experimentar tal ‘sensação’. Não importa, O sonho é vendido.

42 Um sonho de poder sobre os demais, possivelmente sobre a ‘selva urbana’. Quem ainda não o tem, o deseja. Talvez como a reprodução do status daquele antigo senhor de terras, que só através de sua propriedade atingia um patamar de reconhecimento na sociedade.

O desenho, ou o não desenho, da cidade resultante é apenas a face visível do processo. A arquitetura ou ‘as arquiteturas produzidas’ são, em sua esmagadora maioria, apenas objetos formais, dentro de um parcelamento rudimentar e privado, desprovidos de intenções ou questões mais profundas. Não há um horizonte perseguido. Nem mesmo a utopia moderna, que não se implantou, sobre um território já existente, a não ser em soluções e modelos parciais. Há simulacros, estilos, modas. Adota-se um pragmatismo formalista, maneirista, que atende apenas aos desejos do capital. Nele, não há participação nem comprometimento da sociedade. Fruto de legislações confusas, que impedem seu entendimento pela sociedade e até por técnicos, a cidade se constrói atendendo a interesses imobiliários e especulativos, coerentes, porém desconexos. Normas e incentivos geram ‘vantagens’ vendidas como ganhos desnecessários. Surgem varandas com churrasqueiras ‘gourmet’, térreos livres ou equipados com academias e salões de festas. Até teatros vazios são criados favorecidos pela legislação. Faixas de aeração são exigidos, mesmo quando voltados à rua. Garagens e garagens são exigidas para abrigar o sempre crescente número de ‘células-móveis privadas’. Tudo isso, independente ou não da pertinência, é incorporado ao desenho do edifício. Não há a preocupação urbana além do território privado, quando muito, o há em relação ele. O máximo que se atinge, em casos isolados e a título de generosidade, de favor, é a concessão ao acesso público. Muito pouco, para cidades que necessitam de uma revisão das relações público x privado.

A face mais cruel do território é aquela que condena a população desfavorecida a viver em condições totalmente precárias, muito além dos problemas ‘médios’. Aquela que condena a população a viver fora da ‘cidade legal e oficial’, da cidade do ‘plano e da ordem’ (MARICATO, apud CAVALCANTE, 2013). Àqueles que não conseguiram o mínimo para ter seu lugar ao sol, restam as frestas do espaço público, junto às ruas dos automóveis. Calçadas, canteiros centrais, baixos de viadutos, resíduos urbanos são utilizados por essa população mambembe e nômade, para a sobrevivência. Estes têm de conviver e se adaptar à barbárie total. São vítimas e

43 confundidos com a ameaça e violência da cidade. Parcelas maiores seguem para viver em habitações subnormais, na cidade ilegal, sejam inseridos na malha urbana – os cortiços – sejam em guetos enormes de exclusão, as favelas ou loteamentos clandestinos. Ali se constrói e se urbaniza como se consegue, com o pouco que está disponível. E mais, com a cultura construtiva incipiente, ainda que criativa. A precariedade impera. Não há padrões urbanísticos ou de edificação. Não há cultura urbana, pois esses grupos, originalmente, foram forçados a se transplantarem oriundos de realidades diversas, normalmente rurais, em um processo acelerado e caótico (RIBEIRO, 1995) que culminou com a concentração de cerca de 85% da população do país nas cidades. A esses grupos se dedicam os esforços dos governos no campo da habitação social. Esforços insuficientes, pois nunca atingem marca razoável para a real melhoria das condições. Alternam-se administrações, o problema é sempre pauta, mas de fato, jamais está entre as prioridades. O resultado é que a solução se perpetua e se torna cada vez mais complexa.

As grandes intervenções públicas em relação à habitação social são arremedos banalizados de propostas modernas. Grandes conjuntos habitacionais, monofuncionais, localizados sempre em zonas periféricas, onde o terreno é mais barato, condenam a população a distâncias diárias enormes e localizações desprovidas de qualquer urbanidade e vida civil. Construções de técnicas ultrapassadas e soluções arquitetônicas medíocres marcam, inclusive, um retrocesso em relação ao passado. Não há ali suficiente trabalho, lazer, educação ou qualquer outro componente necessário à vida plena. E não há não apenas porque não são construídos. Não há por princípio, pois ali não é o local da cidade, da vida plena, das benesses. Ali é o lugar de depósito de gente que a existência incomoda, que não deve estar a vista. É solução massificada para um problema que não interessa, a não ser a ser tratado mesmo como massa, inclusive em termos de empreendimento construtivo, no qual desta forma se podem aferir lucros que compensem a iniciativa privada. (TELLES, 2013), (CAVALCANTE, 2013).

As iniciativas de Habitação de Interesse Social, a despeito de louváveis exemplos, não dão conta da superação das barreiras do preconceito e do mercado. Tendem a ser vistos como guetos, consentidos ou a evitar, pelas populações mais favorecidas. (TELLES, 2013)

44 A relação centro-periferia, no quesito território, vai além da questão geográfica. (SCHWARTZ, apud RUBANO 2013). Ela é conceito da sociedade. Refere-se à posição no estrato social que, no entanto, não ilogicamente coincide com sua localização física. Ela reflete a estratificação da matriz social do país. Verifica-se no território nacional, se verifica nos serviços sociais e públicos, e se verifica também no território. É “centro”, ainda que não habite no centro, aquele que tem acesso às benesses públicas, ao poder ou a ele orbite. É “periferia” aquele que é historicamente marginal na sociedade, que não tem nem voz nem vez. Que não tem acesso à educação e à possibilidade de atuação. Não obstante a isso, o afastar das áreas centrais indica a precariedade da ação pública. Quanto mais distante dos olhos da burguesia, piores as condições destes serviços e dos padrões construtivos.

Revanche

O aspecto mais visível da vingança urbana é a violência. É ela que claramente informa que não há vencedores, que a todos subjuga, e que, inevitavelmente iguala a todos. Mal desnecessário, é resultado, por um lado, do tamanho que as cidades atingiram, mas também e principalmente resultado da não aceitação da sociedade plural, diversificada, diferente. Resultado da não oportunidade, da não participação e da exclusão, esta sim violência histórica contra a sociedade.

Mas há revanches mais construtivas. Pululam experiências de vida urbana por todas as partes. Calçadas vibrantes, gente que caminha, periferias que adotam bicicletas, grupos de pagode, hip hop e até música erudita, danças, artes. Comunidades organizadas, que gritam por soluções e que, muitas vezes, na falta delas, adotam as suas. Pequenos comércios que surgem em barracos. Largos que viram espaços de brincar.

“Essa situação obriga, com única possibilidade, a inevitável apropriação de território feita pelas várias tribos urbanas, no sentido de encontro entre pessoas que ainda pensam a vida por afetividade, companheirismo, solidariedade e não por interesses individualistas. Pensam a vida de forma independente do cenário “real” da vigência.” (TELLES, 2013)

45 “Mistura essa ampliada, como a possibilidade da alta antropofagia que nos traz Suely Rolnik, que prevê justamente a criação de uma ‘cultura-entre’ a romper barreiras e promover ‘uma contaminação geral’ não só entre erudito e popular, nacional e internacional, mas também entre arcaico e moderno, rural e urbano, artesanal e tecnológico” (ROLNIK apud COUTINHO, 2013) que permita “inventar novas possibilidades de vida, as quais favoreçam a expansão individual e (principalmente) a coletiva. Assim, as trincheiras criadas por grupos sociais (étnicos, sexuais, religiosos, etc.), que insistem na tendência da criação de um ‘em casa identitário’, serão destruídas.” (COUTINHO, 2013)

É como se a vida social, a vida urbana, se negasse a morrer, e brota, principalmente pelas camadas mais baixas, aqui e acolá. Como se nestes momentos, aquele caldeirão étnico que nos formou mostrasse sua face mais bela, aquela da tolerância e da convivência. O resultado mais feliz dessa mistura, quando ela mostra sua real força. Inclusive sobre o território.

Bibliografia

ARANTES, Otília; MARICATO, Ermínia e VAINER, André. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000;

CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder uma análise da mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006;

RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995;

SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política. Coleção Leitura. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

46 STUMP. V. D. ”A questão cultural contemporânea: entretenimento e a cultura de massa.Marilena Chauí.” In: Cultura e Sociedade: O projeto: significado e valor - Relatório de Pesquisa – Artigos individuais, São Paulo: MackPesquisa, 2013.

CAVALCANTE, M. M. P. D. “Cultura, sociedade e projeto: a leitura da cidade a partir da crítica de Ermínia Maricato.” In: Cultura e Sociedade: O projeto: significado e valor - Relatório de Pesquisa – Artigos individuais, São Paulo: MackPesquisa, 2013.

COUTINHO, A. V. J. F. “Estratégia antropofágica: a construção da casa subjetiva pelo homem contemporâneo.” In: Cultura e Sociedade: O projeto: significado e valor - Relatório de Pesquisa – Artigos individuais, São Paulo: MackPesquisa, 2013.

RUBANO, L. M. "Teoria e cultura: constituição e (des)caminhos da sociedade brasileira na obra de Roberto Schwarz". In: Cultura e Sociedade: O projeto: significado e valor - Relatório de Pesquisa – Artigos individuais, São Paulo: MackPesquisa, 2013.

TELLES, L. B. C. "Brasil: a descontinuidade de um projeto incompleto de sociedade". In: Cultura e Sociedade: O projeto: significado e valor - Relatório de Pesquisa – Artigos individuais, São Paulo: MackPesquisa, 2013.

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Texto 03 | Uma critica que nos localiza

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