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A matrona Eunômia e a solteirona Benona

2 MULHERES EM AÇÃO

2.4 A matrona Eunômia e a solteirona Benona

Dentre as personagens femininas das peças Aululária e O santo e a porca, resta-nos analisar a matrona (termo que em latim costuma designar “mãe de família”,OLD 1) Eunômia (irmã de Megadoro e mãe do jovem Licônidas) e sua contraparte nordestina, Benona (mulher solteira, de meia idade, irmã de Euricão e ex- noiva de Eudoro Vicente).

Na peça de Plauto, Eunômia aparece pela primeira vez em cena para convencer o irmão a se casar (Aul.45-48). Obviamente pensando no futuro Megadoro, a matrona lhe sugere que aceite a noiva que ela encontrou: trata-se de uma mulher mais velha e bastante rica, que faria a felicidade de um solteirão solitário.

No seu célebre discurso contra as mulheres ricas (as típicas “esposas com dote”, uxores dotatae das peças de Plauto)87, Megadoro (Aul.163-170) nega a sugestão e revela que está interessado na filha de Euclião. Esta, por ser pobre e não possuir dote, certamente não o haveria de perturbar com pedidos extravagantes - como costumam fazer, segundo ele, as

87 Para definição e relativização da visão mais caricatural deste tipo de personagem feminina, cf. Rocha (2015, p.

mulheres com dote polpudo em sua época. Fedra também não discutiria com o marido e tornar-se-ia mais facilmente, como hoje diríamos, “bela, recatada e do lar”.

Ao comentar sobre a questão, a matrona traz uma definição das mulheres carregada de pilhéria:

Eunômia - Bem sei que nos consideram aborrecidas e que muito merecidamente

nos têm por faladoras e que dizem que realmente nunca houve, em tempo algum, mulheres mudas. (Aul. 122-126)

A seguir, de modo irônico, Megadoro tece elogios à Eunomia, que, por sua vez, reforça uma suposta imagem feminina bastante disseminada no contexto de produção da referida peça:

Megadoro - Ó mulher admirável! Dá-me cá a tua mão! Eunômia - Onde está ela, essa mulher admirável? Megadoro - És tu!

Eunômia - Que é que tu dizes, eu?

Megadoro - Se disseres que não, eu digo também que não!

Eunômia - O que é decente é que digas a verdade. Realmente não há nenhuma

que se possa chamar de admirável: olha, meu irmão, cada uma é pior que as outras.

Megadoro - Eu acho o mesmo. E não é nisso, minha irmã, que te vou contrariar.

(Aul.141-143)

O discurso misógino dos irmãos precisa ser visto por meio de uma perspectiva mais ampla, que leve em conta não apenas a produção teatral e o público ao qual era destinada a peça88, mas também os ecos de tais falas no decorrer do enredo de Aululária. Concordamos com a leitura nesse sentido proposta por Rocha (2015, p. 93-94), que percebe que, junto com a ridicularização do comportamento de ambos as personagens, também um discurso misógino como o de Megadoro fica relativizado.

Em O santo e a porca, temos Benona, irmã de Euricão e ex-noiva de Eudoro Vicente, com quem não se casou no passado por questões de moralismo. Este, ao que parece, havia feito uma brincadeira que passara dos limites – isso ao menos aos olhos dela quando moça, que então, supostamente, era bastante tímida e cheia de pudor. Desse modo, curiosamente, temos não como no modelo plautino, uma matrona casada, mãe de família propriamente dita, mas uma espécie de uirgo de meia idade, ou, para a denominarmos como um outro personagem também presente na literatura moderna, uma “solteirona”89

.

88

Lembramo-nos aqui das ponderações de Hunter (1989, p.83), que aventamos no início deste capítulo.

89 Ainda mereceria uma investigação mais a fundo as semelhanças entre Benona e certas personagens

Quando o rico fazendeiro volta para pedir a jovem Margarida em casamento, Caroba envolve Benona na trama dizendo que Eudoro veio reatar o noivado, já que ficou viúvo há bastante tempo, e por ainda gostar da ex-namorada90. Benona fica apreensiva, mas revela que nunca esqueceu o amor do passado e se deixa enredar no plano da empregada.

Ao final, depois de muitos quiproquós, em que Eudoro fala de Margarida, mas as outras personagens, por conta das armações de Caroba, acham que ele está se referindo à Benona, a astuta empregada, utilizando novamente a estratégia do quarto91, faz com que a união se realize e quase todos fiquem felizes ao final. Isso porque, como discutiremos mais adiante, com exceção do velho Euricão “Engole Cobra”, que termina sozinho cada uma das personagens casa-se com seu par.

Conforme dito antes, diferentemente de Eunômia, Benona não tem o discurso típico da mãe de família, uma vez que nunca se casou. O que aproxima as referidas personagens é o fato de serem mulheres de meia idade e irmãs do avarento em ambas as peças. Ao contrário da personagem plautina, que se mostra ao público como uma mulher completamente segura, inclusive colocando-se como conselheira do rico irmão Megadoro, Benona caracteriza-se como uma mulher insegura e submissa a Euricão, o irmão avarento para o qual faz tudo.

No que diz respeito ao discurso misógino presente em Plauto, ele não se observa explicitamente na peça de Suassuna. No entanto, pensamos que certa posição patriarcal pode ser percebida em algumas cenas, como, por exemplo, quando o avarento menciona que Benona arruma sua cama todos os dias, depois que a esposa o abandonou, ou ainda o fato da personagem ter ficado para “titia”, enquanto seu pretendente Eudoro Vicente desposou outra moça.

Dessa forma, em relação às personagens femininas, já é possível vislumbrar, a partir das peças analisadas neste estudo, se não um panorama da situação destas nos momentos e

90 “Caroba - Dona Benona, espere um instante. Quero lhe dizer um negócio, em caráter confidencial.

Benona - Que é, Caroba?

Caroba - Pinhão está desconfiado de que Seu Eudoro vem pedir a senhora em casamento. Benona - Caroba!

Caroba - É verdade, Dona Benona! A senhora não foi noiva dele? Benona - Fui, mas briguei por uma besteira e ele se casou com outra.

Caroba - Mas o fato é que está viúvo e arrependido! Ele mandou dizer a Seu Euricão que vinha privá-lo de seu

tesouro e Pinhão acha que só pode ser a senhora.

Benona - É possível?

Caroba - A senhora mesmo vai ver, daqui a pouco. Mas parece que ele está meio envergonhado, depois de tanto

tempo. É natural, mas é preciso ajudá-lo.

Benona - (Faceira) Ele está acanhado porque quer, porque eu nunca o esqueci.” (Suassuna, 2013, p.23).

91 “Caroba - Até já, Santo Antônio, e veja lá o que pode fazer por nós. Não estou metendo o senhor em

molecagem não! Assim que Seu Eudoro entrar no quarto de Dona Benona, eu dou o alarma e ele se compromete, a simples entrada no quarto basta. De modo que leve isso em conta e trate de me ajudar. (Sai.)” (Suassuna, 2013, p.62).

locais das referidas produções, ao menos algumas analogias no contexto dramático em que foram produzidas.

Com isso, apesar da distância temporal e espacial que os separa, destacam-se tanto em Plauto, quanto em Suassuna convenções de caráter social (i.e. envolvendo relações entre os gêneros, pressupostos e condições que mulheres devem preencher para o casamento) que se encontram amalgamadas, ainda que de forma estilizada, nas convenções dramáticas que constituem a galeria de personagens e situações notáveis na produção teatral de ambos os autores.