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Ao longo de nossa pesquisa sobre a relação entre as peças Aululária de Plauto e O santo e a porca de Ariano Suassuna, interrogamo-nos, sobretudo, acerca do modus faciendi de cada autor. Esse aspecto, em nosso entender, orienta e dá sentido a similaridades e diferenças existentes entre as obras.

Assim, a declaração do dramaturgo brasileiro de que, ao apreciarmos sua comédia, estamos diante de uma "imitação nordestina de Plauto", para além de aludir ao autor antigo, serviu-nos de baliza para consideramos em que consiste tal “imitação”. O conceito não se mostra excludente da ideia de “originalidade”, nem no entender do dramaturgo (segundo alguns de seus paratextos e segundo sua prática), nem em teorias que têm pautado estudos recentes voltados à literatura antiga e moderna, com destaque à abordagem intertextual. Destacou-se em nossa breve exposição metodológica a importância de se considerar os diversos tipos de público e eleger, para nossa pesquisa, um público ideal que nos serve de parâmetro: aquele que, podendo reconhecer a alusão à peça Aululária no enredo e cenário suassuniano, possa alcançar uma apreciação mais completa e deleitosa das histórias.

Assim, no capítulo I, procedemos à análise das personagens femininas, buscando não apenas comparar aquelas presentes em ambas as peças, mas levar em conta ainda exemplos que nos permitissem perceber que a proximidade, nesse aspecto, entre as produções plautina e suassuniana acontece também em outras peças dos autores. Desse modo, confirmaram-se características já apontadas em estudos anteriores sobre a questão, como o fato de as mulheres em O santo e a porca terem uma participação mais ativa na trama do que ocorre com a uirgo e a ancilla em Aululária de Plauto, e, acrescentamos, a importância de se enfatizar (de modo mesmo exagerado) a devoção religiosa de cada uma das mocinhas das respectivas peças. Mas, como considerar essa participação feminina em relação ao contexto de cada peça?

Ora, nesse sentido, quanto ao texto antigo, nosso estudo deparou-se com limites práticos e epistemológicos. A falta de evidências quanto à sociedade na época de Plauto, e ainda as exigências do próprio gênero dramático (em que as falas misóginas de personagens muitas vezes não correspondem ao tom geral da história) nos indicam que é necessário relativizar tais colocações, por exemplo, e nos lembram de que é necessário atentar para a necessidade de considerar cada a peça como um todo para a apreensão de seu possível sentido. No contexto de Suassuna, as convenções relacionadas ao contexto feminino apontam para um universo que manteria intocáveis, ao menos quanto às moças casadoiras, expectativas mais rígidas (e amparadas na religião católica) e tradicionais de pudor e castidade. A participação de Caroba

como personagem enganadora evoca ao mesmo tempo os amarelinhos da literatura nordestina e os serui callidi de Plauto.

A seguir, no capítulo II, procedemos à análise das personagens masculinas. Novamente, para conseguir um retrato mais completo daqueles presentes nas peças que servem de base para nossa dissertação, aproximamo-los de outros representantes da mesma tipologia em outras obras de ambos os autores. Ao olhar mais de perto para os velhos avarentos, pudemos perceber que Euclião é representado como muito mais dominado pela ganância que Euricão. Isso porque este, em vários momentos, tem lampejos de lucidez ao se indagar se está fazendo a coisa certa, ou ainda, ao ficar na dúvida entre escolher o santo (espiritualidade) ou a porca (mundo material). Desse modo, evidencia-se em Suassuna uma proposição mais explícita sobre as traições que a vida nos apresenta.

Foi nos possível, ademais, perceber o papel mais ativo e atencioso, mas não menos inocente, do adulescens na peça nordestina. Isso porque Dodó escolhe abandonar os estudos para ficar ao lado da amada Margarida, correndo o risco de ser descoberto tanto por seu pai, o fazendeiro Eudoro Vicente, quanto pelo avarento Euricão, pai da moça. Tudo isso contribui para tornar mais evidentes as maquinações que levariam ao desfecho da peça, representadas como uma trama de Caroba (e não como planos misteriosos do deus Lar).

No capítulo III, uma leitura mais atenta das peças Anfitrião e Rudens de Plauto permitiu- nos perceber como a presença dos seres divinos permeia grande parte da obra do dramaturgo romano, que retrata os referidos deuses de acordo com a tradição romana, adaptando histórias míticas em suas produções.

Tendo como pano de fundo o quadro da religiosidade plautina, passamos à dramaturgia do autor nordestino. Com isso, pudemos perceber que a questão da religiosidade em Suassuna é tema presente em praticamente toda a sua tradição teatral. Observá-la é imprescindível para compreender o enigmático final da peça O Santo e a Porca. É nesse contexto religioso que o velho Euricão (diferentemente do final de Aululária disponível a Suassuna) decide não se integrar e sim se enclausurar no próprio quarto, o que indica que ele teria vivido uma espécie de epifania que o fez despertar para a “realidade” e ver que a vida vai muito além dos bens materiais (como prega a Aululária, (Konstan, 1983) e mesmo (diferentemente da Aululária) das relações humanas. Essa grande diferença em relação ao modelo ressalta um tom explicitamente moralista na peça brasileira, que se mostra bem ao gosto da moral católica, religião à qual o autor abertamente se filia desde que se casou com Zélia Suassuna (Suassuna, 2006, p.5). As implicações deste aspecto religioso estética e na política cultural do autor brasileiro mereceria mais atenção do que podemos dedicar neste estudo.

Mas já podemos afirmar que é acrescentando, ampliando, eliminando, repetindo, citando e parodiando, modificando: é deste modo variado (uma característica também do uertere plautino) que podemos compreender os marcadores alusivos do processo criativo que Ariano Suassuna adota para elaborar com maestria sua imitação nordestina de Plauto.