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A Melancolia: Uma Abordagem Histórico-Cultural do Conceito da Doença

No documento ARGUS VASCONCELOS DE ALMEIDA (páginas 119-126)

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e todas as doenças humanas, a melancolia é a mais difícil, de origem mais discutível e de definição mais vaga. É a doença que mais interessa aos filósofos (PIGEAUD, 1984).

Como escreve Teixeira (2005), melancolia é o ter- mo mais antigo para a patologia dos humores tris- tes. Entretanto, nem sempre esteve sob o domínio do campo psiquiátrico, psicanalítico ou filosófico. O termo e suas diferentes formas de uso estão relacio- nados com sua história: é muito antigo, anterior ao advento das ciências modernas.

Em dois milênios de sofrimento humano, o que hoje é chamado clinicamente de depressão era cha- mado de melancolia. Atualmente, a melancolia é tida como uma doença do sistema nervoso, orgânica e psíquica, tratada com antidepressivos e terapias psí- quicas de todos os tipos. As mudanças conceituais ao longo do tempo parecem indicar rupturas teóricas (BERLINCK, 2008).

É objetivo do presente trabalho abordar a tragetó- ria histórica do conceito da melancolia desde a Grécia antiga aos dias atuais, analisando os quadros teóri- cos, suas rupturas e reconstruções.

A melancolia entre a história e a filosofia Na tradição que remonta à antiga Grécia, dois tex- tos seminais devem ser tomados como marcos histó- ricos da melancolia, por serem os responsáveis pelas noções sobre a melancolia que irão prevalecer até o início da era moderna. O primeiro é o conhecido Cor- pus Hipocraticum, de Hipócrates e seus discípulos, e o segundo a Problemata XXX de Aristóteles.

É por meio da “teoria dos humores” que Hipócra- tes (460-377 a.C.) explica a melancolia, no Aforismos 23 do seu livro VI, onde afirma que quando o temor e a tristeza persistem um longo tempo, trata-se do estado melancólico. Hipócrates considera duas formas de me- lancolia: a endógena, aquela que aparece sem motivo aparente; e a exógena, que surge em resultado de um trauma externo. Na lógica da teoria dos humores, a bí-

lis negra representava o outono e, como a terra, era fria e seca, tornando-a hostil à vida e podendo ocasionar a melancolia, uma doença resultante de seu acúmulo no baço. É da noção da bílis negra que surgiu o termo me- lancolia derivado do grego melas (negro) e kholé (bile). Estas ideias foram retomadas mais tarde por Cláudio Galeno (129-199 a.C.) e pelos principais médicos de sua escola. Segundo essa corrente médica, os diferentes temperamentos produziriam as diferentes paixões, por exemplo, a ira decorreria do temperamento colé- rico e a tristeza adviria do temperamento melancólico. Numa primeira ruptura com o conceito hipocráti- co-galênico, Aristóteles (384-322 a.C.) na “Problemata XXX” afirma que existe um tipo de melancolia natu- ral, que devido à ação da bile negra tornaria seu por- tador genial. A melancolia é colocada como condição de genialidade, responsável por capacidades distin- tivas; muitos heróis míticos e filósofos são conside- rados melancólicos. Assim, a criação e a melancolia ficam associadas: o homem triste é também um ho- mem profundo. Dessa forma Aristóteles compreende a melancolia sob um ponto de vista positivo.

Durante a Idade Média, ocorre uma outra rup- tura, surge um novo termo para designar o “estado melancólico”: acédia ou acídia (do grego akedia, in- diferença). Hoje, o termo teria o significado de aba- timento do corpo e do espírito, enfraquecimento da vontade, inércia, tibieza, moleza, frouxidão ou ainda melancolia profunda numa conotação pecaminosa. A acédia era um sentimento predominantemente da vida monástica, liga-se a um espírito maligno, o cha- mado “demônio do meio-dia” (BARBOSA, 2011). No séc. XII, o estudo da melancolia tem como principal representante a escola de Salerno, com sua doutrina dos temperamentos. A teoria da melancolia, nesta época, aparece também vinculada à ciência islâmica e à astrologia, em que Saturno é tido como o astro que guia dos melancólicos (TEIXEIRA, 2005).

Os autores islâmicos do século IX, como o médi- co e filósofo persa Avicena (c. 980-1037), estabeleceram

uma correlação astrológica entre humores planetas. O humor sanguíneo corresponderia a Júpiter, o colérico a Marte, deus da guerra, o fleugmático a Vênus ou à Lua. A melancolia estaria sob o signo de Saturno, pla- neta distante, de lenta revolução. Como também tinha correspondência no chumbo, aqueles que nasciam sob seu signo eram lentos, pesados. Ou seja: um astro pou- co auspicioso. No corpo humano, Saturno governava o baço, sede da bile negra. A associação entre Saturno e melancolia era inevitável. Até hoje o qualificativo “so- turno” é sinônimo de melancólico (SCLIAR, 2008).

Mais tarde, Paracecelso (c.1493-1541) entendia que a melancolia, era mais frequente entre os homens: Eva era alegria; Adão, luto e tristeza. Visto que a melanco- lia resultava de um problema químico ou alquímico, era com a química ou com a alquimia que seria cor- rigida: Paracelso usava substâncias conhecidas como contraria porque “contrariando” a crase melancólica seriam capazes de “alegrar” a pessoa (SCLIAR, 2008).

Ainda sob a perspectiva teórica da medicina hu- moral, durante a Renascença o filósofo neoplatônico florentino Marsilio Ficino (1433-1499) considerava que a ação da bile negra secava a mente, consumia a umi- dade da alma e quase extinguia seu calor, deixando -a e ao cérebro, frios e secos. Os que se dedicavam à filosofia eram os mais propensos a essa ação da bile negra porque seus corações e mentes curvavam-se à contemplação, seus corpos se separavam das suas almas e das coisas corpóreas, o estômago e o fígado ficavam como que paralisados, seu sangue tornava- se frio, grosso e negro e, por isso, quando suas almas retornavam ao corpo, o encontravam melancólico (FI- CINO, 1996).

Como explica Ficino, a melancolia ou bile negra, é dupla: a natural, que é a parte do sangue tornando-se grosso e seco, e a ardente, produzida pela combustão da bilis negra com o sangue. Quando há essa combus- tão, o juizo e a prudência ficam feridos, o espírito tor- na-se nervoso e enfurecido, e surge o que os gregos chamavam mania, a loucura. Quando a combustão termina, o espírito permanece lerdo e estúpido. Po- rém, a bile negra natural dispõe para o julgamento e sabedoria, e por isso inúmeros cuidados são neces- sários para mantê-la estável, impedindo-a de entrar em combustão e desembocar na mania (FICINO, 1996).

Ficino na obra Da vita triplice reunia quatro teorias sobre a melancolia: a hipocrática (teoria dos humores), a platônica (poesia e furor), a astrológica (Saturno e melancolia) e a aristotélica (melancolia e genialidade). Este estudioso considerava a melancolia um grande tormento, mas também uma grande oportunidade para os homens de estudo (TEIXEIRA, 2005).

Um outro pensador da Renascença, Heinrich Cor- nelius Agrippa von Nettesheim (1486-1535) na sua obra De occulta philosophia, assim descreve a melancolia:

O humor melancólico, quando se inflama e avermelha, gera o furor que nos conduz à sabedoria e à revelação, sobretudo quando associado a uma influência celeste, mais particular- mente à Saturno [...]. Aristóteles diz nos Problemata que pela malancolia certos homens se tornaram divinos, predizendo o futuro como as sibilas, enquanto outros se tornaram poetas [...] e diz, um pouco adiante, que todos os homens que se dis- tinguiram em algum domínio, geralmente foram melancóli- cos (AGRIPPA apud BERLINCK, 2008, p. 129).

Agrippa conceituou o primeiro grau da melan- colia como a imaginação que é o temperamento dos pintores, arquitetos, escultores e mestres das várias artes manuais; o segundo ou razão, é o temperamen- to dos físicos, oradores e filósofos; o terceiro ou inte- lecto, dos místicos e santos (BERLINCK, 2008).

Para os estudiosos do imaginário simbólico da melancolia, Klibansky, Panofsky e Saxl (1989) Agrippa é o pressuposto teórico necessário para a compreen- são da célebre gravura “Melencolia I”, opinião tam- bém compartilhada por Berlinck (2008).

Figura 1: “Melencolia I” de Albrecht Dürer (1514) Na gravura do pintor alemão Albrecht Dürer (1471- 1528) (fig.1), o personagem central é grave, com a ca-

ampliada por ele, saiu após a sua morte. Trata- se de pesquisa exaustiva, é enorme a lista de autores a que recorre inclusive e principalmente os da Antiguidade clássica e aborda uma enorme quantidade de assun- tos. O conceito de melancolia era mais filosófico do que médico e aliás, à época eram tênues as fronteiras entre filosofia e medicina; isto era o que permitia a aproximação de um Burton ao tema (SCLIAR, 2008).

No discurso médico desse período estabelece- se uma outra ruptura e uma reconstrução da teoria humoral, a melancolia foi uma doença interpretada pela fisiologia nascente, que descreveu seus sintomas e a interpretou como um mal físico, com incidências psíquicas secundárias. Um discurso que refletiu sobre uma tipologia melancólica, sobre seus caracteres par- ticulares, sobre sua a ação sobre o humor e sentimen- tos, da alma e do corpo. A bile negra era a melancolia dos médicos. Ao contrário de um discurso eminen- temente filosófico e moralista, que a circunscreveu como um mal da alma, descrito como um taedium vitae, ou desgosto pela vida (PIGEAUD, 1984).

O médico francês André Du Laurens (1558-1609) considera que há três categorias diagnósticas sob a denominação genérica de melancolia: a melancolia essencial, a melancolia global e a melancolia hipo- condríaca. A primeira se caracteriza pelo excesso ou corrupção da bile negra na cabeça. A segunda pela presença no corpo todo da bile negra, encéfalo inclu- so. E a terceira pelo mau funcionamento dos órgãos localizados na parte superior do abdômen, conhecida como hipocôndrio, em particular do estômago, com a consequente produção excessiva de bile negra e exa- lação de vapores escuros que perturbam as funções cerebrais (DU LAURENS, 1597).

Para o médico espanhol Juan de Barrios (1562- 1645) em sua obra Verdadera medicina, cirugia e as- trologia (1607), a melancolia é um delírio sem febre, com temor e tristeza. A parte que este mal padece é o cérebro, esta a imaginação depravada do humor me- lancólico (BARRIOS, 1607, p.61).

Também o médico português Aleixo de Abreu (1568-1630) na sua obra Tratado de las siete enferme- dades (1623), a melancolia é um enlouquecimento, alienação ou loucura, sem febre, nascida do humor melancólico que ocupa o cérebro e perverte o enten- dimento, acompanhada de temor e tristeza (ABREU, 1623, p. 120).

Explica que, “quando o sangue está nas meserai- cas, situadas entre o estômago e o fígado, sendo muito quente pela obstrução, com ardor levantando vapores grossos e maus, destempera o cérebro e causa a me- lancolia hipocondríaca ou mirachia dos bárbaros. Seu beça ligeiramente inclinada, com o queixo apoiado na

mão esquerda, o olhar fixo num ponto indeterminado. Sentado frente a um trabalho em processo de execução, este anjo solitário, cuja vestimenta de pesadas pregas não consegue esconder o sofrimento contemplativo e nem o desgosto pela vida; representa a figura triste do artista, já que a melancolia está profundamente ligada ao gênio da criação artística. Alado, mas acachapado ao solo, coroado, mas rodeado de sombras, provido de instrumentos da arte e da ciência, mas submerso num momento ocioso, dá a impressão de um ser criador reduzido ao desespero pela consciência dos seus pró- prios limites. Este anjo abatido contempla um mundo que poderia ordenar, medir, calcular, pesar, graças a todos os instrumentos que há em seu redor, ele ao mes- mo tempo mede a vaidade deste trabalho já que está além deste mundo medido, nomeado e ponderado, há um mundo que está entregue a vontade de Deus (KLI- BANSKY, PANOFSKY; SAXL, 1989).

Dentre as inúmeras interpretações dessa gravu- ra, uma das mais recorrentes é a do filósofo Walter Benjamin, para quem ela é um ícone da modernidade. A beleza do mundo divinizado, após o Renascimento, transforma-se em número, peso e medida, perdendo, com isso, o encantamento divino. O autor vê, na perda da harmonia com o cosmo, a causa da melancolia re- presentada na gravura (BENJAMIN, 1984).

No pensamento grego, a atitude melancólica foi associada à geometria e à ametria, isto é a uma des- proporção das medidas humanas, uma defasagem. Sem conseguir a simetria (suficiência), o melacólico é jogado na ametria (insuficiência). A confusão entre a sensibilidade melancólica e a geometria remontam à Saturno, governador do tempo, correspondendo à geometria e em geral a tudo o que se refere à medida do tempo, do espaço e suas aplicações. O geômetra, que trabalha com números é aquele que vive sob o im- pério de Saturno. As atividades geométricas, como a perspectiva, que supõe a ordenação das propriedades do espaço, ou também a arte de construir, a arquite- tura que tanto se baseia na medida, no peso e na ten- são dos materiais, são atividades que se situam sob o signo da melancolia (RODRIGUES, 2009).

A melancolia no discurso médico dos séculos XVII e XVIII

Em 1621 foi publicado na Inglaterra uma obra in- titulada “A anatomia da melancolia” (The anatomy of melancholy). Seu autor era o clérigo e erudito inglês Robert Burton (1577-1640). A obra teve grande suces- so; nada menos do que cinco edições foram publicadas enquanto o autor viveu, e uma sexta, ainda revista e

nome vem do ventrículo e dos hipocôndrios e partes anexas onde tem sua origem. Os seus sinais iniciais são tristeza, dores no estomago depois de comer, fla- tos continuados, pelo qual os antigos a denominavam de flatuosa, arrotos contínuos, com estrondo e brami- do dos intestinos por causa do humor aquoso recolhi- do” (ABREU, 1623, p. 120).

Sob uma preocupação classificatória, em 1672 o médico inglês Thomas Willis (1621-1675) publicou a sua obra De anima brutorum que na segunda parte trata das “doenças que atacam a alma animal e sua sede, isto é, o cérebro”, onde escreve sobre o frenesi como uma espécie de furor acompanhado por febre e que seria necessário distinguir do delírio, sendo a mania um furor sem febre e a melancolia, sem furor nem fe- bre, caracteriza-se por uma tristeza e um pavor, com uma única preocupação. Willis opunha a mania à me- lancolia. O espírito do melancólico seria inteiramente ocupado pela reflexão, a imaginação permaneceria em repouso. No maníaco, ao contrário, fantasia e imagina- ção ver-se-iam ocupadas por um eterno fluxo de pen- samentos impetuosos (FOUCAULT, 2005).

Foi Willis que observou, pela primeira vez, o ciclo maníaco-depressivo ou alternância mania-melanco- lia, quando escreveu: “Após a melancolia, é preciso tratar da mania, que tem com ela tantas afinidades, que essas afecções freqüentemente se substituem uma à outra” (FOUCAULT, 2005).

Para Juan de Esteyneffer (1664-1716), jesuíta ale- mão missionário no Novo Mundo, autor do Florilegio medicinal (1712), “a melancolia hipocondríaca é uma afecção flatulenta dos hipocôndrios, em particular do lado esquerdo, que estão por baixo das últimas coste- las, não por que sempre nos hipocôndrios se acha este mal, pois várias vezes se acha também no mesentério, em suas veias mesaraicas, as quais tem sua origem no fígado e no baço que engendra a melancolia e o fíga- do engendra a atrabile, ou cólera negra, segundo suas destemperanças” (ESTEYNEFFER, 1712, p. 112).

De acordo com o droguista João Vigier (1662- 1723), “a melancolia hipocondríaca é uma doença, ou disposição azeda da massa do sangue, fixa com extremo e semelhante ao escorbuto pela quantida- de de sulfures mais carregados de partes terrestres” (VIGIER, 1714, p. 180)

Segundo Bluteau (1716), a melancolia natural é no corpo um dos quatro humores, a que a medicina cha- ma de primários. Este humor é frio e seco e a parte mais grosseira do quilo, e como borra e fezes do san- gue. O seu papel é alimentar as partes que tem o mes- mo temperamento que ela, o baço e os ossos, os quais ainda que com a última cocção se fazem brancos,

como pesados e terreos, são do mesmo temperamento que a melancolia. Este humor faz os homens tímidos, tristes, ásperos de condição e de cor tirante a negro.

A doença da melancolia tem várias espécies. Uma é delírio com grande tristeza, mas sem febre e nisso difere da mania e do frenesi. Dizia Platão que os melancólicos têm maior capa- cidade para as ciências, mas também tem mais pendor para a loucura. Também diz Aristóteles que não há grande enge- nho sem melancolia, mas este mesmo temperamento que faz grandes filósofos engendra doidos. Os médicos chamam a esta forte melancolia, de melancholia morbus. Outra espécie é a melancolia hipocondríaca ou flatuosa, que se origina ou dos fumos do baço, ou dos vícios do cérebro, como depravação da faculdade imaginativa e com alienação da faculdade intelec- tiva e outros sintomas, que os médicos apontam, esta depois de inveterada é tão dificultosa de curar, que comumente lhe chamam Opprobium medicorum” (BLUTEAU, 1716, p. 222).

O médico catalão Josep Alsinet de Cortada, numa tradução espanhola da obra de Pierre Pomme, escre- veu:

As causas que dão origem a estas enfermidades é a evaporação do suco nervoso e linfático. Evaporam-se os fluidos nervoso e linfático, a falta de umidade e irrigação são seguidos pelo ressecamento, tensão e enrugamento das fibras nervosas. A afecção vaporosa é um vício geral ou particular de gênero nervoso produzido pelo encolhimento ou enrugamento das fibras nervosas. Chama-se histérico nas mulheres, porque os antigos focaram as diferentes desordens do útero, por causa destas enfermidades. Chama-se hipocondríaco ou melancóli- co nos homens, porque os mesmos autores estabeleceram sua causa nos hipocôndrios e vísceras do ventre inferior (ALSI- NET, 1776, p. 6-8).

Tanto o médico português João Curvo Semedo (1635-1719) quanto o médico medieval Bernardo Gor- donio (c.1258-c.1320) tratam a melancolia e a mania juntas como “corrupções da alma sem febre”. Para Gordonio, “ é o humor melancólico que danifica o cé- rebro e perturba o espírito, a alma escurece e causa a corrupção da vontade” (GORDONIO, 1697, p.87). Escre- ve Semedo que “a Mania é um delírio furioso com ira e atrevimento, mas sem frio nem febre e nisso difere do Frenesi, que é um delírio com febre e da Melanco- lia, que é somente tristeza e medo sem ira, nem fúria. Difere também porque a Melancolia procede de hu- mor frio e a mania procede do sangue muito quente, ou da cólera requeimada ou da melancolia esturrada” (SEMMEDO, 1697, p. 216).

creveu e divulgou, sob o pseudônimo de Romão Mo- sia Reinhipo, anagrama do seu nome, diversas obras, destacando-se o seu Tratado único das bexigas e sarampo, impresso em Lisboa no ano de 1683, que é considerada uma das primeiras obras em vernáculo sobre a medicina brasileira. Outra obra sua pouco co- nhecida foi Queixas repetidas em ecos dos Arrecifes de Pernambuco contra os abusos médicos que nas suas capitanias se observam tanto em dano das vidas de seus habitadores, escrita em Pernambuco em 1677, anterior ao Tratado, portanto, onde no capítulo quin- to descreve, pela primeira vez no Brasil, o transtorno da mania (ALMEIDA, 2008).

Nesta, Morão inicialmente faz algumas distinções dos distúrbios mentais, pois considera a mania como:

Um delírio sem febre com audácia, e temeridade, e de tal ma- neira, que é necessário muitas vezes amarrar aos doentes, e prendê-los, tirando-lhes do aposento, em que assistem todos os instrumentos de ferro, com que possam ofender-se a si ou a outrem; é delírio sem febre para conhecermos a diferença, que vai da mania ao frenesi, porque neste é o delírio com fe- bre, e na mania sem ela. É com audácia, e temeridade, porque talvez arremetem os doentes a quem lhe assiste, e por isso é necessário que os enfermeiros andem acautelados com eles; diferença-se também a mania da melancolia hipocondríaca, porque nesta é o delírio também sem febre, mas com temor e tristeza, e na mania é com audácia, e temeridade fazendo ações mui desordenadas e descompostas e nelas conhecemos a diferença que vai de um acidente a outro: porque no frenesi há febre e na mania não; na melancolia há temor e tristeza e na mania audácia, e temeridade, e desta sorte se diferençam uns acidentes dos outros (MORÃO, 1965, p. 161).

Quanto a sua origem Morão acredita que:

Duas diferenças de mania somente achamos referidas dos nossos doutores; a primeira é ser nascida dos humores que as outras partes do corpo mandam ao cérebro, e destes humores que sobem nasce a mania e esta é a diferença a que chama- mos por consentimento das outras partes, e como estas lhe mandam os humores à cabeça a estas como à fonte havemos de acudir; a segunda diferença é a que chamam idiopática que por outro nome se diz por propriedade do miolo somen- te, porque, mandando a natureza os alimentos ou os humores bons ao miolo, não os podendo converter em boa substância os converte em humores viciosos; e estes são os que fazem o acidente, idiopático, sem ser comunicado de outra alguma parte do corpo; com o que lhe chamam acidente por proprie- dade da cabeça somente e não comunicado de outra alguma parte do corpo. Enquanto às causas deste acidente repentino temos dito serem os humores coléricos adustos, e atrabilio-

sos a causa, que os fazem, ou gerados no mesmo miolo, ou co- municados de outra parte do corpo, introduzindo no mesmo cérebro uma intemperança quente, e seca e uma qualidade maligna que lhe faz o delírio; e estas são as causas deste aci- dente (MORÃO, 1965, p. 161).

Foulcaut (2005) apresenta algumas descrições dos

No documento ARGUS VASCONCELOS DE ALMEIDA (páginas 119-126)