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1. ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO E ADMINISTRATIVO

1.4 Campelos, Memória e História

1.4.1 A memória coletiva de Campelos

Os anciãos da localidade de Campelos ouviram dos seus antepassados, com algum misticismo, a informação de que Campelos fora fundado por Gaspar Campelo.

34 Esta memória foi passando, mantendo no essencial, esta fundação pelo Gaspar Campelo.

Da recolha de testemunhos orais realizada pelos escuteiros, em meados da década de 80 do século XX, sob a minha coordenação, ficou um bom resumo dos testemunhos recolhidos

«(…) Gaspar Campello, diz a lenda que fundou Campelos, dizem uns que andava sempre fugido porque roubou o cunho do Rei de fazer moedas e que vivia com a esposa, Jacinta da Cunha no Stº António, onde existia uma capela, que só teve um filho que foi frade, daí isto ter ficado ao abandono. Dizem outros que o Campello vivia ali perto do “lugar de baixo”, e que no “Stº António” vivia o António da Cunha com a mulher Jacinta da Cunha, e estes é que tinham roubado o cunho do Rei. Alguns ainda se recordam de vestígios de edificações no Stº António, outros que foram buscar pedras para alicerces da sua casa, há ainda pelo meio um cálice de ouro entregue ou oferecido à Igreja de S. Lourenço dos Francos, uns túneis, e outros rendilhados. (…)» 46

.

Na memória manteve-se inclusive a referência ao local onde o Gaspar Campello terá vivido, e é assim que quando a Junta de Freguesia de Campelos, em 1978, inicia a toponímia dos arruamentos denomina o actual arruamento onde se situa essa habitação, por Rua Gaspar Campelos, com base exclusivamente em testemunhos orais.

Só em 1985, na recolha e preparação de uma exposição sobre o 40º aniversário da freguesia de Campelos, organizada por um grupo de pessoas deste mesmo lugar (onde me incluo) começam a surgir alguns dados que indiciam a possibilidade de partes da memória oral sobre o Gaspar Campello poderem ser confirmadas documentalmente; o primeiro documento encontrou-se na leitura do livro do historiador torriense Madeira Torres, ao lemos que em «31

de Janeiro de 1573 servia em Torres Vedras, como juiz de Fora, Gaspar Campello.47.

Julgando ser um nome pouco vulgar somos levados a pensar na possível veracidade da memória das pessoas de Campelos, e na necessidade de ir em busca de mais informação documental, partindo assim da memória, para chegar à história.

A memória colectiva local, a que por vezes chamámos lenda é um ponto de partida, mesmo com conhecimentos e competências muito reduzidas sobre história, sabíamos que a transmissão oral tem muitas probabilidades de ter falhas, e, é muitas vezes corrompida, tínhamos presente o ditado – quem conta um conto acrescenta um ponto.

Memória e história têm algo em comum, ambas falam do passado, mas fazem-no de modo diferente, a primeira não tem regras, vai-se transformando e perdendo, a segunda tem métodos, e deve sempre questionar as suas fontes. A discussão sobre estes dois temas ocorre há muitos anos nos meios académicos, sem consensos.

Muitos historiadores mantém um certo desprezo para com os escritores de memórias,

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ESCUTEIROS DE CAMPELOS Um Século de Noticias da Zona de Campelos, Recortes de Imprensa

Regional de 1885 a 1985, Campelos, Agrupamento de Escuteiros do CNE, nº 648, 1987, pp. 2-3.

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35 mas estes tiveram, e talvez ainda tenham, alguns aspectos positivos, como o reconheceu Sérgio Campos Matos:

«(…) Ao longo da segunda, metade do século XIX a história local afirmou-se como género diferenciado, cultivado por autodidactas, amadores e alguns eruditos que assim fixaram por escrito uma memória que, de outro modo, correria o risco de se perder (…)»48.

Parece ser consensual atribuir a Maurice Halbawchs (1877-1945) o retomar o tema da memória, para ele a memória individual é composta pelas experiências vividas por cada um, mas influenciada pela memória colectiva, e, quem pertence a mais de um grupo, é influenciado pelas várias relações sociais dos diferentes grupos onde o individuo se insere. A memória é uma função colectiva49. E estabeleceu uma comparação entre memória histórica e memória colectiva, que ultimamente questiona-se, para Catroga:

«(…)O reconhecimento da existência de características comuns à memória e à historiografia não pretende negar a especificidade de ambas as narrações sobre o passado (…) a historiografia tem de igualmente ser inserida na continuidade das grandes narrações orais, exercendo, na sua especificidade própria, funções análogas às demais práticas de recordação, incluindo as do culto dos mortos, prática que, para muitos, fez do homem, ao contrário do animal, o primeiro construtor de “documentos” históricos. (…)» 50.

Dum modo sintético Sérgio Campos Matos diz que a memória colectiva é o que resta na nossa memória, e memória histórica, é a que é produzida pelos estudiosos. Mas persiste a confusão entre ambas, para ele a memória dos historiadores deverá esclarecer a memória colectiva, e pôr à prova a memória, com a exigência de provas documentais. Também os historiadores se baseiam na memória, assim talvez não sejam tão incompatíveis, há uma relação dinâmica51.

Mais seguros do caminho a trilhar, na senda da legitimação da memória colectiva de Campelos, vamos aproveitar a “recomendação” de Catroga:

«(…) a memória limitar-se-á ao verossímil, pois a sua retrospectiva não põe entre parênteses as paixões, emoções e afectos do sujeito evocador. Por outro lado, o seu critério de prova convoca mais uma fiabilidade assente no reconhecimento de boa fé do narrador – que, em última análise, certifica a fidelidade do testemunho – do que uma argumentação racional, característica dominante das estratégias de convencimento usadas pelo discurso historiográfico (…)» 52. Este mesmo autor coloca o alargamento do uso da escrita a contribuir para a

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MATOS, Sergio Campos, História Nacional e História Local no Portugal Oitocentista, in Turres Veteras III, Actas de História Contemporânea, Torres Vedras, Câmara Municipal de Torres Vedras, Sector da Cultura e Instituto de Estudos Regionais e do Municipalismo “Alexandre Herculano”, 2000, p.16. 49

HALBWACHS, Maurice, La Mémoire Colective, 2ª edição, Paris, Presses Universitaires de France, 1967. Edição electrónica de 2001.

50 CATROGA, Fernando, Os Passos do Homem Como Restolho do Tempo, Memória e o Fim do Fim da

História, Coimbra, Edições Almedina, 2009, p.35.

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MATOS, Sergio Campos, História e Memória: um debate em aberto, in conferência realizada em Sobral de Monte Agraço, Câmara Municipal de Sobral de Monte Agraço, 29 de Setembro de 2012.

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36 desmemorização, o que por estas e por outras razões nos leva a fazer uma breve caracterização da população de Campelos.

Estamos perante uma população rural, dum estrato social baixo e muito pouco diferenciado, com um modo de vida dedicado à actividade agrícola, que até aos anos sessenta do Sec. XX tinha como únicos meios neste labor a mão de obra humana e o apoio dos animais nos transportes, nas mobilizações do solo, e nos trabalhos da eira, diariamente de sol a sol, e só com o Domingo como dia de descanso.

Se juntarmos a este enquadramento ser regra o analfabetismo, a tardia chegada da energia eléctrica, só em 1968, a quase inexistência de viaturas motorizadas, transportes públicos com uma única carreira a ligar à sede concelho, partindo de manhã e regressando à noite, estudantes que fossem além da primária são excepção até finais da década acima referida, só com a guerra do ultramar se terão intensificado as saídas de maior permanência, e outras vivências.

Nestas situações percebe-se melhor que houve condições favoráveis para que durante séculos a memória sobre o Gaspar Campelo fosse passando de geração em geração, as famílias juntavam-se à volta da mesma luz, e as histórias iam-se transmitindo.

Há ainda uma outra razão para manter viva a memória, os indícios da existência de ruínas no início do século XIX, e talvez até à remição do foro em 1851.

Esta é uma aldeia, em que todos se conhecem e falam com frequência, Paul Connerton retrata muito bem, o que suporta e constrói uma memória local

«(…) o que mantém este espaço unido é a bisbilhotice. A maior parte daquilo que acontece numa aldeia durante o dia será contado por alguém antes que o dia acabe, sendo estes relatos baseados na observação directa ou em informações em primeira mão. A bisbilhotice aldeã compõe-se destes relatos diários, combinados com as familiaridades mútuas de toda uma vida. Uma aldeia constrói, por este meio informal, uma história comunal continua de si própria: uma história em que todos retratam, em que todos são retratados, e na qual o acto de retratar nunca tem fim. Isto deixa pouco ou nenhum espaço para a representação do eu na vida quotidiana, porque em grande medida os indivíduos recordam em comum. (…)» 53.

As aldeias conservavam mais as suas tradições e memórias, é um contexto diferente do meio urbano, como refere o mesmo autor:

«(…) como acontece com a vida numa aldeia, as falhas na memória partilhada são muito menos numerosas e mais pequenas. (…)» 54.

Como já dissemos este confronto entre a memória e a sua confrontação com documentos iniciou-se há cerca de três décadas, parte já foi publicada, no jornal regional

53

CONNERTON, Paul, Como as Sociedades Recordam, tradução de Maria Manuela Rocha, Oeiras, Celta Editora, 1999, p. 20.

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Badaladas, e num livro que editei 55 , mas não poderemos deixar de recuperar alguns aspectos determinantes para os assuntos a tratar.

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