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A metáfora das construções 169

7.1 MATERIALIDADES SIMBÓLICAS: IDENTIFICANDO A MEMÓRIA 168 

7.1.1 A metáfora das construções 169

Com a intenção de promover um diálogo entre sentidos que se cruzam na memória, trazemos a metáfora que Pêcheux coloca como “processo sócio-histórico que serve como fundamento da “apresentação” (donation) de objetos para sujeitos” (2009, p. 123). Assim, temos a metáfora como constitutiva da produção de sentidos

e da constituição do sujeito que, por um movimento de transferência, produz um sentido por outro, “uma palavra por outra” (ORLANDI, 2012, p. 77), sustentada pela ideologia, pela memória discursiva, pela deriva. Essa deriva, esse deslizamento, nos leva a incompletude do sentido e do sujeito, fazendo com que haja a abertura do simbólico, já que a língua não é transparente e com isso, sujeita a falhas.

Temos esse lugar como o lugar do possível, que Orlandi apresenta como lugar em que “o irrealizado vem formando sentido do interior do não-sentido” (2012, p. 77).

Essa transferência pode ser observada em fotos que apresentamos, a seguir, de dois lugares distintos; um na Alemanha e outro no Brasil, e temporalizados no passado e na contemporaneidade. Elas representam o mesmo e o diferente produzindo sentido através de deslizes articulados pela metáfora. Tanto o mesmo, como o diferente são produzidos na história (ORLANDI, 2009).

Nas duas fotos, podemos considerar a construção simbólica e imaginária, que constituiu o sujeito imigrante, o qual ocupava um lugar social, produzindo sentido e identidade, e foi essa posição que a memória discursiva mobilizou. Por isso quando se fala em discurso, fala-se em prática, em ação do sujeito no mundo, marcando sua posição num lugar social e numa posição discursiva, de onde esse sujeito se significa.

A primeira foto apresenta a cidade de Labau na Europa, região da antiga Prússia, de onde muitos imigrantes saíram, na segunda metade do século XIX; a segunda, São Bento em Santa Catarina, no Brasil, no início do século XX, lugar escolhido, por esses imigrantes, para construir o seu novo lugar, sua nova Heimat (pátria).

Figura 5 – Vista da cidade de Labau – Europa (século XIX)

Fonte: Pfeiffer (1997)

Figura 6 – Vista da cidade de São Bento (século XX)

Fonte: Pfeiffer (1997)

O que podemos observar, na materialidade das fotos, é o funcionamento da memória histórica, em que o sujeito imigrante mostra um lugar de encontro entre a memória e a atualidade.

O sujeito, por estar inscrito em um determinado contexto sócio-histórico, produz aí nesse lugar, certa estabilidade de sentido, criando um lugar de identidade,

produzindo uma memória discursiva que se apresenta como algo já significado, um pré-construído, sendo inscrito em uma determinada formação discursiva. Essa memória, esse pré-construído pode ser visto nas imagens das duas cidades, pela formulação das fotos, na similaridade das construções das casas da 1ª foto (Labau) e a 2ª foto (São Bento), pois mesmo estando em lugares geograficamente diferentes, onde o clima, o solo, o relevo eram outros, mas as casas foram construídas nos mesmos moldes (europeus), com uma estrutura muito sólida, onde os tijolos compunham uma parede reforçada, buscando manter uma temperatura ambiente. Também os telhados eram altos e de grande inclinação, já que o frio na Europa era intenso e com muita neve. Essa estrutura ajudava no deslocamento dessa neve que se acumulava nos telhados, fato que não ocorria na região do planalto norte de Santa Catarina, onde, apesar do clima ser também muito frio, não havia precipitação de neve ou esta ocorria esporadicamente e em pequena quantidade. As janelas eram igualmente similares às europeias, sendo, não só do mesmo formato, mas distribuídas da mesma forma na arquitetura da casa.

Observamos também a formação da vila, com uma estruturação espacial semelhante à europeia, onde a disposição das construções e das ruas demonstrava uma materialização da memória constitutiva desse imigrante, e que simbolicamente reafirmava a sua identidade, aqui, na nova terra.

Mesmo com as condições precárias e com as dificuldades encontradas nesse novo lugar, os imigrantes buscaram manter o imaginário social e cultural trazidos da terra natal, fazendo com que a memória fizesse parte das práticas sociais, como pudemos vislumbrar nas construções e nas estruturas, referenciadas nas duas fotos. Mas é importante ressaltar, que sempre há os atravessamentos, pois estamos falando de um novo lugar. Isso fez com que as fronteiras da cultura, da língua desses imigrantes também fossem se transformando, já que não são fixas.

Essa tentativa de materializar a memória discursiva é apresentada por Pêcheux como “um acontecimento que restabelece os “implícitos” ou “pré- construídos” de dizeres que já foram ditos em outros contextos sócio-históricos” (2007, p. 52). Servem como suporte para a interpretação do real na qual o sujeito está inserido.

como “entendido em sentido amplo como campo de documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” (2010, p. 50). Não podemos pensar o arquivo na AD como o armazenamento de papeis, mas o acesso a memórias que o sujeito toma como base documental para sua inscrição em um determinado discurso, para poder dizer-se presente nele, constituindo um espaço de confrontos e de deslocamentos de sentidos.

Assim começaria a se constituir um espaço polêmico das maneiras de ler, uma descrição do 'trabalho do arquivo enquanto relação do arquivo com ele mesmo, em uma série de conjunturas, trabalho da memória histórica em perpétuo confronto consigo mesma' (PÊCHEUX, 2010, p. 51).

Esse espaço polêmico pode ser observado nas fotos das duas cidades, onde se estabelece uma ordem de seleção de alguns sentidos em detrimento de outros, produzindo uma nova discursividade.

Para a compreensão desse jogo de sentidos, é importante definir noções de memória enquanto arquivo e memória como interdiscurso. Para isso, Orlandi afirma que:

Enquanto arquivo, a memória tem a forma da instituição que congela, que organiza, que distribui sentidos. O dizer nesta relação é datado. Reduz ao contexto, à situação da época, ao pragmático. Enquanto, interdiscurso, porém, a memória é historicidade e a relação com a exterioridade alarga, abre para outros sentidos, dispersa, põe em movimento (2003, p. 15). Nessa perspectiva, temos a significação do sujeito que se inscreve no discurso, em uma tensão que podemos determinar como processos parafrásticos e polissêmicos.

Retomando Orlandi, os processos parafrásticos são apresentados como “aqueles pelos quais, em todo dizer, há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória” (2009, p. 36). A paráfrase nos mostra um retorno ao espaço do dizível, ou seja, o imigrante, ao trabalhar com os mesmos sentidos, produziu a estabilização, um dizer sedimentado, reiterando-se, em um retorno constante ao espaço do já dito.

Orlandi ainda nos lembra de que “pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível:

produz a variedade do mesmo” (2009, p. 37). Ou seja, essa produtividade pode ser encontrada na repetição das formas de construção, tendo apenas algumas variações. Por isso podemos chamar a paráfrase de “matriz do sentido” (ORLANDI, 2009, p. 37).

O que observamos é a memória institucionalizada interferindo na formação da nova cidade, no Brasil, em uma articulação entre o imaginário, o simbólico e o real.

Mas é interessante observarmos o confronto dos sentidos causados pelo jogo da paráfrase com a polissemia, que nos leva a entender como trabalham o político e o linguístico na produção dos sentidos e na constituição dos sujeitos, podendo ser vistos na metáfora das construções. Pela repetição do dizer, os imigrantes fizeram suas construções sustentadas por uma memória que já os constituía, uma memória estabilizada, mas, por viverem o novo, o possível, o diferente, na nova terra, houve também a ruptura nessa memória, um deslocamento dos processos de significação produzido pela criatividade “fazendo intervir o diferente, produzindo movimentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a história e com a língua” (ORLANDI, 2009, p. 37). É a polissemia gerando um conflito com o já dito, através da “passagem do irrealizado ao possível, do não-sentido ao sentido” (ORLANDI, 2009, p. 38).

Nessa relação com o movimento, há um cruzamento incerto entre a mudança e a permanência, em que, nem um sujeito é tão visível e nem um sentido tão certo. Com isso, reporta-se ao silêncio que está sempre significando para que se possa ter um sentido.

Para Orlandi, o sentido sempre muda de caminho, não para (2002). Esse movimento é componente essencial na relação do sujeito com as formações discursivas, permitindo uma transformação dos sentidos, e não apenas uma reprodução destes.

O silêncio, no movimento dos sentidos, pode ser considerado parte da incompletude, trabalhando os limites das formações discursivas, produzindo tanto a polissemia (a-dizer) quanto à paráfrase (o já-dito). Para Orlandi, o silêncio trabalha os limites do dizer, com seus horizontes possíveis ou realizados (2010).

movimento do discurso na contradição entre o mesmo e o diferente, nesse jogo da paráfrase e polissemia. Esse movimento mostra-se antagônico no sujeito e no sentido, fazendo-se no entremeio da ilusão de um único sentido e o equívoco de todos os sentidos.

No exemplo apresentado, as casas, o desenho das ruas, a disposição das construções, o modo de organização dos espaços “livres” são re-significados em uma terra com clima próprio e diferente daquele trazido no imaginário dos imigrantes, pois nesse novo lugar não neva com tanta intensidade e raramente neva como na “velha pátria”, assim como outros tantos elementos do contexto da “nova pátria”, como a vegetação com árvores distintas das existentes na Europa e que diferem desse imaginário, na medida em que se constituem em outro real. Assim, ao mesmo tempo em que os saberes trazidos pelos imigrantes alemães foram reproduzidos nas práticas sociais, eles também tiveram que ser adaptados dentro das condições existentes na nova terra, em uma amalgama indiscernível, assim como é indiscernível nas fotos.

Apresentamos uma fotografia da cidade de São Bento do Sul na atualidade, onde podemos observar marcas do repetível, e também novos sentidos.

Figura 7 – Cidade de São Bento do Sul – século XXI

Através da foto da cidade de São Bento do Sul, hoje, podemos refletir sobre um novo acontecimento discursivo que desloca e desregula os implícitos estabilizados parafrasticamente. Para Orlandi “é o momento imprevisível em que “uma série heterogênea de feitos individuais entra em ressonância produz um acontecimento histórico rompendo o círculo da repetição” (2012, p. 77). É um jogo de força na memória que se concretiza no choque do acontecimento entre a manutenção da regularização, em que a paráfrase negocia uma integração com o acontecimento, e a desregularização que vem desestabilizar os implícitos.

Pêcheux coloca essa relação como:

Efeito de opacidade (correspondente ao ponto de divisão do mesmo e da metáfora), que marca o momento em que os ‘implícitos’ não são mais reconstruíveis, é provavelmente o que compele cada vez mais a análise de discurso a se distanciar das evidências da proposição, da frase e da estabilidade parafrástica, e a interrogar os efeitos materiais de montagens de sequências, sem buscar a princípio e antes de tudo sua significação ou suas condições de interpretação (2007, p. 53).

Essa opacidade pode ser vista na imagem da foto da cidade atual de São Bento do Sul, que é um espaço polêmico, heterogêneo, com múltiplos sentidos. A imagem é atravessada e constituída por um discurso do qual a memória perdeu “o trajeto de leitura” (PÊCHEUX, 2007), ou seja, fazemos um anacronismo entre as construções antigas, seus jardins e quintais e a contemporaneidade das edificações modernas.

Trata-se de um confronto entre a paráfrase e polissemia, possibilitando uma desestabilização, dando novas leituras e transformando esse lugar em outro, que não é a cidade natal da primeira foto, nem uma cidade qualquer da contemporaneidade brasileira, pois existem aí marcas indeléveis de uma certa memória.

Portanto a memória é constituída por recortes, lacunas em que alguns sentidos são silenciados e outros excluídos. Para Pêcheux:

A memória não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam transcendentais, históricas e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regularização [...]. Um espaço de

desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra discursos (2007, p. 56). A partir dessa concepção, fica evidenciado o movimento dos sentidos, observados na foto da cidade de São Bento do Sul, hoje, com novas formas do “a- dizer”, onde não há mais a necessidade da transferência, sustentada por uma memória constitutiva. São os desdobramentos gerados pelo movimento da polissemia, mas sempre ancorado na paráfrase.

É nesse jogo que se constrói a memória do imigrante, em processos de paráfrase e de polissemia, de esquecimentos e de retomadas, de identificação e de contra-identificação.