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Memória dos lambrequins 177

7.1 MATERIALIDADES SIMBÓLICAS: IDENTIFICANDO A MEMÓRIA 168 

7.1.2 Memória dos lambrequins 177

Dando continuidade à nossa reflexão sobre a memória, trazemos os lambrequins que são ornamentos de madeira, encontrados nas construções da antiga colônia de São Bento, em Santa Catarina, como em casas contemporâneas nessa mesma região.

Os lambrequins, bem como qualquer outro objeto simbólico que aqui é tomado como discurso, produz sentido na relação com outros discursos. Vemos essa materialidade como mais um lugar de memória e de identidade do sujeito imigrante e de seu descendente.

As duas temporalidades distintas, constitutivas dos lambrequins, nos permitem perceber o jogo da memória e do esquecimento de maneira particular. Por um lado temos os lambrequins do passado, vindos com os imigrantes da Europa, enfeitando suas primeiras casas na nova Heimat, materializando a memória de seu lugar de origem. Por outro lado, temos os lambrequins, hoje, produzindo sentidos diferentes, mas ainda como ornamento relacionado aos imigrantes e sua cultura.

Tendo em vista essa delimitação temporal, vemos que “os lugares de memória sobrevivem devido a sua aptidão à metamorfose, valendo-se de uma incessante retomada de suas significações e da propagação de suas ramificações, mas ao mesmo tempo sem perder a identificação” (DIAS, 2003, p. 82).

permeiam a memória através dos lambrequins. Os imigrantes alemães que formaram a colônia de São Bento enfrentaram uma realidade dura: mata virgem, floresta densa, povoada por inúmeros animais e pássaros. Foi preciso muita coragem e vontade de trabalhar para construir aqui uma réplica, ao menos parecida da pátria que deixaram. Também trouxeram sua história, usos, língua e saudade. São Bento do Sul descobriu, na transformação da madeira, sua vocação. No início, a madeira da floresta moldou ranchos, cercas e vendas. Antes das indústrias vieram as serrarias, carpintarias, barricarias, tamancarias e marcenarias. As rodas d'água, de tração animal, moviam serras, furadeiras e tupias. Da imbuia, do pinheiro eram produzidos móveis, cabos de ferramentas, equipamentos para agricultura, carroças e lambrequins, um ornamento em meio a tantos instrumentos. A partir de formas de papel ou tecido, eram entalhados em madeira formando um verdadeiro bordado. No sul foi trazido pelos imigrantes alemães, poloneses e italianos. Os imigrantes alemães fixavam suas casas de madeira no centro de grandes terrenos, com jardins na frente e quintais nos fundos.

Os telhados, normalmente com duas águas, eram cobertos com telhas chatas alemãs ou de Marselha, e os lambrequins tinham a função de “pingadeira”, evitando que a água da chuva caísse nos passantes, e também protegiam os madeirames da cobertura, já que os filetes de água da chuva caíam diretamente no solo.

O típico lambrequim encontrado no sul do Brasil, trazido pelos europeus, possuía, segundo os antigos artesãos, desenhos específicos que determinavam as regiões da terra natal. Os encontrados nas casas alemãs eram trabalhados com linhas sinuosas e rendados. Também era muito comum encontrar lambrequins inspirados em elementos da natureza como gotas d’água, filetes de neve, cachos de uva, pétalas, tulipas, cedros e folhas de louro e carvalho. Estes eram recortados em pinho (araucária) ou imbuia, madeira abundante na região. As cores tradicionalmente utilizadas (verde, branco, marrom, amarelo e azul) remetiam aos tons encontrados na natureza da “velha” pátria.

Esses eram alguns dos motivos utilizados pelos imigrantes que utilizavam esse ornamento também para enfeitar o interior de algumas casas, encontrados em objetos de uso doméstico, como toalhas de mesa, vasos e móveis, mas

essencialmente usados na decoração das casas como adorno nas escadas e nas soleiras das varandas.

A seguir, observamos o funcionamento da memória nas imagens dos lambrequins.

Figura 8 – Modelos de lambrequins

Fonte: Pereyra (2006)

Vemos detalhes trabalhados em madeira que eram encontrados, normalmente nas casas burguesas. Esse rebuscamento trabalhado na madeira, a sua estética, não diria respeito à construção em si, e era um trabalho feito de memória. Para criar os seus desenhos, os imigrantes buscavam inspiração em “catálogos feitos por arquitetos alemães da cidade de Leipizig, nas décadas de 1900, 1910 e 1920” (PEREYRA, 2006, p. 212). Para Eiseman “a memória torna-se concreta em pedras e cunhagem: algo que sirva como lembrete e advertência, e algo que sirva como um ponto de partida para pensamento ou ação” (2001, p. 273), ou seja, esse trabalho de lambrequins não é apenas um trabalho arquitetônico, mas quase uma arte. Objeto de extrema beleza, significavam “status” social do proprietário da casa que o ostentava. Portanto, além da materialização de uma memória, esse objeto produz, ainda, uma individuação do sujeito, que “remete o sujeito a um processo de identificação, a uma posição sujeito na sociedade”

(ORLANDI, 2011, p. 22), mostrando a necessidade desse sujeito de um laço social, sendo parte do grupo a que “pertence” e estabelecendo um modo de pertencimento. Essa individuação, relacionada à sociedade, resulta em um “eu comum”. Ao individuar-se, o imigrante se projeta em uma posição-sujeito que o leva a ideia de pertencimento e o lambrequim o legitimava dentro dessa comunidade.

Na sequência, temos duas construções do início do século XX, onde os ornamentos em madeira se apresentam dentro de uma proposta arquitetônica de urbanidade.

Figura 9 – Modelos de lambrequins

Figura 10 – Modelos de lambrequins

Fonte: Pereyra (2006)

Segundo Indursky, a repetição pode levar a um deslizamento, uma ressignificação, uma quebra do regime de regularização dos sentidos:

Se há repetição é porque há retomada/regularização de sentidos que vão construir uma memória que é social, mesmo que esta se apresente ao sujeito do discurso revestida da ordem do não-sabido. São os discursos em circulação, urdidos em linguagem e tramados pelo tecido sócio-histórico, que são retomados, repetidos, regularizados (2011, p. 71).

Essa quebra da regularização se apresenta em um acontecimento novo que vai perturbar a memória e pode provocar a interrupção da regularização (PÊCHEUX, 2007). No contexto sócio-histórico brasileiro, a imigração foi um acontecimento novo, e com ela, também a utilização dos lambrequins nas casas.

Assim, temos a repetição não como reiteração do mesmo, mas podendo abrir-se para outras possibilidades, pois para Pêcheux “a própria memória esburaca- se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase” (2007, p. 53). São utilizados os mesmos lambrequins, demarcando o lugar da repetição, mas se produzem novos

sentidos para eles.

As fotos de construções com lambrequins do início da colonização e as fotos de construções contemporâneas apresentam o suporte para compreender o lugar da memória entre as fronteiras da temporalidade, considerando os sentidos do mesmo e do diferente na construção da memória.

Figura 11 – A “Botica” em 1896 e Casa da Família Moeller construída em 1900

Fonte: Pfeiffer (1997)

A primeira foto mostra os patriarcas das famílias que chegaram a São Bento entre 1873 e 1877 e a construção ao fundo era a “botica” dos Bollmann. Observamos os lambrequins sendo utilizados como um adorno e pinguadeira na fachada da construção.

A segunda foto apresenta a casa pertencente à família Moeller, construída na década de 1900. Nela, os lambrequins evidenciam o adorno e a abundância da madeira na região, além de demonstrar a capacidade do imigrante de

trabalhar no ofício da carpintaria. Também era uma forma de visibilidade social em que “os burgueses da cidade se identificavam com seus desejos de exibição social” (PEREYRA, 2006, p. 213).

Figura 12 – Estação Ferroviária de Rio Negrinho – SC (2012).

Fonte: Acervo da pesquisadora (2013)

Na imagem acima, temos a construção da estação ferroviária de Rio Negrinho, onde se observam os lambrequins em forma de tulipas, muito comuns nas casas de imigrantes alemães.

Na sequência, temos os lambrequins na contemporaneidade, no movimento da memória, entre o mesmo e do diferente, produzindo os deslizamentos de sentido através da temporalidade. Os sentidos já são outros e se encontram fora do contexto do início da urbanidade.

Figura 13 – Construção na cidade de São Bento do Sul – SC (2012).

Fonte: Acervo da pesquisadora (2012)

Figura 14 – Construções na cidade de Campo Alegre – SC (2012).

Figura 15 – Construções na cidade de Campo Alegre – SC (2012).

Fonte: Acervo da pesquisadora (2012)

Payer apresenta a noção de discursividades temporalizadas, em que objetos que significam em um contexto sócio-histórico, ao serem trazidos para outro contexto são tomados por uma abertura

porque a comparação restabelece, no real do discurso, pela materialidade discursiva, os sentidos que a enunciação permite circunscrever ao passado; ao mesmo tempo, desloca esses sentidos ao colocá-los em correlação com outros de natureza “semelhante”, embora concernentes a formações discursivas distintas (2006, p. 189).

A aproximação entre o passado e o presente não só atualiza os sentidos, mas, para Payer, “expõe uma disparidade entre as práticas” (2006, p. 176).

É na discursividade dos novos lambrequins, com novos desenhos, novas cores, com uma relação distinta daquela em que se apresentava como pingadeira na Europa devido à neve e a necessidade de manutenção dos madeirames, que vemos esses elementos re-significados, mostrando que os sentidos já não são os mesmos. São os novos sentidos trazidos para a memória pelo movimento nos discursos.

Hoje, vemos que as construções são, na maioria, de alvenaria, com outros componentes que fazem a função dos lambrequins. Mas eles ainda são utilizados como um adorno que retoma um passado como forma de significação do

presente. Com isso há um efeito de passado produzido no presente.