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3. IRONIA, PARÓDIA E METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA

3.3. A METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA

A conjunção de paródia, ironia, história e ficção dá os ingredientes necessários à construção da metaficção historiográfica, dadas as discussões deste capítulo17, tendo como objetivo principal a revelação do passado, “impedindo-o de ser conclusivo e teleológico” (HUTCHEON, 1991 147), uma vez que, por ser discurso, narrativa, não está isento de uma função política, assim como esse próprio discurso artístico não o está, bem como a crítica em geral. Logo no começo de seu livro, a autora afirma que

Para tentar evitar a tentadora armadilha da cooptação, o que se precisa é do reconhecimento do fato de que essa própria posição é uma ideologia, uma ideologia profundamente comprometida com aquilo que pretende teorizar. Como Barthes nos lembrou, a crítica é “essencialmente uma atividade, isto é, uma série de atos intelectuais profundamente comprometidos com a existência histórica e subjetiva (as duas são idênticas) do homem [sic] que os realiza” (...).(HUTCHEON, 1991:40-1)

Esta citação desvela, também, outra característica essencial da metaficção historiográfica: a apropriação da escrita da história, do passado que conhecemos, não para negá-lo, para, de dentro dele, operar a confrontação de suas bases e diretrizes. Ora, reconhecendo o passado como matéria necessariamente discursiva, que em todo discurso está emboscada a libido dominandi, o poder – utilizando as palavras de BARTHES (2001) –, e, mais ainda, que a própria língua que tece esse discurso, como a conhecemos, trata-se de um produto social (SAUSSURE, 2006:17), tecido arbitrariamente em prol da construção e manutenção da vida em sociedade, torna-se inegável que a seleção e a ordenação do que se narra na historiografia estão vinculadas e comprometidas com a visão política de quem as efetua.

A metaficção, então, não pretende negar a existência de um passado, da história crua, mas lançar dúvidas sobre aquilo que construímos de significativo a partir dos relatos que temos desse passado. Isso abrange os conhecimentos científicos, filosóficos, artísticos e religiosos – citamos essas formas, porque cingem toda a produção humana de signos.

17 É importante ressaltar que Hutcheon trata em sua Poética do Pós-Modernismo (1991) não só da forma

O conhecimento gerado a partir dessas formas é que, intermitentemente, fornecem à sociedade suas panacéias, seus reparos, as diretrizes que se devem tomar para alcançar um estado “melhor” das coisas. O que a arte contemporânea nega, por meio da paródia e da ironia, são as certezas absolutas que daí advém, pois todas as certezas que nos tomam, ela ensina, devem ser vistas como “posicionais” (BURGIN, 1986, apud HUTCHEON, 1991:30), “provenientes de complexas redes de condições locais e contingentes” (HUTCHEON, 1991:30). É exatamente neste ponto que, como dissemos, põe-se em confronto o político e o histórico, é aí, também, que se revela o impulso questionador da arte desse tempo denominado pós-moderno por Hutcheon: “O impulso pós-moderno não é buscar nenhuma visão total. Ele se limita a questionar. Caso encontre uma dessas visões, ele questiona a maneira como, na verdade, a fabricou” (HUTCHEON, 1991:73).

Tal impulso questionador, que tem sua efetivação por meio da apropriação paródica e irônica do passado, reflete-se tanto no passado quanto no presente social do próprio texto, tem sua posição firmada no caráter contingente do discurso da verdade, que, acompanhando a práxis, movimenta-se, ou melhor, transforma-se perpetuamente. E, sendo a verdade contingente, a própria história, como todo o conhecimento humano, ela mesma o é.

O próprio nome dado a esse tipo de narrativa já revela seu sentido: “metaficção historiográfica” designaria algo que excede o próprio conceito de ficção, e mais, o conceito de ficção histórica, algo que está além, que transcende. No caso em texto, como conceituação produtiva do que seria isso, Hutcheon reescreve uma “descriação de Bárbara Foley sobre o paradigma do romance histórico do século XIX, inserindo entre colchetes as mudanças pós- modernas:” (HUTCHEON, 1991:159)

Os personagens [nunca] constituem uma descrição microcósmica dos tipos sociais representativos; enfrentam complicações e conflitos que abrangem importantes tendências [não] no desenvolvimento histórico [não importa qual o sentido disso, mas na trama narrativa, muitas vezes atribuível a outros intertextos]; uma ou mais figuras da história do mundo entram no mundo fictício, dando uma aura de legitimação extratextual às generalizações e aos julgamentos do texto [que são imediatamente atacados e questionados pela revelação da verdadeira identidade intertextual, e não extratextual, das fontes dessa legitimização]; a conclusão [nunca] reafirma [mas contesta] a legitimidade de uma norma que transforma o conflito social e político num debate moral. (HUTCHEON, 1991: 159)

Mais uma vez, desvela-se o caráter político imanente do texto, que está longe de querer-se pôr em posição neutra nos debates culturais, sobre política, religião etc. O

Evangelho Segundo Jesus Cristo, por sua vez, enquadrando-se nessa categoria romanesca.

da história para formar sua metaficção historiográfica. Ele não nega a verdade religiosa, nega a possibilidade de aceitação de uma versão absolutizante desse discurso, dadas as condições contingentes na composição daquilo que chamamos verdadeiro. O autor conjura uma série de elementos historicamente plausíveis que põem em xeque as certezas exegéticas produzidas pela Teologia cristã, desvelando seu caráter político providencial ao desenvolvimento da hegemonia cristã no Ocidente.

Nos próximos capítulos, as análises tomarão por base e direcionamento os subsídios teóricos e históricos apresentados até então. Neles, serão analisados os três personagens que compõem aquilo que, aqui, denominamos a Trindade Profana de Saramago: Diabo, Deus e Jesus Cristo.

4. COMENTÁRIOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DAS PERSONAGENS DE DIABO,

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