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3. IRONIA, PARÓDIA E METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA

3.2. A PARÓDIA

No texto, é por meio da paródia que o autor do “Quinto Evangelho” resgata o passado. Mais do que imitação de textos dos passados literário e histórico, a paródia de que nos referimos apropria-se desses materiais, reconhecendo-os e mesmo determinando-os como discurso de re-presentação do pretérito humano de Cristo. A respeito disso, Linda Hutcheon afirma que “ela [a paródia] apresenta uma sensação da presença do passado, mas de um passado que só pode ser conhecido a partir de seus textos, de seus vestígios – sejam literários ou históricos” (HUTCHEON, 1991:164). Ora, há aí uma afirmação categórica tangendo a natureza dos discursos narrativos que nos dão conta da história – o ficcional e o historiográfico – e auxiliam-nos na decodificação dos signos sociais presentes.

Por essa razão exposta, há uma pergunta que pode acompanhar a afirmação: onde está a história? ou, antes: o que é história? E perguntar sobre a essência da história é o mesmo que questionar a essência da verdade a respeito do passado, porque há aí uma relação íntima de dependência. O que é a verdade no relato histórico senão o velar e o desvelar contínuo de matizes da realidade anterior, um jogo que, ocultando, descobre, nunca o que foi por completo, uma versão do que poderia ter sido, do que mais se aproxima daquela realidade que não pode mais, em hipótese alguma, ser reproduzida, uma narração verossímil de um “pretérito perfeito”.

Aristóteles, como dito, afirma a superioridade da poesia sobre a história justamente pelo caráter verossimilhante daquele discurso. Afirmar verossimilhança também no discurso histórico implica amalgamar história e literatura e confirmar a essencialidade de tal caráter para ambos os discursos. E, desta forma, estamos autorizados a dizer que uma está contida na outra: que há literatura em história e que há história em literatura, porque ambas acabam tendo como matéria-prima a práxis, o constante movimento das inevitáveis transformações sociais, e como resultado uma reflexão direta ou indireta sobre essas transformações.

Outra informação que julgamos importante no estabelecimento e consolidação dessa aproximação entre os discursos referidos é a feita por Luiz Costa Lima, em seu livro

História. Ficção. Literatura (2006), que distingue, no interior da história, “história crua”,

“historicidade” e “escrita da história”. A primeira, nas palavras do próprio autor, concerne ao seguinte:

Em si mesma, como fenômeno natural e espontâneo, a história [crua] concerne ao que sucede no mundo para aquelas criaturas capazes de reconhecer o tempo. Como tal, ela é a face concreta, múltipla e contraditória da existência humana. (...) a história, fenômeno da realidade, respeita as ações pontuais de um agente humano, de um grupo de agentes, de uma comunidade, de uma sociedade ou de uma época. Essas ações permanecerão anônimas ou serão objeto da memória de alguém ou de um grupo, sem que, por isso, passem a automaticamente integrar a escrita da história. (LIMA, 2006:116; grifos nossos)

A historicidade, para Costa Lima, é o instrumento básico de que dispõem essas “criaturas capazes de reconhecer o tempo” para inserir toda a produção historiográfica, a escrita da história, e, por extensão, toda a produção textual no tempo e no espaço lógico- racional.

É essa inserção no tempo e no espaço lógico-racional – a escrita da história – que nos dá a narrativa do passado, ou melhor, que transforma os atos passados em discurso. Discurso que é material de apropriação política implícita ou explicitamente. É a escrita da história que, também, responde-nos as perguntas aqui feitas: a história está no discurso, porque ela mesma é discurso. Mas, agora, o questionamento torna-se outro: sendo a literatura e a história discursos que se apropriam da história crua e de si mesmas, as lentes que nos dão a ver a práxis, qual o sentido que se quer produzir, politicamente, com o relato histórico? (HUTCHEON, 1991).

A paródia é a forma que a ficção utiliza, contemporaneamente16, para não responder a essa pergunta, mas inseri-la na consciência do presente social e questionar as bases da escrita da história, acareando história e política (HUTCHEON, 1991: 42). Essa literatura, que Hutcheon denominou “metaficção historiográfica”,

(...) refuta os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o fato histórico e a ficção. Ela recusa a visão de que apenas a história tem uma pretensão à verdade, por meio do questionamento da base dessa pretensão na historiografia e por meio da afirmação de que tanto a história como a ficção são discursos, construtos humanos, sistemas de significação, e é a partir dessa identidade que as duas obtêm sua principal pretensão à verdade. (...) ambos os gêneros constroem inevitavelmente à medida que textualizam esse passado. (HUTCHEON, 1991:127)

16 Preferimos utilizar o termo “contemporaneamente”, em vez de “modernamente” ou “pós-modernamente”, para

não entrarmos em uma discussão desnecessário para este trabalho. Para tal reflexão, sugerimos a Poética do Pós-

Por essa razão é que assumimos como produtivo para esta dissertação o conceito de paródia tecido pela autora:

Aqui – como em todos os pontos do presente estudo –, quando falo em “paródia”, não estou me referindo à imitação ridicularizadora das teorias e das definições padronizadas que se originam das teorias de humor do século XVIII. A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica da diferença no próprio âmago da semelhança. (HUTCHEON, 1991: 47)

É desse tipo de ferramenta estética que faz uso Saramago em seu escrito literário, reconstruindo a narrativa evangélica sem refutá-la, apropriando-se de seu texto e subvertendo- o, dando voz e imagem a personagens, tempos e espaços olvidados nos Evangelhos canônicos. Já no início de sua obra, há a explicitação do tipo de discurso que se mostra ali: um discurso sobre o discurso, ou melhor, sobre os discursos histórico e religioso, com a consciência de que “nenhuma dessas coisas é real, (...) papel e tinta, mais nada” (ESJC, 13), de “que tudo isto são coisas da terra, que vão ficar na terra, e delas se faz a única história possível” (ESJC, 20): o discurso.

O jogo paródico de Saramago procura representar elementos sociais e históricos obscurecidos pelo discurso institucionalizado da Teologia cristã, não para dizer-se mais verdadeiro ou concluir uma nova versão mais apropriada da história, para questionar o discurso instituído como fato. Na obra, bailam a inventividade do autor, o discurso historiográfico e as narrativas evangélicas.

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