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5 ANÁLISE DA RETÓRICA DE AVENIDA BRASIL: DO

5.4 A MOBILIDADE SOCIAL COMO ESTRATÉGIA DE PERSUASÃO

A partir de 2010 começou a aparecer na grande mídia uma série de reportagens sobre a suposta ascensão econômica de uma nova classe média. O tema tornou-se recorrente nas grandes emissoras de televisão22 (Rede Globo, Rede Record, SBT), nas revistas semanais (Veja, Época, Isto é) e nos jornais de grande circulação por todo o Brasil. Diziam essas matérias que um contingente de 30 milhões de brasileiros estava ascendendo à condição de classe média, mas não à classe média tradicional, uma nova classe média formada por aquelas pessoas que “fazem churrasco na laje”, “levam farofa para praia”, “gostam de tecnobrega e forró eletrônico” (caracterizações feitas pela jornalista Ana Paula Padrão no Jornal da Record exibido em 09/11/2010).

Tais afirmações revestem-se de uma importância social inegável, tendo em vista ser o jornalismo uma instituição com credibilidade social, pela prática de uma comunicação que tem como função perceber e construir um conhecimento sobre a realidade social (BERGER; LUCKMANN, 2009, grifo do autor), conhecimento construído pelos jornalistas, segundo Andrade (2011, p. 33, grifo do autor), “[...] na e pela linguagem, em operações que lhes são singulares, em decorrência do domínio de técnicas e de conhecimentos que transformam o jornalista em operador do dizível”. Assim compreendendo, quando o jornalismo reconhece a existência de uma nova classe social, esta se constitui como uma verdade social e ganha legitimidade nos demais campos sociais.

22 Algumas dessas reportagens podem ser visualizadas no sítio youtube.com com nos seguintes endereços: Jornal da Record (09/11/2010); Jornal Nacional (05/08/2011); Jornal Hoje (03/09/2012); A Liga (20/06/2011).

O jornalismo (fenômeno comunicacional, um subsistema do sistema midiático) é uma instituição política que ajusta, seleciona e direciona e, principalmente, constrói sentidos e percepções sobre a realidade, amparado pela lógica de um ‘regime de verdade’, formatado no tempo e na enunciação de um dizer ‘verdadeiro’. (ANDRADE, 2011, p. 33).

É importante registrar que, embora o jornalismo tenha, historicamente, conquistado o reconhecimento como instituição essencial para a sociedade, “[...] com legitimidade social para produzir, a um público amplo, disperso e diferenciado, uma reconstrução discursiva do mundo com base em um sentido de fidelidade entre o relato jornalístico e as ocorrências cotidianas” (FRANCISCATO, 2005, p. 167), tal legitimidade é também instável e questionável. Acrescenta Andrade (2016) que esta é também uma atividade/profissão vinculada a um conjunto de valores que se estabilizam e/ou desestabilizam-se nos espaços intra e extrainstituição. O posicionamento dos autores tem em comum o fato de entenderem ser o jornalismo uma instituição, por excelência, política, agregando e representando, principalmente, segmentos dominantes da sociedade. Nesta perspectiva, Souza (2012) questiona a mensagem hegemônica da mídia, mostrando os interesses em jogo:

Como interesses que estão ganhando são os que mandam no mundo – senão não seriam dominantes –, são esses profetas da afirmação que estão falando todo dia nos grandes jornais da grande imprensa brasileira e nos canais de TV. O que eles dizem? Eles dizem que a nova classe de ‘emergentes’ brasileiros que ajudaram a mudar a economia e a sociedade brasileira recente mostra o triunfo do mercado neoliberalizado e desregulado desde que o Estado corrupto e politiqueiro não atrapalhe [...]. As mentiras sociais são, como vimos, sempre ‘meias-verdades’, do contrário elas não convenceriam ninguém. (SOUZA, 2012, p. 20-22).

O fato é que, como “meias-verdades” ou verdades construídas a partir de valores de uma classe dominante, os elementos do discurso que se espalhava na mídia, sobre a chamada nova classe média, passaram, paulatinamente, a integrar o enredo das telenovelas. Como destacou Daniel Filho (2003, p. 158), um dos ingredientes importante para sucesso de uma telenovela é abordar o “assunto do momento da sociedade, uma história oportuna”. Assim, narrativas de sucesso foram muitas vezes encontradas na história oportuna, no assunto do momento. Foi o que aconteceu com Avenida Brasil. Embora, como já foi visto, João Emanuel Carneiro tenha negado que o protagonismo da chamada nova classe média tenha sido uma

encomenda, Pallottini (1998, p. 18) destaca que a questão de trabalhar sob encomenda em teleficção é algo de que dificilmente os autores conseguem escapar.

A televisão deve e precisa trabalhar em equipe. É muito comum alguém da equipe, que não seja necessariamente o autor, dar-se conta de que o veículo está pedindo, neste momento, determinada história ou determinado formato. Definida tal realidade, dentro do mundo consumista do veículo, que está sempre querendo saber – e sabe – o que o público deseja ver agora, é lógico que os autores sejam convidados a escrever a história correspondente. [...] também é verdade que o escritor, um ser dotado de suas próprias antenas, pode descobrir antes de qualquer outro a necessidade emergente do público consumidor. (PALLOTINI, 1998, p. 18).

Se encomenda ou espontânea, fruto da criatividade do autor ou imposição da estrutura político-ideológica e econômica que subjaz à produção da indústria do entretenimento, o fato é que se evidencia fortemente em nossa análise a dimensão retórica da telenovela, como a principal estratégia de persuasão da trama. Nesse sentido, a reflexão de Souza (2012) sobre os limites entre uma visão de classe como determinação exclusiva de renda e posição pode ser melhor entendida quando se observa que a retórica da novela aborda questões que ampliam a visão de classes entendidas exclusivamente pelo viés de dimensões incensadas tanto por estudiosos que representam o economicismo liberal quanto por aqueles que defendem o marxismo tradicional. O que percebemos com a análise da telenovela Avenida Brasil é que fatores “sociais, emocionais, morais” (SOUZA, 2012, p. 22) apontados pelo autor são bem articulados na trama de modo a mostrar uma dimensão espacial (o bairro o Divino) e pessoal (os habitantes do subúrbio idealizado) que transcende o economicismo e apontam para modos de ser e de viver das classes populares.

A condição do batalhador é justamente a obrigação de defender o seu ‘mundo de interações’. Ele precisa defender o suporte simbiótico (a interpretação entre a vida material e a simbólica) necessário para que se possa calcular algo, ou seja, o próprio espaço para a locação de um valor inicial para o cálculo. Esse espaço, e aí se monta a interpenetração aludida acima entre vida simbólica e vida material, é literalmente a casa, seja ela urbana ou rural. Sem casa, não há família, não há ‘mundo da vida’, e a interação entre as pessoas é desestabilizada pela desconfiança. (SOUZA, 2012, p. 325).

No caso da Avenida Brasil, a casa a que se refere Souza (2012) está representada pelo Divino. É nessa lógica que a narrativa da novela mostra, interage e seduz, estabelecendo vínculos e identificação com a audiência, de modo a, dialeticamente, ser produto e produtora de uma realidade construída pela mídia na qual e pela qual foi possível ao autor colocar em pauta, corporificar uma classe que é, ao mesmo tempo, uma estratégia de persuasão e uma realidade, ainda que retórica, mas real. Tudo isso se revela pertinente, quando se observa que, em nenhum momento da trama, houve verbalização da existência de uma “nova classe”. Contudo, as simbologias ali construídas levaram ao reconhecimento de que esta classe se fazia representar na novela, de tal modo que este fato passa a reverberar por todos os segmentos da sociedade, incluso o campo científico, que se debruçou sobre o fenômeno (conforme já evidenciado neste trabalho). Souza (2012, p. 49) posiciona- se criticamente sobre o fenômeno, mas não o nega.

Vimos que o senso comum é construído tanto por conhecimentos pragmáticos, que nos ajudam na vida cotidiana, quanto por ideologias e falsas ideias que mantêm a imensa maioria dos indivíduos – e no limite todos nós em alguma medida – presos a esquemas de comportamento e de interpretação do mundo e da vida superficiais de modo a legitimar o mundo como ele existe. Esse ponto é de fácil demonstração. Na esfera da vida individual, nós temos ‘a indústria cultural’ como a dimensão que reproduz, em grande medida, ainda que não na sua totalidade, a vida simbólica individual. (SOUZA, 2012, p. 49).

Ao conjunto de determinações da ordem do real (da vida efetivamente vivida), mas também de ordem simbólica (nas dimensões que transcendem ao meramente econômico) é que atribuímos a força narrativa de Avenida Brasil, sobretudo a sua dimensão retórico-persuasiva, por meio da qual se identifica o processo narrativo-discursivo de uma possível mobilidade social na sociedade brasileira, protagonizada por espaços e personagens que materializavam a idealização de uma sociedade em ascensão e em resgate de profunda desigualdade social.