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A modernização conservadora foi a resposta dos governos militares aos impasses verificados na agricultura e na questão agrária brasileira no período pré 1964. Tais impasses foram objeto de um debate que repercute ainda hoje nas discussões sobre a questão agrária (Delgado, 2005; Graziano da Silva, 2004; Ramos 2007; Moraes, Árabe e Silva, 2008) e pode ser sintetizado em torno de três eixos: a posição dos economistas da CEPAL, tendo à frente Celso Furtado, que identificavam na estrutura agrária uma restrição impeditiva ao crescimento

agrícola e econômico do país, dada sua incapacidade de prover os alimentos e matérias- primas de baixo custo exigidos pela industrialização; a posição expressa por Alberto Passos Guimarães, que via a estrutura agrária brasileira como semi-feudal e requerendo, portanto, a reforma agrária como medida de modernização capitalista; e a posição de Caio Prado Júnior, que via a estrutura agrária brasileira como capitalista, com tendência à expansão do assalariamento, e advogava a introdução de medidas de extensão de direitos trabalhistas e de proteção aos trabalhadores rurais28.

No debate intelectual sobre a questão agrária, a intervenção decisiva que estabeleceu a rationale da estratégia conservadora seguida pelo regime militar para o meio rural brasileiro foi a de Antônio Delfim Netto. Ele demonstrou estatisticamente que as posições dos cepalinos sobre uma suposta restrição estrutural da agricultura ao crescimento da economia e da industrialização não eram corroboradas pelos fatos. Delfim lança as bases da articulação da estratégia da modernização conservadora da agricultura brasileira, que começa a ser colocada em prática a partir de 1965 com a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural, o SNCR, ainda hoje a coluna vertebral das políticas públicas de apoio à agricultura no Brasil. A partir de 1967, quando Delfim Netto assume o Ministério da Fazenda e a direção da política econômica do regime militar, essa estratégia se instalou plenamente (Delgado, 2005).

O conceito de modernização conservadora, em analogia àquele de Moore Jr (1966)29, foi usado para explicar o processo de mudanças na agricultura brasileira no período do regime militar. O termo possui duplo significado, embora com ênfases distintas por parte de diferentes autores. Refere-se tanto ao processo de modernização técnica e empresarial do setor agrícola induzida pelo Estado entre os anos de 1965 e 1982, quanto ao processo político que assegurou a manutenção do poder dos grandes proprietários de terra e a exclusão dos trabalhadores rurais de qualquer perspectiva de participação democrática nos frutos dessa modernização.

O duplo aspecto da modernização conservadora é destacado por Delgado (2005):

28

Para uma interpretação que remete à distinção entre “questão agrícola” e “questão agrária”, ver Ignácio Rangel (2004) e Graziano da Silva (2004).

29

O termo modernização conservadora, segundo Pires e Ramos (2009), tem origem na formulação de Barrington Moore Jr. (As origens sociais da ditadura e da democracia. Senhores e camponeses na construção do Mundo Moderno). Esse autor utilizou o conceito para explicar a trajetória histórica de países como a China e o Japão, que experimentaram processos distintos dos chamados casos clássicos da revolução burguesa no ocidente, cujos paradigmas são a Inglaterra, a França e os Estados Unidos. Em sua origem o termo é usado por Moore Jr. como expressão da “revolução pelo alto” ou via prussiana, sintetizando o aspecto político do pacto entre as burguesias ascendentes e a aristocracia com interesses agrários. Estes pactos, excluindo os camponeses e o proletariado, possibilitaram a industrialização e a hegemonia capitalista (e burguesa) sem a necessidade de rupturas com as antigas classes dominantes.

É importante também ter em conta que a chamada “modernização conservadora” da agricultura nasceu com a derrota do movimento pela reforma agrária. Tratava-se ainda de uma resposta à política agrícola dos anos 1950, dominada excessivamente pela prioridade à valorização cafeeira e ao regime cambial então vigentes. Ela foi também uma maneira de responder aos intensos desafios da industrialização e urbanização, combinados com uma necessária diversificação e elevação das exportações primárias e agroindustriais do Brasil, estancadas durante quase vinte anos no nível de US$ 1 a US$ 1,5 bilhão por ano (p. 58).

Em certo sentido pode-se visualizar nesse processo de modernização um pacto agrário tecnicamente modernizante e socialmente conservador, que, em simultâneo à integração técnica da indústria com a agricultura, trouxe ainda para o seu abrigo as oligarquias rurais ligadas à grande propriedade territorial (p. 61).

Essa estratégia foi relativamente bem sucedida, em relação a seus próprios objetivos, enquanto a dinâmica do crescimento industrial do país foi capaz de absorver as enormes massas deslocadas do mercado de trabalho agrícola por essa modernização sem reforma agrária. No entanto, a partir de meados dos anos 1970 o modelo de crescimento baseado no endividamento externo começou a dar sinais de esgotamento, situação agravada com a segunda crise do petróleo e a elevação das taxas de juros norte-americanas em 1979. Com a queda nas taxas de crescimento do PIB e depois a recessão aberta, a continuidade da modernização agrícola resulta em milhões de trabalhadores rurais deslocados não para os empregos antes criados nas cidades, mas para o desemprego e a marginalização.

Por outro lado, os próprios instrumentos de intervenção do Estado para induzir a modernização da agricultura começaram a enfrentar problemas. Em especial a estratégia de financiamento subsidiado e com recursos praticamente ilimitados do período anterior, fortemente afetada pelos programas de ajuste adotados para fazer frente às crises do balanço de pagamentos que se sucederam a partir desse período. A adoção progressiva de controles sobre as contas públicas30, a correção monetária dos financiamentos agrícolas e a necessidade de maior transparência para responder às pressões democratizantes da transição em curso inviabilizaram definitivamente a continuidade, no período da “Nova República”, da estratégia que orientou a política agrícola dos governos militares. O fim da conta movimento do Banco do Brasil no Banco Central e do orçamento monetário, em meados dos anos 1980, também ajudara a colocar um ponto final às tentativas frustradas de retomar o padrão anterior (Leite, 2001).

30

Para uma análise do contexto das reformas institucionais da política fiscal dos anos 1980 e 1990, ver Loureiro e Abrucio (2004).

A política agrícola do período da modernização conservadora pode ser caracterizada como um conjunto de ações que vão muito além da grande intervenção do Estado no crédito rural. Seu objetivo era não apenas aumentar a produção agropecuária, mas consolidar um modelo fundiário e de produção rural integrado ao modelo de crescimento econômico, urbanização e industrialização então em implementação pelo regime militar.

O crédito rural subsidiado e os incentivos fiscais foram os principais instrumentos através dos quais os grandes produtores agropecuários foram “compensados” pelo viés anti- agrícola daquele modelo de desenvolvimento, tornando possível a integração da agricultura com a produção industrial de máquinas e equipamentos e de insumos químicos, por um lado, e com as indústrias processadoras de matérias-primas agrícolas, por outro, além da contínua sustentação política daqueles produtores ao regime militar até o seu final. Os grandes perdedores dessa fase de modernização conservadora foram os milhões de pequenos agricultores, posseiros, trabalhadores residentes nas fazendas (meeiros, parceiros, colonos etc.) expulsos do campo nesse período.