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A montagem do filme: pensando no planejamento da aula

3.4 A palavra e a imagem: narrativa e cinema

3.4.4 A montagem do filme: pensando no planejamento da aula

Algumas das reflexões do cineasta russo Serguei Eisenstein (1969) sobre a montagem são inspiradoras para a sala de aula; sua preocupação com a produção dos significados a partir da imagem, revela uma personalidade altamente comprometida com os aspectos didáticos do filme, seja em termos do resultado final – o filme enquanto totalidade conta uma história específica – seja em termos de método - envolver o espectador ativamente no jogo de interação entre as imagens.

O fato de não possuir formação específica em psicologia, não o impede de tecer alguns comentários sobre o mecanismo da formação das imagens mentais. Baseando-se em sua própria vivência, ele considera que ela ocorre em dois momentos distintos: no primeiro, sob a menção do nome (do objeto, do lugar) a memória reage lentamente, como se estivesse sendo ativada uma engrenagem com alguns elementos característicos do que foi evocado, mas não há, ainda, a formação da imagem. No segundo, a simples menção do nome provoca imediatamente o aparecimento da imagem em sua totalidade, levanta-se “todo um conjunto de seus elementos constitutivos, não mais como um encadeamento, mas como um todo único, como uma visão integral...” (ibid., p.79). O que resulta é a significação da imagem para a memória. O cineasta chega estabelecer uma espécie de lei que antecipa os esquemas narrativos estudados pela psicologia bem mais recentemente: “a parte penetra na consciência e na sensibilidade por intermédio do todo e por intermédio da imagem” (ibid., p. 70, grifos do autor).

Eisenstein afirma que enquanto nossa memória, por razões até de otimização, disponibiliza-nos o resultado obtido e não o processo que o originou, a obra de arte tem a obrigação de inverter essa situação, ela deve ser de tal forma dinâmica que o espectador fará parte do processo criativo do qual ela é o resultado. Vislumbrada nestes termos ela é um conjunto de ações que promovem “a formação das imagens na sensibilidade e na inteligência do espectador” (1969, p.80).

Quando cuidadosamente executada, a montagem contribui decisivamente para o estabelecimento de uma imagem que corresponda à síntese do tema. O diretor, que já possui essa imagem em sua mente, decompõe- na em algumas “representações fragmentárias”, estas são reorganizadas de tal maneira que o espectador, após a visualização da seqüência, capta a mesma imagem sintética pensada inicialmente pelo diretor. Eisenstein diz que é possível obter tanto uma imagem sintética para a obra toda, quanto para uma cena isolada, sendo que a maior virtude do método é a de não oferecer a imagem pronta, mas fazê-la nascer na percepção do espectador, por

conta de submetê-lo a um processo análogo ao que se submeteu o diretor. Não se trata, no entanto, de colocar o espectador à sombra do diretor, a intenção de Eisenstein (p.90-91) é clara:

(...) o espectador fica envolvido num ato de criação no decorrer do qual sua personalidade, longe de se escravizar à do autor, desabrocha, fundindo-se do mesmo modo que a personalidade do grande ator se funde com a personalidade do grande autor de teatro, na criação de um personagem clássico. Segundo sua personalidade, à sua maneira, a partir de sua experiência, do mais recôndito de sua imaginação, do tecido de suas associações, dos dados de seu caráter, de seu humor e de sua dependência social, cada espectador recria, efetivamente, a imagem segundo a orientação exata que lhe é fornecida pela indicação do autor e que o conduz infalivelmente ao conhecimento e à percepção afetiva do tema. É a imagem que o autor quis e criou, mas, ao mesmo tempo, recriada pela própria criação do espectador.

Como já o dissemos, acreditamos que os objetivos de Eisenstein, com a “montagem ideológica”, podem servir, genuinamente, de parâmetros para o professor. Se, no parágrafo acima, trocássemos as palavras espectador e autor, por aluno e professor, respectivamente, teríamos uma proposta para a sala de aula que contemplaria, simultaneamente, um profundo respeito pela pessoalidade do aluno e um grande compromisso com o seu desenvolvimento intelectual.

Se, por exemplo, pensarmos no Teorema de Pitágoras, tendo as reflexões de Eisenstein como pano de fundo, podemos nos propor algumas questões: qual é a imagem síntese do Teorema de Pitágoras para nós, professores? Por quais processos passamos ao concebê-la? Será que estamos construindo nossas aulas com a preocupação de conduzir nossos alunos por processos análogos? Como avaliar o grau de integridade (ou de fragmentação) das imagens apreendidas por eles? Em nossas aulas o foco está no resultado ou no processo que leva a ele?

Comentando um filme do cineasta espanhol Luis Buñuel, Roland Barthes (2004) atribui seu êxito global a uma ilusão de necessidade proveniente da clareza da história. Segundo ele, “tem-se a impressão de que Buñuel só teve que puxar o fio” (p.32). Talvez esteja aqui um mote para o professor, quem sabe o planejamento meticuloso das aulas produza histórias tão significativas que o aluno passe a sentir necessidade do conhecimento matemático.

CAPÍTULO 4 – NARRATIVAS NA ESCOLA: A AULA DE

MATEMÁTICA

Ouvindo as narrativas de um sábio, um homem notou que às vezes elas

eram interpretadas de um jeito, às vezes de outro. Para que contar histórias,

perguntou o homem, se a elas eram dados significados diferentes?

– Mas isso é o que dá valor a elas! – respondeu o narrador. – De que

valeria uma xícara da qual você pudesse beber apenas água e nunca leite? Ou um

prato de onde você só pudesse comer carne e nunca lentilhas? E lembre-se: tanto

a xícara como o prato têm capacidade limitada. O que podemos dizer então da

linguagem, que nos proporciona uma dieta infinitamente mais abundante, rica e

variada?

Por um momento ele ficou em silêncio. Depois continuou, mais

gentilmente:

– A verdadeira questão não é: “Qual o sentido dessa história? De

quantas formas posso compreendê-la? Ela pode limitar-se a um só significado?”

A questão é: “Essa pessoa a quem estou me dirigindo pode aproveitar o que vou

lhe contar? “

Jean-Claude Carrière – A linguagem secreta do cinema

Tendo nos ocupado, até aqui, em explicitar a importância das narrativas quando o que está em jogo é a construção da identidade pessoal, a compreensão da realidade, e a auto-compreensão, passaremos, agora, a nos dedicar à Matemática e ao seu ensino. Curiosamente, quando o assunto é Matemática, muitas pessoas são acometidas por uma sensação de irrealidade, por quê? Basicamente por não conseguirem se relacionar com o conteúdo da disciplina, mesmo tendo convivido anos com ela nos bancos escolares. Mas onde, de fato, reside essa dificuldade em criar vínculos com os conteúdos matemáticos? Bem, muitas respostas seriam possíveis e tentaremos encontrar algumas ao longo deste capítulo, mas a título de introdução, gostaríamos de fazer um pequeno comentário a respeito. Nós o destacamos em função de ele consistir um esboço da profundidade da questão e da estreita relação desta com a linguagem. Segundo Flusser (2004), a Ciência, strictu sensu, corresponde ao desenvolvimento de uma nova língua, por meio da qual as informações recebidas pelos sentidos se realizam através dos símbolos matemáticos. Pensar a Ciência seria pensar em símbolos matemáticos. Mas, como a linguagem científica, comparada com as linguagens naturais, é recente, nela fica mais evidente a independência da coisa em si, por isso, então, a sensação de irrealidade.

A explicação dessa sensação é a seguinte: a ciência, longe de ser válida para todas as línguas, é ela própria uma língua a ser traduzida para as demais a fim de realizar-se nelas. Mas, sendo uma língua recente, é ainda incompleta. O intelecto consegue, em teoria e prática, pensar em português ou inglês continuamente. Mas o intelecto não consegue pensar continuamente em “termos de ciência”, não consegue pensar sempre cientificamente. Ele está portanto, na necessidade de continuamente traduzir do “científico” para o português. Tendo de abandonar continuamente o território da língua da ciência, tendo que fazer continuamente o esforço da tradução, o intelecto percebe mais claramente a distância entre palavra e dado bruto e é tomado pela sensação de irrealidade. (Flusser, 2004, p.54).

A tradução da linguagem científica para o português, ou para qualquer outra língua natural, não pode ser feita “ao pé da letra”, palavra por palavra. O que se busca, em qualquer tradução, é apreender o significado como um todo, e seu êxito é proporcional à conversão efetiva dessa linguagem em pensamento narrativo. É dele que depende a transformação dos fragmentos e das frases isoladas em unidades de significação que o intelecto possa manejar. O pensamento narrativo atuaria como um mediador entre a linguagem matemática e a mente humana. Nesta atuação, depositamos nossas esperanças de conseguir superar os obstáculos de ordem semântica, que se interpõem entre o aluno e a aprendizagem da disciplina.

Neste capítulo tentaremos compreender o julgamento que as pessoas têm sobre a Matemática e os matemáticos, de que maneira ele afeta nossos alunos e como as narrativas poderiam modificá-lo. Também procuramos encontrar elementos que expliquem como e por quais motivos os conceitos matemáticos podem ser compreendidos por meio de histórias. Buscamos, igualmente, destacar a função das narrativas no contexto do conhecimento concebido como uma imensa teia de significações, além de concretizar, através de sugestões, seu uso nas aulas de Matemática.