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3.4 A palavra e a imagem: narrativa e cinema

3.4.2 A significação na imagem

Calvino (2001, p. 108) afirma que somos filhos da “civilização da imagem”, na verdade, desde muito cedo somos expostos a um fluxo imagético intenso e constante cuja fonte é, predominantemente, a televisão. Consumimos filmes, novelas, noticiários, propagandas ou o que quer que apareça na pequena tela. Parece que nascemos compreendendo a lógica das imagens, no entanto, temos dificuldades em visualizar mentalmente um sólido geométrico ou em criar uma imagem a partir de um enunciado verbal. Ao que tudo indica, se ela é dada, nós a compreendemos facilmente, por outro lado, se temos que criá-la sob um imperativo qualquer, as coisas já não são tão simples assim. De qualquer maneira, achamos importante tentar entender como um significado é criado a partir de uma imagem, quem sabe a compreensão desse processo nos aponte alguns indícios sobre as dificuldades de se imaginar algo específico.

Para Jacques Aumont (1995), uma imagem representa, quase sempre, um acontecimento estabelecido no tempo e no espaço. Vimos, com Metz, que o acontecimento é a unidade constitutiva da narrativa: toda sua análise sobre a narração, tem por base o fato de que uma narrativa é, essencialmente, um conjunto de acontecimentos. Desta forma, podemos então deduzir – e é o que faz Aumont – que uma imagem quase sempre carrega uma narrativa. No entanto, ele vislumbra um problema: se uma narrativa se constitui numa seqüência temporal de eventos, como pode ser inscrita numa imagem se esta não é temporalizada? Para refletir sobre a relação entre o tempo da imagem e o tempo da narrativa, ele tenta decifrar de que maneira uma imagem pode conter uma narrativa.

Em função disso, são analisados os estudos de André Gaudreault; este afirma que, de modo rigoroso, a narração se diferencia da “mostração”, uma vez que narrar é sempre dizer, independentemente do suporte “escritural, teatral, cinematográfico” que lhe serve de meio de expressão. A “mostração” está sempre no tempo presente, na ordem do simultâneo; em termos fílmicos, ela equivaleria ao plano isolado. Já a verdadeira narração ocorreria no estabelecimento da seqüência dos planos, portanto, na montagem. Aumont usa dessa distinção para estabelecer, então, duas formas possíveis de narratividade em imagens: uma delas a partir da imagem isolada, a outra, a partir da sucessão das imagens. Embora sua hipótese pareça, inicialmente, inconsistente, ele se justifica afirmando que Gaudreault admite, com sensatez, que mesmo um plano isolado contém uma narrativa. Para esclarecer é mencionado um quadro do artista Hans Memling, no qual Jesus Cristo é representado diversas vezes

na tela, em situações diferentes, que correspondem às estações da via sacra. Essas imagens (únicas) são episódios de uma mesma história. Ele destaca a diferença entre seqüencialidade e mobilidade, alertando para o fato de que “há imagens seqüenciais embora imóveis e obras móveis que não são verdadeiramente seqüenciais” (ibid., p. 246).

A paixão de Cristo – Hans Memling

Toda essa discussão o leva a concluir que a questão do tempo da narrativa está estreitamente relacionada à organização da seqüência dos acontecimentos que a constituem: “a narrativa (e até este embrião de narrativa que é o acontecimento) se inscreve menos no tempo do que na seqüência. É certo que há duração na narrativa, mas esta se define também pela ordem de sucessão dos acontecimentos” (1995, p. 246, grifo do autor). Deste modo, a questão do significado na imagem, principalmente no que o autor chama de “imagem fixa”, relaciona-se diretamente à sua capacidade de narrar, e isso ocorre, fundamentalmente, quando nela existe a ordenação dos acontecimentos representados.

Todavia, a narrativa implica também uma discussão sobre o espaço. Aumont encontra suporte para suas considerações nos trabalhos de Arnheim; de acordo com este autor, sempre que a percepção de um acontecimento requerer um tipo de apreensão totalizadora, de conjunto, este acontecimento tem dimensão espacial. A exploração de uma caverna é um bom exemplo disso, embora ela ocorra ao longo do tempo, o acontecimento resultante da ação é do tipo espacial. Inversamente, o espaço se apresenta como pano de fundo para a ocorrência dos acontecimentos, podemos mesmo dizer que o espaço existe, naturalmente, para abrigá-los. Como os acontecimentos constituem as narrativas, é possível inferirmos a relevância que o espaço adquire: “a narrativa inscreve-se tanto no espaço quanto no tempo, por conseguinte, toda imagem narrativa, e até toda imagem representativa, é marcada pelos códigos da narratividade...” (ibid., p.247).

Imagem, espaço, tempo e narrativa: estes elementos estão tão intricados, que é quase impossível fazer uma análise isolada de um deles, qualquer que seja o ponto de partida, qualquer que seja a perspectiva escolhida, certamente vislumbraremos os quatro objetos. Tendo consciência disso, Aumont reafirma, após considerar o espaço, que o problema do sentido da imagem é um problema de ordem narrativa, uma vez que o tempo e o espaço representados na imagem são o tempo e o espaço diegéticos19. A criação de uma imagem é orientada por

uma intenção abrangente, de caráter integrador, cuja natureza é narrativa. Na verdade o que se procura fazer é traduzir em imagem um “fragmento de diegese”.

A narrativa parece ter um apelo tão forte na produção dos significados que, em função dela a própria imagem passa para um segundo plano. É o que diz, de certa forma, Metz (1972, cf. p.61-63) quando analisa a narratividade dos filmes: num certo momento da história do cinema, eles se tornaram de tal forma narrativos (graças a uma espécie de “narratividade no corpo”), que as imagens chegaram a ser obscurecidas pela trama. Uma possível leitura transversal, no nível da exploração visual dos planos, cedeu lugar à leitura longitudinal que procura sempre por aquilo que está por vir. A seqüência das imagens, acabou por provocar a supressão dos planos. Parece que, perante duas imagens em seqüência, não temos outra opção, senão relacioná-las de algum modo, Metz afirma que nessa situação há uma corrente de indução inevitável entre elas – basta lembrarmos das experiências de Kulechov20. “Passar de uma imagem a duas imagens, é passar da imagem à linguagem” (ibid., p.63).

Marcel Martin (1990), por sua vez, acrescenta à questão do sentido da imagem a dimensão afetiva: o que a maior parte dos filmes nos proporciona é uma realidade reconstruída através da visão artística do diretor, que dispõe da câmera, da montagem, dos elementos sonoros, dentre outros, para intensificar a força da imagem. O espectador é envolvido pela atmosfera subjetiva assim criada, reagindo afetivamente: “A imagem encontra-se, pois afetada de um coeficiente sensorial e emotivo que nasce das próprias condições com que ela transcreve a realidade. Sob esse aspecto, apela ao juízo de valor e não o de fato; na verdade, ela é algo mais que uma simples representação” (ibid., p.26).

Recorrendo inevitavelmente à nossa subjetividade, as imagens cinematográficas são passíveis de ambigüidades quanto à produção de sentido, existe nelas uma “polivalência significativa”, as interpretações certamente serão diferentes para diferentes sujeitos, no entanto, isso pode ser minimizado com a explicitação do contexto constitutivo do filme, saber quem é o seu diretor, qual o tipo de discurso veiculado por ele, ajuda na interpretação, além disso o filme, como um todo, possui um núcleo significativo mínimo, ao menos no que diz respeito à suas referências de primeiro nível.