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Porque a casa é o canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo (BACHELARD, 1988, p. 24).

Considerando que a concepção do espaço, dentre ele a casa e o lote familiar, se dá de acordo com o seu modo de produção, sendo assim o resultado das suas respectivas forças produtivas, a definição do mínimo material necessário para o abrigo me faz indagar, portanto, o real sentido do que é de fato necessário para a sua produção.

Conforme Santos (1996), “[...] uma dada situação não pode ser plenamente apreendida se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixamos de considerar as relações intersubjetivas que a caracterizam”. Com isso, a análise da produção de vida nos assentamentos depende da concepção do modo de vida das pessoas que ali vivem.

Uma das características do campesinato é, justamente, o seu modo de produção, ou seja, a autonomia da unidade produtiva presente na obtenção e produção direta dos meios de vida, dentre eles a casa. O aspecto do trabalho autônomo como meio para obtenção da vida vai demarcar as características das disposições físicas da casa.

O que define os mínimos vitais de morada da unidade camponesa, obviamente, não são os mínimos de habitabilidade da sociedade urbana, ditados pelos códigos de posturas municipais e pelos limites de financiamentos de programas habitacionais.

Com isso, a concepção da morada rural deve aqui ser salientada, diferente da casa urbana que é pautada principalmente pela fachada que “[...] mede o estatuto e posição social” (LEFEBVRE, 1974).

Conforme Bettanini (1982, p. 52), "A divisão da cidade em bairros, realizada no espaço urbano, age na direção de pré-constituir os estratos sociais da população habitante". Assim é também a diferenciação dos graus que define as condições de moradia.

A racionalização do espaço na cidade fragmenta e parcela o morar do homem moderno. De lá público, de cá privado, a casa é assim circunscrita no seu lote específico, que é privado. Paredes e muros representam o que se pode chamar de "descontinuidade" territorial. A localização das portas e acessos é que delimita os domínios dos fluxos de circulação, bem como a hierarquia desses fluxos. Onde é permissivo e onde é restritivo.

Será a casa lugar privado por excelência? Como se articula essa relação de domínios no campo do que é público e privado? Como essas categorias (interior/exterior, público/privado, intimidade/mundo) se territorializam? Para onde a vida cotidiana da família camponesa se expande além das paredes da casa?

Analisada sob diversos horizontes teóricos e categorias de conhecimento, a casa é um símbolo de infinitas especulações. Sob o olhar da arquitetura, talvez seja a área que mais concentre essas reflexões. No entanto, essa investigação, por vezes se limita em mensurações de valores e dimensões das intuições euclidianas: retas, ângulos, medidas, quadrados, círculos, ou seja, as especulações da geometria precisa da forma e seus limites rígidos, o que é dentro e o que é fora, ou o que é público e o que é privado.

Quando se trata das ditas “moradias populares” ou de interesse social, esta investigação, para além da geometria da forma que também é um discurso presente nesse debate, se estende às políticas, ou melhor dizendo, aos programas e créditos que a viabilizam com o intuito de uma abordagem em maior parte quantitativa dos problemas habitacionais.

No entanto, para este capítulo, tem-se o esforço de adentrar na intimidade do que chamamos de morada rural, na busca de compreender como se constitui o espaço construído pelas pessoas que nele vivem e habitam, e como as famílias camponesas agora assentadas produzem o seu território em assentamentos de Reforma Agrária.

Pensar o significado da implantação dos usos no espaço apareceu como um grande desafio da pesquisa. O que a princípio parece ser uma construção aleatória, se observada mais a fundo, remete a uma rede de significados que denotam a clara necessidade

do homem de se reconhecer no lugar, por isso a sua relação com as coisas e pertences, a organização dos objetos tanto na casa como no lote.

Se esse mínimo por vezes aparece na utilização do material empregado na casa ou mesmo no mínimo de área para abrigar a família, outras vezes é um mínimo que, olhando por outro viés, pode ser o máximo em relação à utilização qualitativa dos espaços, um mínimo que extrapola as paredes da casa e alcança o limite máximo do lote, um mínimo que permite que o valor enquanto uso se espraie ao máximo no espaço exterior.

A produção coletiva do espaço e as suas características particulares, culturais e estéticas são feitas segundo a ordem e necessidade de uso da terra para moradia e para o trabalho.

No campo, o sentido de morar não se circunscreve à casa propriamente dita, o espaço dominado e preconcebido do mundo moderno. Grande parte das atividades rurais acontece no exterior dessa mínima unidade material que é a casa. É no exterior que parte do trabalho da família se espacializa.

O ato de morar extrapola as paredes que delineiam os poucos mais de 30m² de área. Faz parte dessa estrutura saliente os arredores, o quintal.

A identificação do vivido – a casa e o seu entorno

Foto 4 - Vista da casa e roça de subsistência.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004. Foto 5 - Vista do pasto a partir do interior da casa. Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

A planta da casa expressa a materialização das relações sociais dos indivíduos que nela habitam. Elas se distinguem umas das outras tanto com relação aos materiais empregados, como tijolo, adobe, madeira, pau-a-pique, tipo de coberturas, quanto às suas variações internas, ou seja, o espaçamento dos cômodos, a abertura das janelas (o que se

avista), a localização de portas e acessos, e ainda quanto à sua implantação no lote, tendo em vista a articulação dos espaços internos com o externo, o que é frente, o que é fundo, onde se localiza a cozinha em relação à unidade de produção.

Podemos chamar de reciprocidade da forma - com suas características físicas da matéria - e do uso, quando o espaço é concebido e apreendido através de hábitos decorrentes do modo de produção que os caracteriza. Nesse caso, a forma não apenas determina o uso e a experiência, mas também é igualmente determinada pelos dois, à medida que é vivida.

A identificação do vivido – a casa cuidadosamente construída com o uso de materiais locais.

Foto 6 - Casa de Cidão.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 7 - Casa de Pingo.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.