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Acho que o quintal onde a gente brincou é maior que a cidade. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que somos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade [...]

(BARROS, 2003)

A casa no campo é a apropriação material e simbólica do espaço. O valor social que se dá ao objeto, ou ao que representa a casa, tem aí, além da funcionalidade do cotidiano territorializada no habitat, significados afetivo e simbólico que certamente representam uma série de valores da família camponesa, construídos a partir da sua trajetória histórica, dando sentido da tradição para a sua prática.

Vê-se a morada como um espaço qualitativo, como objeto com uso e valor cultural, com símbolos que são apropriados através do tempo.

A casa-quintal, então, é definida enquanto espaço de uso e de produção de valor de uso, ou seja, como uma construção material e simbólica do espaço onde sua estrutura de apropriação e consolidação física se fixa conforme a organização sociocultural que a elabora.

Partirei do externo. O quintal é a extensão de uma série de atividades não circunscritas no corpo da casa. A horta, as árvores, o pomar, a criação, o plantio de subsistência e ainda as outras unidades materiais como o banheiro, a área de lavagem de roupa, o poço, o paiol, o galinheiro, em alguns casos a cozinha com o fogão a lenha, a casa de farinha... O quintal se consolida como unidade de produção, portanto, de reprodução da família.

Percebe-se, no desenho na página seguinte, a espacialização das relações de produção no lote familiar. A casa-quintal é, ao mesmo tempo, chão de morada e terra de plantio. Externa a ela, tem a área de cultivo de subsistência, que garantirá a reprodução da família, as árvores, a horta, as demais unidades físicas, o banheiro, o galinheiro, a casa de outros membros da família e ainda os diversos atalhos que ligam o lote a outras imediações do sítio.

Delimitação dos usos da casa-quintal

Foto 8 - Vista frontal do lote do Camilo. Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

A representação do vivido – desenho do lote familiar

Figura 1 - Lote do Camilo (ver localização no mapa da agrovila, capítulo 4). Desenho feito pelo auxiliar Giovani em uma das atividades de formação dos jovens para o processo de construção das casas.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

[Calixto]: a minha casa é um barraco, de costaneira..., a água é mina, banheiro é fora, é no mato... (SHIMBO, 2002; 2003)19.

Vinculada ou não ao sentido de “precariedade”, como o próprio assentado descreve, a casa é um “barraco”. Esse mínimo de habitalidade que aparece na sua fala logo em seguida, representa também o que pode-se identificar como o máximo de uso do espaço exterior, ou seja, quais e como as relações se espacializam no exterior das paredes, "a água é de mina e o banheiro é no mato". Se atentarmos ainda ao desenho e à imagem acima,

19 Relato oral de um assentado, v. 1, p. 18.

Casa de parentes Roça Casa antiga Casa Atual Banheiro Árvores Horta Atalhos

reconheceremos o atalho que liga a casa da filha mais velha ao fundo do lote, o local de brincadeira das crianças, a roça, a extensa área de secar a roupa da família. Com um olhar mais atento, esse mínimo também representa um máximo de zelo com relação à fachada

florida da casa, enfeitando e colorindo o que ele mesmo chama de barraco.

As instalações sanitárias, em geral, aparecem descoladas do corpo da casa,

devido ao fato de que grande parte dos banheiros20 é em sistema de fossa. O banheiro ou

"casinha", quase sempre no exterior da casa, muito raro aparece conectado à casa. Isso acontece quando sua construção é de alvenaria. No entanto, mesmo sendo dessa forma, o banheiro aparece como um “puxadinho”, na periferia das paredes que circunscrevem a casa. Unidades materiais para além do corpo da casa

Foto 9 – "Casinha" ou banheiro externo.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2003. Foto 10 – Banheiro acoplado ao corpo da casa. Fonte: Projeto Inova Rural, 2003.

O abastecimento de água se dá, na maioria das vezes, por meio de poço, com ou sem bomba, mas não são todos que o possuem em seu lote, necessitando pegar água no vizinho. A qualidade ambiental, no que diz respeito à saúde da família, deve ser extremamente considerada, à medida que os lotes nos assentamentos se aglutinam, sendo necessário pensar como serão dispostos os serviços de abastecimento de água e recolhimento do esgoto. Percebe-se na área estudada que nem sempre esses poços estão distanciados de forma correta, tanto em relação à casa, quanto em relação à fossa, sendo assim grande alvo de doenças infecto-contagiosas, conforme relato do médico do posto de saúde, localizado na agrovila 1.

20 Conforme definição do IBGE (2000) apud Fundação ... (2005), fica entendido como sanitário "[...] o local

limitado por paredes de qualquer material, coberto ou não por um teto, que possui aparelho sanitário ou buraco para dejeções".

A área de lavagem de roupa ganha lugar privilegiado, sendo na maior parte das vezes na parte externa da casa, numa área anexa ou debaixo da sombra de uma árvore.

Faz parte desse exterior também a cozinha. Assim como o banheiro, é raro a cozinha estar no corpo da casa. Tamanha é a importância dada ao ato de comer que é possível notar, em algumas casas, o desmembramento da cozinha da estrutura física da casa. Quando a cozinha está no mesmo corpo da casa, geralmente há uma divisão de paredes ou um desnível no piso.

Espaço para abrigar o fogão a lenha, a cozinha se consolida como lugar de produção e também de consumo. É o lugar onde os produtos trazidos da lavoura serão preparados para alimentar a família, por isso seu acesso precisa ser diretamente ligado ao exterior, onde se localizam também os fluxos para a horta e o pomar.

A identificação do vivido – demais unidades de uso

Fotos 11 - Área de serviço ao ar livre.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004. Fotos 12 - Área de serviço na parte externa da casa. Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 13 - Poço e prosa no quintal.

Foto 15 - Cozinha de alvenaria acoplada ao corpo principal da casa.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 16 - Espaço interno da cozinha, parede de costaneira.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 17 - Cozinha com fogão a lenha adaptada na varanda da casa.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 18 - Cozinha ao fundo desmembrada do corpo principal da casa.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2005.

Assim como a vegetação que embeleza a fachada, a cozinha contém uma série de significados para a família camponesa. É onde a mulher consegue exercer maior autonomia sobre seus afazeres, seja no cuidado com a organização dos utensílios seja na criatividade de inventar novos apetrechos domésticos. O zelo reaparece então enquanto presença feminina na estrutura interna da família.

A distribuição dos objetos no interior da casa mostra o seu caráter utilitário em relação à localização, por exemplo, das panelas, das ferramentas, e ao mesmo tempo em relação à “decoração”: a mesma panela usada para cozinhar é cuidadosamente areada e posicionada sobre a toalha de renda na prateleira, sendo, portanto, utilitária e decorativa, ilustrando o papel da mulher dentro da casa.

Organização dos objetos na casa

Foto 19 - Detalhe da fachada. Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 20 - Zelo com os utensílios domésticos.

Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Foto 21 – Criatividade na confecção de novos objetos. Fonte: Projeto Inova Rural, 2004.

Esse mínimo poderia ser entendido como a manifestação de uma identidade própria e, portanto, de uma estética diferenciada? Que valores e sutilezas se escondem nesse mínimo de habitação constituído pela simplicidade da casa camponesa?

Quantos abrigos e valores difusos existem dentro desse mínimo que é a casa, mas ao mesmo tempo é o máximo de intimidade e recolhimento da família? É o que Bachelard chama de a “casa dos homens” e ainda “casa das coisas: gavetas, cofres e armários”, a infinidade de ninhos existentes na concepção da moradia.

“Os valores de abrigo são tão simples, tão profundamente arraigados no inconsciente, que vamos encontrá-los mais facilmente por uma simples evocação do que uma descrição minuciosa” (BACHELARD, 1988, p. 32).

O “canto” é a intimidade, é a particular relação do indivíduo com o ambiente específico que lhe pertence, onde se estabelecem domínios por ele determinados, onde se espacializam seus espaços-atividades, onde a vida do cotidiano se expande. Discorrerei mais sobre esses valores subjetivos no capítulo 4.