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A moral heterônoma, as relações de coação e o respeito unilateral

2.1. A MORAL E O DESENVOLVIMENTO DA AUTONOMIA

2.1.3. As duas morais: os tipos de relações e de respeito

2.1.3.1. A moral heterônoma, as relações de coação e o respeito unilateral

Heteronomia significa ser governado por outros, fora de nós; e significa que quando não houver outros a nos mandar, ameaçar, punir, podemos ficar “sem governo” e assim fazermos tudo o que nos der na telha!

Piaget (1994) caracteriza a moral heterônoma como aquela baseada na autoridade externa, normalmente exercida pelo adulto. Explica que o comportamento que a criança estabelece quando aceita a norma adulta está associado à obediência. Ela obedecerá uma regra ou norma quando esta for demandada por um adulto por quem tem alguma admiração e/ ou porque possui medo. O medo, muitas vezes, é provocado pelo próprio adulto que, para fazer com que sua autoridade seja efetiva, se utiliza de ameaças e sanções que visam somente a obediência imediata da regra. Assim, sobre o respeito unilateral, Freitas (2002) traz o seguinte:

[...] Muitos confundem esse tipo de respeito, que Piaget (1992) denominou “unilateral”, com desrespeito e, em função disso, atribuem-lhe um valor negativo. Na verdade ele chamou esse tipo de respeito de unilateral, porque a criança não dá ordens e nem prescreve normas de conduta ao adulto, e caso isso acontecesse, ele não se sentiria obrigado por elas. Evidentemente, o adulto também respeita a criança, mas em outro sentido: não lhe causa danos, considera seus desejos e necessidades etc (p. 18).

O pensamento heterônomo, quando aceita uma regra, está ligado diretamente ao conteúdo expresso pela mesma e considera uma falta grave não cumpri-la. É a “regra pela regra” e seu valor é influenciado por quem a demanda, não são analisadas as circunstâncias, o contexto para avaliar seu uso e suas conseqüências. Tal comportamento é explicado pelo realismo moral. Segundo La Taille (1992):

Este realismo tem três características: 1) é considerado bom todo ato que revela uma obediência às regras ou aos adultos que as impuseram; 2) é ao pé da letra, e não no seu espírito, que as regras são interpretadas; 3) há uma compreensão objetiva da responsabilidade, ou seja, julga-se pelas conseqüências dos atos e não pela intencionalidade daqueles que agiram (p. 51).

O mesmo autor coloca ainda: “O que é heteronomia? Em linhas gerais, é uma moral da obediência, uma moral, portanto, baseada no respeito pelos mandamentos da autoridade, uma moral do respeito unilateral. Mas qual o conteúdo dessa moral? Ora, aquele que a autoridade (os pais e professores na maioria dos casos) impõe” (p. 29) E a diferencia da moral autônoma: “O que é a moral autônoma? É a moral que se baseia sobre a igualdade, o respeito mútuo, o reconhecimento da dignidade do ser humano, a justiça baseada na eqüidade. Logo, e isso é da maior importância, a moral autônoma tem um conteúdo que a define” (LA TAILLE, 2002, p. 29).

A obediência heterônoma está associada à autoridade de maneiras diferentes: através do autoritarismo, que estabelece uma obediência de forma hierárquica, e da persuasão, que

não utiliza a hierarquia. O poder pela coação é diferente da autoridade e deve aparecer como último recurso (LA TAILLE, 1999).

É importante destacar que o adulto precisa ter para si o quanto uma regra é válida, ou seja, essencial para a proteção e bem estar da criança. Ao prender-se em regras que não possuem cunho educativo, mas, sim, que possuem o intuito de apenas afirmar a autoridade, o adulto expõe sua autoridade a um ponto que nem mesmo poderá argumentar de maneira coerente. Regras que são justificadas apenas pelo “sim porque sim” ou “não porque não” podem diminuir a credibilidade da criança com relação ao respeito à autoridade.

A heteronomia é a etapa do desenvolvimento moral em que são introduzidas normas sociais à criança. Essas normas (ou regras) são apresentadas pelo adulto e atuam como parâmetros para a criança agir moralmente. O valor de uma regra terá relação direta com a pessoa, ou seja, com o adulto que a apresentou. Com o decorrer das relações, se incentivada a reflexão, a criança passará a considerar as regras que conhece e revalidá-las. Entenderá que as regras são arbitrárias e passíveis de negociação. A heteronomia precisa ser bem trabalhada, ou seja, o adulto precisa saber introduzir as regras à criança, argumentando-as através de sua utilidade, pois, como serão referências iniciais para o agir moral, precisam estar amparadas principalmente pela argumentação. O uso da coação, embora muitas vezes seja necessário para fazer com que a criança cumpra uma regra considerada importante, precisa estar acompanhado de muita argumentação e sentimento de cuidado e não por um simples “capricho” da autoridade. O uso exagerado da coação pode provocar um comportamento submisso ou revoltado, deixando de possibilitar o desenvolvimento da autonomia moral.

Segundo La Taille (1992):

Verifica-se que o indivíduo coagido tem pouca participação racional na produção, conservação e divulgação das idéias. No caso da produção, dela simplesmente não participa, contentando-se em aceitar o produto final como válido. Uma vez aceito esse produto, o indivíduo coagido o conserva, limitando-se a repetir o que lhe impuseram. E é desta mesma forma que ele acaba por se tornar divulgador dessas idéias: ensina-as a outros da mesma forma coercitiva como as recebeu. Em uma palavra: ele passa a impor o que – num primeiro momento – lhe impuseram” (p. 19).

Outro elemento que aparece junto ao uso da coação é o emprego de sanções expiatórias pelo adulto. Esse tipo de sanção se detém somente ao descumprimento de uma regra. Embora tenha a tentativa de fazer justiça, não leva em consideração as circunstâncias em que a transgressão da regra aconteceu, porque valoriza, apenas, que uma determinada regra foi descumprida. Faz entender que a regra vale por si mesma e não que serve de parâmetro para as relações. O uso de sanções expiatórias colabora para que a criança

permaneça considerando o realismo moral e faz com que desenvolva uma responsabilidade objetiva, que possui relação com o conteúdo da regra e não com a intenção de transgredi-la. Essa atitude está relacionada com o desenvolvimento cognitivo da criança. Conforme Piaget (1998): “[...] Na medida em que a moralidade é adquirida de fora, ela permanece heterônoma e produz uma espécie de legalismo ou de ‘realismo moral’, no qual os atos não são avaliados em função das intenções, mas de sua concordância externa com a regra” (p. 117).

Coerente a essa afirmação, Fávero (2005) coloca o seguinte:

A consciência heterônoma não avalia o ato em si e em suas circunstâncias, mas a transgressão de uma regra. Assim, o erro não estaria em enganar um colega, mas em desobedecer a uma regra. As atitudes, os motivos, as intenções não são levados em conta no julgamento e, sim, o desrespeito à norma estabelecida (p. 15-16).

Pode-se dizer que a qualidade do desenvolvimento moral heterônomo depende da qualidade da autoridade exercida pelo adulto. Como coloca Macedo (2005): “[...] Multas, repreensões, advertências ou punições podem funcionar, pelo menos em curto prazo, mas pouco a pouco estragam aquilo que é a base de toda a disciplina: a entrega de alguém à alguma coisa ou, mais do que isso, a uma outra pessoa (ou idéia) que lhe serve de referência e sentido” (p. 146). Nesse sentido a autoridade precisa ser cautelosa e agir permeada de argumentação e possibilitar, na medida do possível, a reflexão da criança sobre as intenções em seus atos.

Não existe a possibilidade de um pensamento moral tornar-se autônomo sem ter sido heterônomo e, além disso, em determinadas situações agirá de forma heterônoma, ainda que o pensamento tenha indícios de autonomia moral.