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Capítulo 1 – O hábito na conduta

1.2 A mudança de uma definição tradicional

Após firmar a tese de que os hábitos são adquiridos socialmente, John Dewey ocupa- se em esclarecer qual é o sentido dessa aquisição social e cultural. O autor apresenta várias definições de hábito, no intuito de expor a seu auditório uma significação diferente da usual, rejeitando a idéia presente no campo da psicologia e da filosofia que diz ser a repetição de ações específicas a verdadeira essência desse importante elemento do psiquismo.12

Essa discussão é, de fato, bastante antiga. Já em Aristóteles (2002, p. 66) há uma concepção de hábito como algo adquirido pela prática constante, pelo treinamento, pois é preciso praticar o hábito da virtude, tal como praticamos as artes: os “homens se tornam

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Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 504), a definição é um recurso da argumentação que promove uma dissociação nocional, sendo utilizada sempre que se “pretende fornecer o sentido verdadeiro, o sentido real da noção, oposto ao seu uso habitual ou aparente”.

construtores construindo casas e se tornam tocadores de lira tocando lira”; para formar homens com hábitos virtuosos, “é preciso que haja educação e treinamento apropriados” (ARISTÓTELES, 2002, p. 284).

Na modernidade, confirma-se a idéia de hábito como repetição, como se pode ver em Hume, para quem o hábito é um “princípio da natureza humana” que permite que os indivíduos adquiram crenças causais sobre os objetos de sua experiência (DUTRA, 2005, p. 88). Mais tarde, William James (1899) considerou que os bons hábitos podem tornar-se arraigados e estáveis pela repetição; o treinamento pode inibir ou reprimir tendências naturais impulsivas, tornando automáticas e habituais as ações úteis e mais desejáveis.

Para Dewey (2002, p. 42) é preciso entender os hábitos em um “sentido mais amplo que o usual”, ou seja, “devemos protestar contra a tendência presente na literatura psicológica que limita seu significado à repetição” e que liga a “identidade dos hábitos à rotina”. Das várias definições lembradas pelo autor, duas merecem destaque: o hábito é adquirido, sua essência significando “uma predisposição adquirida” (DEWEY, 2002, p. 42), e o “hábito é arte” (DEWEY, 2002, p. 15), sendo a arte uma predicação que busca evitar a ligação dos hábitos com a mera rotina e repetição.

Dewey (2002, p. 40) afirma que a gênese do hábito expressa um “tipo de atividade humana que é influenciada por atividades prévias e, sendo assim, é adquirido”. Entretanto, diz o filósofo, posicionar os hábitos como adquiridos e influenciados por atividades anteriores não expressa a mera repetição e o treino, os quais, devido a princípios de associação, levariam à atividade automática e mecânica da mente.

A habilidade de um acrobata, por exemplo, necessita de uma técnica que envolve a prática constante. Seria um grande erro, no entanto, considerar que sua virtuosidade depende apenas do treino ou, ainda, que ele primeiramente adquire a habilidade mecânica, realizando exercícios de repetição independentemente do pensamento e da criação, e que, em momento posterior, magicamente, “esse frio mecanismo é apossado pelo sentimento e pela imaginação,

tornando-se um instrumento flexível na mente” (DEWEY, 2002, p. 71). A habilidade do acrobata não é adquirida por reprodução, nem meramente por meio do treino mecânico, pois, a fim de adquirir destreza e virtuosidade, necessita de um espaço constante para a manifestação criativa.

Ao dizer que o hábito é uma habilidade adquirida, John Dewey (2002, p. 15) também afirma que “hábito é arte”. Essa é uma importante e inovadora mudança feita pelo filósofo na definição de hábito. Human nature and conduct não apresenta diretamente o sentido da palavra “arte”, mas é possível compreender o seu significado considerando que o pensamento de Dewey opera basicamente por meio dos seguintes pares filosóficos, que se opõem de maneira dualística e extremada.13

Repetição Reflexão

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Reflexão Repetição

A noção deweyana de hábito como arte visa eliminar tal polarização em extremos dicotomizados, pois o hábito, na qualidade de expressão criativa, não é apenas reflexão, nem é apenas repetição. Tomando como ponto de partida as antinomias contidas nos pares filosóficos, cuja regra extremada Dewey rejeita, pode-se apreender no discurso do autor outros pares, cujos termos II são valorizados:

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Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 479), os pares filosóficos podem se apresentar como pares antitéticos, “nos quais o segundo termo é o inverso do primeiro”, e pares classificatórios, “que são desprovidos de qualquer intenção argumentativa”, destinados unicamente a “subdividir um conjunto em partes distintas (o passado em épocas, uma superfície em regiões, um gênero em espécies)”. Dewey usa como técnica argumentativa os pares antitéticos, promovendo uma dissociação de noções, o que, segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 473), exprime uma visão do mundo, estabelece hierarquias e critérios. A dissociação nocional tem como protótipo o par “aparência – realidade”, esquematicamente “termo I – termo II”, em que o primeiro “corresponde ao aparente, ao que se apresenta em primeiro lugar, ao atual, ao imediato, ao que é conhecido diretamente”, ao passo que o segundo “fornece um critério, uma norma que permite distinguir o que é válido do que não é, entre os aspectos do termo I”, representando, assim, uma construção que possibilita hierarquizar e qualificar de ilusórios, errôneos e aparentes os aspectos do termo I que não são conformes à “regra fornecida pelo real”.

Passivo Mecânico Produto Compartimentado ______________ _______________ _____________ __________________________ Ativo Inteligente Processo Contínuo

Para firmar o par Passivo–Ativo, Dewey discute a característica volitiva dos hábitos, analisando o que faz dos hábitos meios ativos. Também explica porque os hábitos não podem ser considerados simplesmente descargas passivas que ocorrem no sistema nervoso; não podem ser compreendidos como disposições fixadas pela repetição, a ponto de serem classificados como ações reflexas, em que para cada tipo de impressão temos uma resposta pronta e automática.

Segundo o autor (2002, p. 41), o hábito é “projetivo, dinâmico em qualidade, pronto para a manifestação pública”. A força dinâmica dos hábitos, considerados como “meios ativos, meios que projetam a si mesmos enquanto modos de ação vigorosos e dominantes”, faz com que “todos os hábitos sejam demandas por certos tipos de atividade”. A característica ativa, projetiva e dinâmica dos hábitos existe porque “eles significam volições”; formam nossos desejos pessoais, nos equipam com capacidades de trabalho e “orientam nossos pensamentos, determinando quais devem evidenciar-se energicamente e quais devem permanecer obscuros” (DEWEY, 2002, p. 25).

Os hábitos não são ferramentas passivas que, uma vez aprendidas e treinadas, esperam, como que em gavetas ou caixas, para serem chamadas à ação por meio de um comando externo. Para fundamentar a noção de hábito como um meio, como um instrumento ativo que atua cooperativamente e interativamente com outros elementos, Dewey lança mão de um exemplo.

Se observarmos bem uma caixa de ferramentas, podemos distinguir o que pode ser considerado material ou ferramenta e o que podem ser meios propriamente ditos; pregos e pedaços de madeira não são, rigorosamente dizendo, meios, mas constituem materiais. Até mesmo o martelo e a serra só podem ser considerados meios quando usados em alguma

atividade concreta; caso contrário podem ser chamados somente de meios em potência. O martelo, a serra, o prego e o pedaço de madeira só podem ser entendidos como meios quando são usados em associação com os olhos, os braços e as mãos em alguma ação específica.

Da mesma forma, os hábitos só são considerados meios quando em atividade, quando decorrentes de cooperação e interação entre o conjunto das aptidões biológicas (como os olhos, mãos, pernas, órgãos internos etc.), a formação psíquica (uma vez que a mente não é vazia, tendo vivenciado experiências anteriores) e as condições objetivas possibilitadas pelo contexto social (os materiais, as ferramentas, as oportunidades, as possibilidades concretas oferecidas). Isso quer dizer que os hábitos entram em ação, ou podem ser modificados, somente no âmbito dessa cooperação de energias (DEWEY, 2002, p. 25-26).

Essa idéia de cooperação ou co-ordenação entre os materiais do mundo externo e os órgãos mentais, compreendendo um psiquismo que não é neutro, aparece em outro trabalho de Dewey (1998c), datado de 1896, “The reflex arc concept in Psychology”, no qual o autor combate a visão elementista e associacionista de que uma sensação “a”, representando o objeto de uma percepção isolada, resulta em um movimento “A”, dentro de um processo que liga um estímulo sensorial, com valor e existência em si mesmo, a uma ação final. Tal visão supõe que a repetição dessa série forma uma ação habitual; sempre que houver certo estímulo, este desencadeará uma determinada sensação, que ocasionará, de modo reflexo, uma resposta.

Em Human nature and conduct, observa-se que a ênfase na cooperação entre as condições do mundo físico e os elementos da vida mental, na organização dos hábitos, é relevante devido à pouca atenção que muitas vezes se dá a isso, e também devido ao reconhecimento de que tal interação cooperativa só é assegurada mediante persistente e rigoroso estudo das condições envolvidas. Segundo a concepção deweyana, há duas atitudes passíveis de crítica: não considerar que o meio formado pelos hábitos se faz presente no psiquismo de forma ativa, e não perceber como as condições externas podem atuar em tal meio reformulando as ideações, as vontades, os desejos e os conhecimentos. Tais atitudes

retrocedem aos tempos em que a “fé na mágica teve um forte papel na história da humanidade” (DEWEY, 2002, p. 26).

Dewey (2002, p. 26) ainda ressalta que essa crença mágica parece não ter desaparecido, mesmo quando as formas coercitivas de práticas supersticiosas foram deixadas de lado, pois “o princípio da magia é encontrado sempre que se espera alcançar resultados sem um inteligente controle dos meios”; o mesmo “ocorre quando se supõe que os meios podem existir e, não obstante, permanecer inertes e inoperantes”.

No campo da moral e da política, essa expectativa mágica ainda prevalece, pois “achamos que tendo um forte sentimento sobre algo, querendo algo o bastante, podemos obter um resultado desejável, tal como o cumprimento eficaz de uma boa decisão, ou a paz entre as nações, ou bons propósitos nos empreendimentos” (DEWEY, 2002, p. 27). Como menciona o filósofo, a “pura razão sem a influência de hábitos prévios é uma ficção”; e por outro, “a existência de sensações puras pelas quais as idéias podem ser formadas é igualmente fictício” (DEWEY, 2002, p. 31).14

Para Dewey (2002, p. 28), negar a característica ativa dos hábitos e sua operação na organização co-ordenada de forças nos faz acreditar em um falso mecanismo que estende o controle do corpo aos domínios da mente e do caráter, nos fazendo “desprezar a investigação inteligente para descobrir os meios que produzirão um resultado desejado”; enfim, nos faz “deixar de lado a importância dos hábitos controlados inteligentemente”. Mediante esse pensamento, Dewey estabelece o par Mecânico–Inteligente.

Para esclarecer sua idéia sobre os hábitos como organização co-ordenada de forças, podendo ser pensados e controlados inteligentemente, Dewey se pauta na ilustração de um

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Essa argumentação parece manter um diálogo crítico com a tradição filosófica idealista, em que a mente representa um domínio privado de idéias, como se fosse um mundo à parte, distinto do mundo físico. Nesse âmbito, a pessoa aprenderia por meio da transmissão de informações feita por outro; é uma razão externa ao sujeito que dita o desejável, cabendo à pessoa assumir aquilo como correto. Parece, também, fazer alusão aos preceitos de uma nova psicologia científica e experimental, emergente no final do século XIX e início do século XX, de caráter essencialmente atomista e associacionista, que buscava entender a formação psíquica para modelar a educação norte-americana (DUTRA, 2000; BROZEK, 1998).

caso em que um homem tem problemas devido à má postura física.15 O autor sugere que dizer a uma pessoa, simplesmente, o que é uma postura correta não garantirá a ação pretendida. Igualmente, o mero querer postar-se eretamente pode não assegurar a mudança do hábito antigo e a instauração de uma conduta nova. Nos dois casos, é acreditar que os meios ou as condições efetivas que levam à realização do propósito “existem independentemente dos hábitos estabelecidos” ou mesmo que os novos propósitos podem ser colocados em funcionamento ignorando a realidade objetiva do contexto (DEWEY, 2002, p. 28).

Nessa ilustração, nota-se que algumas condições foram estabelecidas para produzir o resultado indesejável, de modo que a má postura continuará a ocorrer se tais condições não forem alteradas. O controle do corpo é físico e está ligado aos hábitos desenvolvidos, mas não é independente e externo à formação mental e às disposições. Uma vez que os hábitos intervêm entre o querer e a execução, é preciso reconhecer que eles influenciam a ideação, ou seja, a construção das idéias, dos pensamentos, os quais efetivamente dão forma ao querer.

O novo desejo não incide em uma mente vazia; é preciso haver novas equilibrações mentais para mudar o velho hábito. Somente quando o homem puder realizar a ação de ficar em pé corretamente, mesmo que inicialmente por períodos breves e com o auxílio de instrumentos objetivos, no caso os ortopédicos, é que lhe será permitida uma nova equilibração dos hábitos antigos e ele saberá o que é ter uma postura adequada (DEWEY, 2002, p. 30).

A ilustração fornecida pelo autor é propícia por fortalecer a noção de hábito como mediador mental que atua de modo inteligente, não mecânico; um mediador cuja operação está ligada a vários outros fatores, tais como as condições objetivas do mundo físico, as

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Segundo Perelman e Olbrechts-Tyteca (2002, p. 407), a ilustração é um recurso argumentativo usado para “reforçar a adesão a uma regra conhecida e aceita, fornecendo casos particulares que esclarecem o enunciado geral”. Usa-se um “caso particular”, muitas vezes escolhido “pela repercussão afetiva que pode ter”, ajudando a corroborar uma determinada idéia ou regra (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 410). A diferença entre exemplo e ilustração é que o primeiro visa fundamentar a regra, levando à sua adesão, enquanto a segunda busca confirmar uma regra já estabelecida. Não é a ordem do discurso o que diferencia o exemplo e a ilustração, pois “os exemplos podem vir depois da regra que devem provar” e as ilustrações “de uma regra cabalmente aceita podem preceder seu enunciado” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 408).

experiências prévias e habituais, bem como a formação ideacional. Dewey (2002, p. 29) explica que é completamente absurda a inferência corrente de que determinada falha de uma pessoa é a indicação de que ela “simplesmente fracassa em fazer a coisa certa” e que “a falha pode reverter-se em algo positivo por meio de uma ordem da vontade”.

Se não podemos esperar que o fogo se apague quando lhe é ordenado que pare de queimar, sendo necessária “a mudança das condições objetivas” para que as chamas cessem, também não podemos esperar que a postura correta de um homem venha em conseqüência de uma “ação direta do pensamento e do desejo”, sem qualquer interferência do meio habitual (DEWEY, 2002, p. 29).

O controle externo, mecânico e rotineiro não contribui para a mudança do que é habitual; mesmo que se tenha o desejo de mudança, somente o desejar também não basta para a transformação ou formação de novos e mais significativos hábitos e o redirecionamento da conduta. O meio habitual formado e presente no psiquismo “intervém entre o querer e a execução”, tanto no caso das ações relativas ao corpo físico como no caso das ações mentais e morais (DEWEY, 2002, p. 30). A “formação das idéias, bem como a sua realização, depende dos hábitos”; “um querer adquire uma forma clara somente se associado a uma idéia, e a idéia adquire forma e consistência somente quando apoiada em um hábito”.

Por isso é importante formar hábitos inteligentes. Em Dewey (2002, p. 78), a formação de hábitos e costumes inteligentes passa pela reflexão e pela investigação. “A reflexão e o criticismo manifestam um conflito no âmbito do costume, sendo o seu significado e função reorganizar e reajustar os costumes”, de modo que “a inteligência é vista como um órgão necessário para a iniciativa experimental e a invenção criativa, na transformação do costume” (DEWEY, 2002, p. 79).

Se, por um lado, o hábito representa uma habilidade que não é, em hipótese alguma, limitada à repetição, não se pode dizer que Dewey (2002, p. 70) negue a presença da mecanização no hábito, haja vista que é impossível conceber a ação habitual “sem a

organização de um mecanismo de ação, fisiologicamente engrenado, que opere ‘espontaneamente’, automaticamente, sempre que uma pista seja fornecida”. Entretanto, a mecanização não constitui a totalidade do hábito, nem mesmo a sua essência.

Por isso, a habilidade habitual pode ser comparada à habilidade artística, sugere o filósofo. Os movimentos de um violinista são delicados, inspirados, seguros e variados. Para desenvolver todo o seu movimento artístico, o mecanismo é indispensável, pois se cada menor ação, no momento da apresentação, tivesse que ser conscientemente buscada e intencionalmente desempenhada, a execução seria dolorosa, e o produto, desajeitado e deselegante.

O treino é importante, mas Dewey (2002, p. 71) chama a atenção para o fato de que “a diferença entre o artista e o mero técnico é inconfundível”, uma vez que o “artista é um especialista magistral”, evidenciando que a sua “técnica ou seu mecanismo se funde com o pensamento e o sentimento”. O fato científico, segundo Dewey, é que mesmo em seu treino, em seus exercícios, em sua prática na destreza e na habilidade, o artista usa uma arte que já possui; assim, “ele adquire uma perícia maior porque a prática da destreza é mais importante para ele do que praticar para ter destreza”.

Desse modo, o hábito não representa a dicotomia entre os fatores fisiológicos concernentes à rotina mecânica e a destreza artística, mas a unidade desses dois elementos. Segundo Dewey (2002, p. 72), “quer façamos referência ao cozinheiro, ao músico, ao carpinteiro, ao cidadão ou ao homem de estado, a coisa desejável é o hábito inteligente ou artístico, e a indesejável é a rotina”.

Para Dewey (2002, p. 32), “o meio dos hábitos filtra todo material que chega à nossa percepção e pensamento”. Fazendo analogia com a ciência química, o filósofo afirma que o filtro dos hábitos não é “quimicamente puro”, mas “um reagente que adiciona novas

qualidades e reorganiza o que é recebido”.16 A operação dos hábitos é a experiência que forma, influencia e organiza a formação das idéias e das sensações, ou seja, dos componentes do psiquismo.

Essa analogia visa elucidar três importantes características inerentes aos hábitos: eles representam meios e fins; possuem uma operação que é contínua; e interpenetram-se, ocasionando codificação mútua. Ao abordar a primeira, o filósofo firma o par Produto– Processo, mostrando que a formação do hábito, em sua qualidade artística, ativa e inteligente, não representa apenas um resultado final, um fim distante que se pretende alcançar. Trata-se de um processo de descoberta em que “nós devemos compor aquele fim” (DEWEY, 2002, p. 34).

Se o propósito que se deseja atingir é rever a expressão de um hábito considerado melhor, mais prudente, correto ou adequado, é preciso, antes, prestar atenção naquilo que está mais perto de nós. E o que está próximo é um hábito, é a disposição habitual que impulsiona a realização de determinadas condutas. Focalizar o fim que está distante em nada ajudará; é necessário começar a realizar outras coisas que, por um lado, comecem a inibir a falha atual, e que, por outro, dêem início a uma série de condutas que possam levar ao ideal pretendido. Essa descoberta de um novo curso de ação, que ainda não é o objetivo último, representa igualmente um meio e um fim, haja vista que “o primeiro ou mais próximo meio é o mais importante fim a ser descoberto” (DEWEY, 2002, p. 35).

Para esclarecer essa idéia, Dewey recorre a uma ilustração. Um alcoólatra que almeja parar de beber deve começar a pensar nos estímulos que alimentam o hábito de procurar a bebida. Para ter sucesso no fim antevisto, ele deverá pensar em meios que o ajudem a encontrar outros interesses e outros cursos de ação que inibam a busca pelo ato de beber. O

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Seguindo a fórmula “A está para B, assim como C está para D” (PERELMAN; OLBRECHTS-TYTECA, 2002, p. 424), o pensamento deweyano pode ser assim organizado: a operação dos hábitos (A) está para o fenômeno psíquico (B), assim como o reagente (C) está para o fenômeno químico (D). O reagente é uma substância que, misturada a outros elementos em uma reação química, forma outro ou outros produtos finais. Da mesma forma, os hábitos morais e físicos representam um meio que, em contato com outros elementos, objetos, vivências e realidades, forma outros propósitos e comandos concernentes à ação.

fim que o homem quer alcançar está distante e há obstáculos que se colocam entre ele e o objetivo final. Logo que o fim é elaborado, logo que saiba o que fazer, o homem deve começar a pensar em como fazer, isto é, elaborar ideacionalmente os meios que permitirão a criação de novos hábitos e, consequentemente, o desejo pela nova conduta (DEWEY, 2002).

Como observa Dewey, a força propulsiva, ativa e dinâmica dos hábitos faz com que eles se movam, de qualquer maneira, em direção a um fim, sendo este projetado e refletido, ou não. Esse é mais um argumento que sustenta a posição deweyana acerca da necessidade de analisar os meios para entender o fim a que levam; caso contrário, pode-se cometer a falha de um homem que, ao modificar sua postura, continua a postar-se erroneamente, pois se fixou apenas no objetivo final, que é mudar sua postura, e não avaliou os meios que o levariam a uma postura diferente e também correta.