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2.3 Lírica e elegia: da Idade Média ao período renascentista

2.3.1 A mudança no paradigma de classificação genérico

Como referido anteriormente, Platão elabora, no Livro III de A República, uma classificação ternária acerca dos gêneros literários que, assim como as de seus sucessores, aqui exemplificados por Aristóteles e Horácio, não inclui a poesia lírica em sua totalidade. Esse tipo de categorização tripartite não será incomum após o texto platônico. No século IV de nossa era, por exemplo, o gramático Diomedes, seguindo certamente o legado do discípulo de Sócrates, elabora uma divisão que teve larga difusão na Idade Média e que, salvos alguns aspectos terminológicos, nada mais é que uma emulação da classificação platônica. Ela se baseava no seguinte: i) genus actiuum uel imitatiuum, denominado pelos gregos como dramaticon, ou

mimeticon, caracterizado por não conter intervenções narrativas do poeta e exemplificado pela

tragédia, pela comédia e também potencialmente pela poesia bucólica (como a égloga I de Virgílio); ii) genus enarratiuum, designado pelos gregos como exegematicon, composto unicamente de falas do poeta e representado, por exemplo, pelos Livros I, II e III das Geórgicas; e iii) genus commune uel mixtum, chamado pelos gregos de koinon, ou mikton, originado da

90 Ibidem, p 20. 91 Ibidem, p. 42.

mistura dos dois gêneros anteriores e exemplificado pela Odisseia e pela Eneida. Vale mencionar que a lírica ainda não encontra lugar neste esquema específico de Diomedes, assim como vinha acontecendo em seus antecessores.

Desde o final do primeiro quartel do século XVI, após a redescoberta e a difusão da

Poética aristotélica e da Ars Poetica horaciana, até cerca de meados do século XVII, os estudos

sobre a teoria literária atravessaram uma de suas fases mais fecundas. Na poética desse período – que vai desde o Renascimento tardio até os chamados posteriormente Maneirismo e Barroco –, a classificação ternária dos gêneros literários adquiriu estatuto de verdade inquestionável, mas apresentou progressivamente uma modificação em relação à categorização de Diomedes e de Platão: a inclusão da lírica no sistema genérico literário, ao lado do drama e da narrativa. Como afirma Silva,92 numa época em que a poesia de Petrarca e dos poetas petrarquistas ocupava um lugar fundamental na escala de valores do público leitor, tornava-se imperioso aos críticos e teorizadores literários superar os limites das poéticas greco-latinas e fundamentar a existência e a importância do gênero lírico. Desse modo, vai-se operando e consolidando a transformação do esquema classificatório, da qual resultará o reconhecimento da lírica como um dos três gêneros literários fundamentais. Ela será, então, de acordo com Cascales, caracterizada, assim como postularam anteriormente Platão e Diomedes, pelo modo narrativo simples, ou hexegemático:

a poesia se divide em três espécies principais: épica, cênica e lírica. [...] O poeta lírico quase sempre se expressa no modo hexegemático, pois faz sua imitação falando ele próprio, como se vê nas obras de Horácio e Petrarca, poetas líricos. No que diz respeito ao seu objeto, em termos aristotélicos, a lírica é imitação de qualquer coisa a que se proponha, mas principalmente do elogio a Deus e aos santos e da celebração de banquetes e prazeres.93

Na prática e na teoria poéticas do Renascimento tardio, sobretudo após a difusão da

Poética aristotélica, a doutrina dos gêneros literários alcança um desenvolvimento e uma

sistematicidade que a transformam, até o advento do Romantismo, num dos elementos mais relevantes do sistema literário. Durante o Classicismo renascentista, o gênero literário passa a ser visto como uma entidade autônoma e normativa. Cada um dos três gêneros literários fundamentais – o épico, o dramático e o lírico – é dividido em subespécies menores, todas distinguindo-se umas das outras com rigor e nitidez e obedecendo a regras específicas. Assim, dentro da lírica, por exemplo, são inseridos gêneros como a ode, a elegia e a sátira, todos

92 SILVA, 2002.

previamente considerados pelos gregos e romanos como diferentes e autônomos entre si. Essas prescrições eram direcionadas tanto aos aspectos formais e estilísticos quanto aos temáticos e eram extraídas quer dos teóricos mais canônicos – sobretudo Aristóteles e Horácio –, quer das grandes obras do período greco-romano. Sobressaía-se, assim, a ideia que preceituava a necessidade de manter rigorosamente distintos os diversos gêneros e as suas subespécies, pois cada um deles possuía os seus temas, o seu estilo, a sua forma e os seus objetivos próprios e particulares, devendo o escritor respeitar essas características, a fim de que se pudesse criticar ou elogiar determinada obra levando em conta sua conformidade com um modelo ideal genérico.

A doutrina genérica proposta pela poética do Classicismo renascentista, no entanto, não se impôs de modo unânime, de sorte que, tanto no século XVI quanto no XVII, multiplicaram- se, especialmente na Itália, querelas a respeito da natureza e da classificação dos gêneros. Tais polêmicas foram provocadas mormente por autores que refutavam a ideia concebida pelo Classicismo sobre o fato de os gêneros serem entidades inalteráveis e inflexíveis, pois esta excluía ou marginalizava como acanônicos todos os refratários a tal estatuto. Os representantes dessa concepção contrária entendiam o gênero como uma identidade histórica, que admitia a possibilidade da criação de novas formas e do desenvolvimento de formas híbridas, enquanto, por outro lado, os defensores da proposta consideravam os modelos greco-romanos como paradigmas inalteráveis e negavam a possibilidade de criar novos gêneros: estava estabelecida, como se sabe, a base para a contenda antigos versus modernos.94