• Nenhum resultado encontrado

1.3 Amores

2.1.2 Matéria

Outra questão concernente à poesia mélica tem a ver com a sua dupla modalidade: solo (ou monódica), cantada com o acompanhamento de uma só voz, e coral, performatizada com a ajuda do coro. Esta primeira abarcava grande variedade de temas, os quais eram prevalentemente ancorados na contemporaneidade, no ambiente da pólis, em eventos de um passado recente e em situações próprias da experiência humana – tudo colocado em relação direta com a voz poética: geralmente a 1° pessoa do singular, que se dirigia a alguém, isto é, a um tu ou a um vós. Por outro lado, a mélica coral era menos variada na temática e em seus tratamentos: geralmente aludia a alguma narrativa mítica ou a alguma celebração e fazia, amiúde, autorreferência à performance em execução pelo coro.

Platão, em A República, mencionará como subgêneros principais da lírica o nomos, que acontecia em quase todos os concursos poéticos em Delfos e era cantado não por um coro, mas pelo sacerdote; a peã, hino dedicado a Apolo que aparece na tradição em contextos como orações para a remoção de pragas e agradecimentos pelas graças concedidas, sobretudo as bélicas; o treno, canções que acompanhavam os lamentos fúnebres das mulheres; e o ditirambo, espécie de hino em adoração a Dioniso. No entanto, as referências platônicas não chegam sequer perto de exaurir as possibilidades da poesia mélica. Havia o epitalâmio, que era cantado em casamentos; as canções conviviais, entre as quais os mais conhecidos são os escólios, canções que eram performatizadas por convidados em banquetes e cujo objetivo principal era a exaltação de heróis; o hiporquema, um tipo de canção acompanhado por danças pantomímicas bastante distintas que, surgido em Creta e posteriormente incorporado em Delos, tinha como assunto principal originalmente a história de Latona, mas depois passou a abranger uma variedade bastante grande de temas; e uma grande quantidade de outros subgêneros.53,54

53 BUDELLMAN, 2010.

54 Proclo, na Chrestomathia, manual de gramática que se debruça a uma classificação dos gêneros, subdivide a

poesia mélica em três categorias: na primeira, há aqueles poemas dedicados aos deuses (eis theous): hinos, prosódios, peãs, ditirambos, nomos, adonídios, ióbacos e hiporquemas; na segunda, inserem-se as obras dedicadas aos homens (eis anthropous): elogios, epinícios, escólios, himeneus, trenos e epicédios; iii) na terceira, dita mista, pois homenageia tanto homens quanto deuses (eis theous kai anthropous), encaixam-se: partênios, dafnefóricos, tripodefóricos, oscofóricos e os êucticos (GUERRERO, 2014).

No que diz respeito ao conteúdo dos textos elegíacos que restaram das épocas clássica e arcaica, também encontra-se um grande escopo de assuntos: uma elegia podia ser narrativa, como a Smyrneis, escrita por Mimnermo, que aparentemente contava a história da vitória dos Smyrneus contra Giges;55 podia conter temas predominantemente lamuriosos e que mostravam receio de futuro, servindo de advertência para o ouvinte; podia servir como reação a acontecimentos públicos, a qual se transforma em conselho e exortação para agir; podia propor discussões filosóficas quanto à subserviência humana em relação aos deuses, a fim de que se obtivesse destes prosperidade; podia apresentar conselhos sobre o direcionamento do próprio simpósio em que era performatizada, com ênfase na moderação e na disciplina. Às vezes a matéria podia ter também um tom mais pessoal: lamentos no exílio, confissões, recriminações, consolações, histórias divertidas ou obscenas sobre uma pessoa conhecida, mas já morta, entre uma infinidade de outros temas. Mais tarde, ganhará predominância o lamento fúnebre. Segundo West:56

a poesia elegíaca, então, possui um amplo escopo de temas. No entanto, ele não é ilimitado: ela não era usada, até onde podemos dizer, para narrar diretamente mitos e lendas, para a poesia didática de um tipo factual ou técnico ou para contar narrativas sexuais. Por outro lado, mais ou menos qualquer tema que pode ser tratado em poesia pode ser tratado em versos elegíacos, do mesmo modo que não há nenhum tema que seja restrito somente a eles [...].57

Algo parecido dirá Aloni:58

a grande versatilidade da elegia é inquestionável. Ela é capaz de se conectar com diferentes aspectos da vida (e da morte) dos indivíduos e comunidades. [...] Como resultado, ela consegue desempenhar um grande número de funções. Na verdade, a maior parte das funções performatizadas pelos diferentes gêneros – se não todas elas – é também performatizada pela elegia e combinada de diversas formas. [...] Uma consequência da complexidade dessas diferentes funções é uma correspondente complexidade nos respectivos papéis das diversas ocasiões em que o gênero elegíaco era performatizado.59

55 Conforme West (1974), o assunto desse poema fazia referência a um acontecimento recente, não se podendo

considerar, portanto, que contivesse narrativa por si mesma, como faz a épica.

56 WEST, 1974, p. 23.

57 Minha tradução para: “elegiac poetry, then, has a wide range. Not an unlimited one: it was not used, so far as

we can tell, for the straightforward telling of myths and legends, for physical philosophy, for didactic poetry of a factual or technical kind, for sexual narratives; but otherwise more or less any theme that can be treated in poetry at all can be treated in elegiacs. On the other hand there is scarcely any theme that is restricted to elegiacs”.

58 ALONI, 2010, p. 201.

59Minha tradução para: “the great versatility of elegy is unquestionable. Elegy is able to engage with very different aspects of the lives (and deaths) of individuals and communities. [...]. As a result, it can fulfil a multitude of functions. In fact, most or all of the functions performed by the different poetic genres are performed also by elegy,