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A MULHER E O MITO

No documento A MULHER FATAL E O QUE FAZEM MULHERES: (páginas 134-154)

4. A MULHER E O AMOR CAMILIANOS

4.2 A MULHER E O MITO

O século XIX, marcado por profundas reivindicações sociais,

apresentava a emancipação da mulher como meta secundária ao

desenvolvimento do proletariado. No entanto, algumas figuras femininas

procuravam associar essas duas lutas, a do proletariado, à da mulher, como é

o caso da francesa Flora Tristan

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, que em 1820 foi trabalhar como operária de

uma oficina de litografia.

Dessa forma, como já observado, a definição de amor vai se

alterando ao longo dos tempos e o status feminino acompanha tais mudanças.

Enquanto na Grécia a mulher limitava-se às funções de mãe ou prostituta, em

Roma, não tinha poder de decisão.

Na Idade Média, a figura feminina ganhou algum espaço em

decorrência da ausência masculina proporcionada pelas constantes guerras,

passando também a ter acesso às artes, mas se iniciou ao mesmo tempo a

forte repressão à ela, frequentemente associada à imagem da bruxa

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. Nessa

época, as imagens da mulher constantemente giravam em torno de três

tendências essenciais: a figura tentadora, associada à serpente e a Eva; a mãe

de Deus, rainha dos apóstolos; e a pecadora resgatada, Maria Madalena.

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Flora Tristan nasceu em 1803, em Paris, e muito jovem conheceu a pobreza com a morte do pai. Foi trabalhar como operária numa oficina de litografia e acabou casando-se com o proprietário aos 17 anos. Decepcionada com o casamento, Flora foi trabalhar como criada de uma família inglesa, viajou para a Inglaterra e acabou tornando-se uma grande revolucionária, precursora do movimento feminista e defensora do operariado

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Christiane Klapisch-Zuber explica a visão medieval da mulher a partir de três exemplos: O

primeiro vem de um monge do século XII, Rupero de Deutz. Eva, enganada pela serpente, deu o fruto a Adão. "Ela já não mostrava desta forma sua personalidade abusiva, arrogante e insistente?, pergunta-se Ruperto. Dois séculos mais tarde, Boccaccio coloca na boca de algumas mulheres desamparadas por causa da peste as seguintes palavras: "Lembrem-se que somos todas mulheres, nenhuma de nós ainda é criança para não daber como as mulheres se ajeitam entre si e sabem se entender sem a ajuda de um homem! Nós somos volúveis, contraditórias, deconfiadas, covardes e medrosas [...]. Na verdade, os homens são os chefes das mulheres e sen a autoridade deles raramente algo que fazemos chegam a um fim louvável". E para terminar: " A mulher é fraca, ela vê no homem o que pode lhe dar força, da mesma maneira que a lia recebe sua força do sol. É por isto que ela é submissa ao homem, e deve estar sempre pronta para servi-lo". Não é um homem, mas uma contemporânea de Rupero, Hildegarda de Bingen, que escreve estas linhas no século XII. (LE GOFF, 2006, p. 137)

A caracterização da mulher, embora tenha se alterado

gradativamente ao longo dos tempos, mantém frequentemente a perspectiva de

que ela seja um elemento poderoso, principalmente por meio da artimanha da

sedução e, por isso, ela deva ser controlada.

Na Península Balcânica, por exemplo, muito antes da chegada

dos povos de língua grega, a mitologia, assim como a religião, fundamentavam

a representação da mulher a partir dos mitos da criação em que há sempre a

imagem feminina primordial, como, por exemplo, as titânides.

Enquanto as Vênus paleolíticas, primeiras das representações

femininas, caracterizavam-se pelas formas opulentas dos seios, ventre e

nádegas, bem distintas às da Deusa Mãe, representação da Natureza, a terra,

as matas, os rios, os animais, no período Neolítico Médio, a imagem da Deusa

Mãe passou a representar a terra fértil da qual se extraia tudo o que o homem

necessitava, reinando absoluta como Senhora da fertilidade.

Porém, essas culturas matrilineares acabaram sendo

dominadas pelo Deus Macho, restando à Deusa apenas o papel de mãe,

esposa ou filha dele, e o culto a ela tornou-se diminuído e paralelo, ocupando o

segundo plano no panteão grego. A mulher era vista, então, desde Hesíodo até

o século V a.C., como um grande mal, um castigo infringido aos homens por

Zeus.

Já no mito de Prometeu e de Pandora

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, a mulher apareceu

como um "presente" dado aos homens. Hesíodo conta que ela foi moldada

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Prometeu era um dos titãs, raça gigantesca que habitou a terra antes do ser humano. Seu irmão, Epimeteu, e ele foram incumbidos de fazer o homem com a condição de assegurar a ele e aos outros animais a preservação. Epimeteu atribuiu a cada animal dons específicos , mas, quando chegou a vez do homem, não havia mais atributos a distribuir. Prometeu subiu ao céu, acendeu sua tocha no carro do sol e trouxe o fogo ao homem. Com esse dom, o homem assegurou o domínio sobre todos os outros animais. Júpiter, para punir Prometeu e Epimeteu pela ousadia de roubar o fogo, enviou-lhes a mulher, que até então não havia sido criada. Chamava-se Pandora e Vênus lhe deu a sedução, Mercúrio, a persuasão e Apolo, a música. Epimeteu aceitou o presente de Júpiter e vivendo com Pandora, avisou-a para nunca abrir a caixa em que guardava os bens e maldades dele. Pandora abriu a caixa e espalhou por toda parte as pragas que perturbaram o mundo, restando na caixa apenas um bem: a esperança. Na versão de Hesíodo, para castigar os homens mortais que possuíam o fogo, Zeus mandou o filho de Hera, Hefesto, criar uma mulher fascinante, a qual foi moldada com atributos dados

semelhantemente às deusas nas feições e que os demais deuses e deusas

concederam-lhe ainda muitos dons:

Disse assim e gargalhou o pai dos homens e os deuses; ordenou então ao ínclito Hefesto muito velozmente terra à água misturar e aí pôr humana voz e

força, e assemelhar de rosto às deusas imortais esta bela e deleitável forma de virgem;

e a Atena ensinar os trabalhos, o polideláleo tecido tecer; e à áurea Afrodite à volta da cabeça verter graça,

terrível desejo e preocupações devoradoras de membros. Aí pôr espírito de cão e dissimulada conduta

determinou ele a Hermes Mensageiro Argifonte. Assim disse e obedeceram Zeus Cronida Rei Rápido o ínclito coxo da terra plasmou-a

conforme recatada virgem, por desígnios do Cronida; Atena, deusa de glaucos olhos, cingiu-a e adornou-a; deusas Graças e soberana Persuasão em volta

do pescoço puseram colares de ouro e a cabeça, com flores vernais, coroaram as bem comadas Horas e Palas Atena ajustou-lhe ao corpo o adorno todo. Então em seu peito, Hermes Mensageiro Argifonte mentiras, sedutoras palavras e dissimulada conduta forjou, por desígnios do baritonante Zeus. Fala o arauto dos deuses aí pôs e a esta mulher chamou Pandora, porque todos os que têm olímpia morada

deram-lhe um dom, um mal aos homens que comem pão. (HESÍODO, 2006, p. 25 - 26)

Hermes, especificamente, lhe pôs no coração a perfídia e os

discursos enganosos, além da curiosidade que a fez abrir a caixa, espalhando

nomeada por Hermes, foi dada de presente a Epimeteu, que, ignorando a advertência de Prometeu, aceitou a mulher, juntamente com um jarro dado como presente de núpcias, onde Zeus depositou o resto de sua vingança. Curiosa que era Pandora, ela abriu o jarro e fechou rapidamente, porém houve tempo para que as desgraças se espalhassem pelo mundo e a calamidade afetasse a humanidade. No entanto, ainda restou no jarro o bem da esperança. (BRUNEL, 1997, p. 784-793)

males pelo mundo e, por isso, a mulher foi considerada a origem dos tormentos

da humanidade.

Por seu turno, Afrodite

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faz-se temida por ser implacável e

terrível com aqueles que despertam seus desafetos, mas sabendo ser doce e

generosa com aqueles que ama.

Por meio da tradição judaico-cristã, o comportamento negativo

de Eva condenou a figura feminina a um mundo de culpas, sendo a mulher

indigna de confiança, moralmente inferior e de índole maldosa. Desde o Velho

Testamento (2001, grifos meus) em Eclesiastes 7:26, 28, concebe-se a mulher

como um mal:

Eu acho a mulher um pouco pior do que a morte, porque ela é uma armadilha, cujo coração é um alçapão e cujas mãos são cadeias. O homem que agrada a Deus foge dela, mas ao pecador ela o aprisionará ... enquanto eu estava procurando, e não estava encontrando, achei um homem correto entre mil, mas não encontrei uma só mulher correta entre todas elas.

A Bíblia católica (2001) em Eclesiastes 25:19, 24, defende

claramente que “Nenhuma maldade está mais próxima do que a maldade de

uma mulher [...] O pecado começa com a mulher e, graças a ela, todos nós

devemos morrer”. Como precisamente afirma Anatole France (1928, p.8-9): "Le

christianisme a beaucoup fait pour l’amour en faisant un péché".

Já os rabinos judeus listaram nove maldições infligidas às

mulheres, como resultado da Queda: a morte, o peso do sangue da

menstruação e da virgindade, peso da gravidez, as dificuldades do parto, e de

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Afrodite é a deusa mãe em muitas tradições. Há a Afrodite Uraniana, que nasceu da espuma do mar após Cronos castrar Urano, pai de Afrodite, e também tem-se a Afrodite Pandemos nascida de Zeus e Dione. Todos os deuses se apaixonavam por ela que os desprezava. Como vingança, Zeus a fez casar-se com Hefesto, o ferreiro divino, filho de Hera e Zeus, a divindade do fogo, dos metais e da metalurgia. AFrodite começa a trair o marido o qual a cobria de jóias, inclusive um cinto com filigranas de ouro que, quando ela usava, ninguém resistia a seus encantos. (BRUNEL, 1997, p. 20-25)

educar crianças, a cabeça coberta como no luto, o furo na orelha como marca

de escravidão permanente, ela não deve ser tomada por testemunha.

O apóstolo Paulo (1 Cor 11,10) afirma “pois o homem não

procede da mulher e sim a mulher do homem; nem o homem foi criado para a

mulher, senão a mulher para o homem; deve, pois, a mulher usar o sinal de

submissão”. São Paulo, no Novo Testamento (I Timóteo 2: 11,14, grifos meus),

afirma:

Uma mulher deve aprender em calma e total submissão. Eu não permito a uma mulher ensinar ou ter autoridade sobre um homem; ela deve ser calada. Porque Adão foi feito primeiro, e

depois Eva. E Adão não foi o que perdeu, foi a mulher que

perdeu e se tornou pecadora.

Para encerrar a sequência de definições parciais sobre a figura

feminina, alicerçadas pelos dogmas da fé, ainda hoje os judeus ortodoxos

recitam em tom de alívio: “Abençoado seja Deus, Rei do universo que não nos

fez mulher”.

As tradições religiosas, então, destinaram à figura feminina o

mito da inferioridade da mulher que, por ter desencadeado o pecado original,

poderia ser considerada um ser inferior, propagador de desgraças e

desencadeador de sofrimentos. Essa condição feminina é um tema reincidente

dentro da Literatura, revelando ao mundo a situação da mulher e a maneira

como é vista em momentos histórico-culturais específicos, sendo representada

prioritariamente como anjo na literatura clássica e romântica, até chegar à

mulher estigmatizada como prostituta ardilosa nas literaturas realista e

moderna.

Na tradição cabalística, Lilith

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seria o nome da mulher criada

antes de Eva, ao mesmo tempo que Adão, não de uma costela de homem, mas

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Na Cabala, Lilith é vista como a serpente que induziu Eva a comer o fruto proibido; no folclore hebreu medieval, é a primeira esposa de Adão que o abandonou por desejar a igualdade de tratamento e não admitir sua posição inferior frente ao homem. Assim, ela juntou-se aos anjos caídos, casou-juntou-se com Samael e fez Adão cair em adultério. Na antiga

formada diretamente da terra. Ela se tornará instigadora de grandes conflitos e

amores ilegítimos; a perturbadora de leitos conjugais, assim como faz a

personagem Cassilda Arcourt em A mulher fatal:

Àquele tempo, quem quer que fosse, era desconhecido o amoroso de Cassilda. Sabia-se que, seis meses antes, um duque francês, filho doutro duque do Império, saíra de Lisboa

importunado por credores, que o enxovalhavam nas praças. O

duque de *** desonrara-se para manter à esposa do seu compatriota as regalias que lhe deixara o seu antecessor decaído da graça. O sucessor do duque, se existia, era menos

fátuo que os outros: em geral, os amantes de Cassilda

alardeavam sua fortuna pendurando a fotografia dela de par com o retrato duma esposa prometida, com o duma amiga de infância, com o duma parente respeitável, e com o de sua mãe. (CASTELO BRANCO, 1950, p. 155, grifos meus)

Enquanto Filomena, em A mulher fatal, representa, ademais, a

mulher desdenhada ou abandonada por causa de outra, Cassilda Arcourt, como

Lilith simboliza os ódios contra a família, a repulsão aos casais e aos filhos.

Espírito maligno identificado com a noite, Lilith é ora

representada como uma prostituta de seios secos, que não podia ter filhos; ora

como uma linda jovem com pés de coruja, o que identificava sua vida

noctívaga. É uma ninfa vampiro da curiosidade, que a seu bel-prazer arranca

ou recoloca os olhos, e a que dá aos filhos do homem o leite venenoso dos

sonhos. Nesse mesmo perfil de Lilith, Cassilda atrai os homens pelo que

desperta neles e os leva com ela, como foi o caso de Carlos Pereira, o qual

abandonou o lar, a esposa e os filhos à sorte para seguir seu desejo irresistível

de possuí-la.

A literatura tem maior interesse sobretudo por Lilith revoltada,

que, na afirmação de seu direito à liberdade, ao prazer e à igualdade em

relação ao homem, perderia a si própria, assim como deixaria de ter também

Mesopotâmia, Lilith é associada a um demônio feminino, portadora de doenças e de desgraças. (BRUNEL, 1997, p. 583-585)

aqueles que encontra. Cassilda Arcourt, por exemplo, desfaz-se inicialmente de

sua liberdade quando se envolve com Carlos e, depois, ao se separar

definitivamente dele, explora outro homem e recompõe sua existência como se

tivesse cumprido apenas uma etapa de seu destino.

Portanto, a mulher, para caracterizar seu lado feminino, deve

reprimir ou rejeitar o modelo Lilith, conforme a convenção social burguesa,

enquanto Eva, que representa dependência, culpa, curiosidade, fraqueza,

inferioridade, emotividade, deve ser seguida como exemplo de comportamento

submisso femininil.

Enquanto Lilith simboliza a natureza instintiva feminina, Eva é

a imagem da obediência às leis de Deus, modelo ideal de mulher a ser seguido

como padrão de conduta feminina, o oposto de Lilith, símbolo de liberdade,

independência, igualdade, desejo, sensualidade, instintividade, opinião, rancor,

vingança, inveja, solidão e morte. Esse comportamento de Lilith, portanto,

estaria refletido em Cassilda e a figura de Eva, em Filomena, ambas

personagens de A mulher fatal como comprova a caracterização que o narrador

atribui a elas, respectivamente:

Cassilda, a exterminadora, tinha direito à benquerença da Fatalidade que lhe ervara o punhal com que ela coava aos corações as nevralgias dilacerantes. (CASTELO BRANCO, 1950, p. 216)

A virtuosa senhora ... mentiu. O termo é duro; mas perdoe-mo a sua piedosa indulgência. Os santos também se desviaram do prumo da verdade, quando a inexatidão agravava o seu martírio. (CASTELO BRANCO, 1950, p. 204)

Eva, a primeira mulher conforme o Cristianismo, originou-se a

partir da costela de Adão, o que os tornava uma só carne, e teria sido criada

depois que Lilith o abandonou por querê-la subordinada a ele. Na literatura

rabínica, a primeira mulher de Adão, Lilith, foi criada do mesmo barro que ele,

portanto, igual a Adão, mas diferente de Eva, parte dele e, logicamente, a ele

submissa.

Considerada a primeira mulher e mãe de todos os que vivem,

Eva é subordinada a Adão, mas o leva ao pecado causador da expulsão do

paraíso, culpa que ela carregará eternamente, fonte da separação entre espírito

e corpo norteadores do preconceito e da rigidez dos valores vinculados à

mulher e ao sexo. Nesse sentido, Filomena também seduzirá Carlos sem

intenção direta, como Eva, mas o fará pelo mistério que sua imagem apresenta

a ele:

- Amei. Parece-me que amei. Deparou-ma um acaso ... Aí vai a história. Estava eu em Viseu, onde me chamavam interesses comerciais. Encontrei um condiscípulo que me levou a um baile

do Antônio de Albuquerque. Uma elegante mulher vestida de

meio luto, e não dançava. Perguntei quem era. Simpatizei com a viúva melancólica. Pedi que me apresentassem. Recebeu-se

atenciosa, mas friamente. Falou-me ... Era a primeira mulher

de espírito que eu ouvia. O tom da voz melodiosa quadrava com o luto de vestir e o triste dos pensamentos. Não sei como foi, meu amigo. Fiz-me também lúgubre. Começaram as lágrimas a envidraçar-me os olhos e ... (CASTELO BRANCO, 1950, p. 125, 126, grifos meus)

Para reforçar esses valores, o Cristianismo apresentou Maria,

a que concebeu um filho sem pecado. A figura de Maria, mãe de Jesus,

torna-se elemento principal de tributo de grande respeito uma vez que, na

cosmogonia cristã, concebe o próprio Filho de Deus, destacando-se-lhe como

virtudes principais a humildade e a obediência. Observe-se no Novo

Testamento, n'O Cântico de Maria:

Então disse Maria:

A minha alma engrandece ao Senhor,

e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade de sua serva.

Pois desde agora todas as gerações me considerarão bem-aventurada. (Lucas, 1:46-48)

Logo, por um lado, destaca-se a visão do universo feminino

envolto de desejos, prazeres e perversões e, por outro, a despretensão,

sujeição e docilidade.

O mito de Lilith, assim como o de Maria, também resiste no

inconsciente da humanidade à margem do processo sóciocultural e, em termos

religiosos, Lilith é inscrita como a condutora do mal, dos desvios de

comportamento, da versão demoníaca do feminino, o retrato avesso de Maria.

A mulher na literatura, e não só na literatura, desempenha papéis de santa,

bendita, doce, pura, representante da divindade, simbolizando Marias,

especialmente a mãe de Jesus ou, então se converte numa mulher demoníaca,

monstro que não se deixaria dominar pela sociedade patriarcal e, por isso, dela

excluída ou discriminada.

É comum o homem associar a figura feminina, principalmente

se esposa consumada, à mulher íntegra e ao mito de Maria – personagem

bíblica. Ao perceber que a figura feminina também pode se deixar corromper, o

homem, sujeito do discurso e do comando sócio-político, disponibiliza para ela

a categoria de objeto passível de domínio e manipulação temíveis, desde as de

caráter psicológico até sexual.

O patriarcado instituiu um sistema jurídico em que a autoridade

e os direitos sobre os bens e as pessoas obedecem a uma regra de filiação:

patrilinear, se este poder estiver nas mãos do homem, e matrilinear, se os laços

genealógicos passam pelas mulheres, como se pode perceber no Código Civil

Português de 1867.

A clássica oposição entre fadas e bruxas, o maniqueísmo

sempre reforçado por uma visão dialética que patrocina a convivência do Bem

e do Mal, segue a receita tradicional em que a bruxa jamais reflete sobre seus

atos, ou ainda destrói-se, motivada pelo sentimento de vingança.

O pendor para o Mal atribuído à figura feminina possui, como já

se viu, uma longa tradição, conforme se pode ler em Eclesiástico 25, 26: “Toda

a malícia é leve em comparação da malícia da mulher; sobre ela caia a sorte

dos pecadores”. Desde o mundo greco-romano ofereciam-se imagens da figura

feminina que alimentavam essa ideia misógina, como por exemplo, o mito de

Pandora. Observe como é evidente a diabolização da mulher nessa referência

de Zeus

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a Pandora, presente enviado por ele aos homens: “Um mal em que

todos se deleitarão em rodear de amor para a sua própria desgraça”

(NOGUEIRA, 1995, p. 78).

Lilith figura o lado sombrio feminino tornado temível por ser

reprimido da consciência. A humilhação perante a postura masculina

representada por Adão associa-se à desforra da mulher atraente e

exterminadora, como faz Cassilda Arcourt com Carlos Pereira em A mulher

fatal. Ao receber, por exemplo, uma carta de Carlos se declarando

amorosamente, ela responde desdenhando do sentimento do rapaz,

considerando-o mais um a cair em suas malhas de sedução, como realmente

ocorrerá:

Pouco depois das informações muito de servir, chegou o carteiro com a réplica aos versos de Musset. Lastimava-se ele, queixando-se da injustiça, e obtestando Deus sobre a sinceridade de sua paixão. Da aleivosa de hipócrita, constante do primeiro verso, defendia-se aquele abatido espírito com tamanho zelo e cópia de argumentos que nem um varão justo caluniado de salteador. Cassilda, na correnteza da leitura,

quantas vezes diria de si consigo: “Este homem, se não é

parvo, é velhaco de marca!” Infelizmente, não era velhaco nem parvo ... Era homem

.

(CASTELO BRANCO, 1950, p. 162, grifos meus)

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Segundo Hesiodo (2006, p. 25), Zeus disse: Filho de Jápeto, sobre todos hábil em tuas tramas,/ apraz-te furtar o fogo fraudando-me as entranhas;/ grande praga para ti e para os

homens vindouros!/ Para esses em lugar do fogo eu darei um mal e/ todos se alegrarão no

Porém, a imagem de Lilith não pode ser apenas vinculada à

expressão demoníaca, mas também a um denso erotismo feminino que leva os

homens ao êxtase ou à ruína. Assim, avaliando por um determinado prisma, é

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