Figura 5: Camilo Castelo Branco - Memórias fotobiográficas (1825-1890)
(Moutinho, 2009, p. 211)
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desfastio, o desejo de ler este livro...
compra-o.
Camilo Castelo Branco A mulher fatal
O Romantismo, norteado pelos pressupostos da Revolução
Francesa, é marcado pela revolta contra o desprezo dado à individualidade do
homem, sendo que, a partir da conscientização de que o homem em seus
elementos particularizadores deveria ser valorizado, o “eu” concretiza-se
literariamente, associado aos desejos, reações, conflitos e dramas existenciais
de cada ser social.
Na prosa romântica, especialmente no caso das narrativas de
Camilo Castelo Branco estudadas nesta pesquisa, é frequente a identificação
do leitor com os conflitos existenciais vividos pelas personagens e, além disso,
ele aparece constantemente como um leitor questionado, levado à reflexões e
convidado a participar do enredo que, em determinados momentos é
conservado em segundo plano, recurso que alavanca a obra camiliana na
perspectiva de inserir já no Romantismo alguns recursos que se tornariam
comuns apenas a partir do movimento realista.
A conversa com o leitor, como foi observado, se estabelece logo
no início das novelas, desde o título dos capítulos “A todos os que lerem”, “A
alguns dos que lerem” e “Capítulo avulso: para ser colocado onde o leitor
quiser” de O que fazem mulheres. Neles, o leitor pode colher informações que
vão desde a análise do comportamento virtuoso ou pecaminoso das
personagens femininas até a sátira em relação aos meios empregados para a
construção do romance e composição das tramas.
O narrador, desse modo, encaminha o leitor à discussão teórica
em paralelo a comentários sobre os efeitos dos dramas sentimentais
vivenciados pelas figuras femininas do século XIX, o que configura a
demonstração de uma tese centrada na maneira como agiam os homens frente
a situações sentimentais que envolviam também, e principalmente, os valores
econômicos. Esse lector in fabula é, portanto, frequentemente solicitado a
participar da narrativa que, por meio de clichês, ironiza costumeiramente o
comportamento romântico associado ao típico melodrama sentimental que
alimentava as expectativas dos leitores da época.
A ironia romântica permite a Camilo Castelo Branco a criação
de narrativas que incluam no transcorrer das aventuras o leitor e suas
possibilidades de leitura, o estilo e suas diversidades, os elementos plenamente
ficcionais e os fatos históricos, o autor e sua forma de criar. Desse modo, lhe é
possível enfocar por meio da ironia múltiplas questões que induzem o leitor à
arte de examinar o mundo em que vive, estabelecendo diferentes significados e
valores a ele, além de proporcionar avaliações quanto à estrutura social vigente
no século XIX.
Pode-se constatar, portanto, os três camilos referidos na
pesquisa, o folhetinista, o moralista e o personagem, atendendo às exigências
e necessidades do público leitor, proporcionando surpresas e desencadeando
decepções em relação aos padrões socialmente estabelecidos. Parodiando
situações, falas e sentimentos, Camilo Castelo Branco oportunamente pontua,
de certa forma autoritariamente, comportamentos e, por meio de comentários
paralelos à narrativa, julga as personagens femininas em seu perfil ativo ou
passivo frente ao homem, figura dominante.
Há de se destacar que o autor português também condena
algumas atitudes masculinas no que concerne ao desvio de conduta amorosa
ideal, considerando-se a fidelidade à mulher que elegeu como esposa,
principalmente quando o homem busca atender ao mecanismo social machista
em que se permite toda e qualquer forma de abuso e traição das figuras
femininas.
Seja na avaliação do comportamento feminino ou do masculino,
Camilo Castelo Branco suscita uma leitura crítica ao contexto moralista da
sociedade portuguesa, moralismo do qual ele mesmo se desvincula em sua
vida particular, encaminhando o leitor convencional e mantenedor dos padrões
de decoro, que correspondem às ideias preconceituosas e limitadoras do
homem da época, ao questionamento.
Dessa maneira, a criação camiliana da figura feminina
mantém-se fiel à perspectiva da sociedade a qual concedia à mulher uma posição
solidificada na pirâmide social que reservava a ela os papéis de mãe e esposa.
Apenas uma mulher determinada e de capacidade intelectual desenvolvida
poderia se revoltar contra a situação feminina estagnada e lutar para defender
seus direitos, principalmente o de amar.
Por meio deste trabalho, constatou-se que a condição feminina
afirmava o poderio masculino e a desobediência a ele encaminharia a mulher
ao abismo, reflexo na literatura do drama da figura feminina que se subordinava
aos domínios machistas da acanhada sociedade lusitana. O casamento era,
portanto, a maneira de conquistar uma emancipação que, embora não fosse
plena, favorecia à mulher a possibilidade de materialização de alguns de seus
desejos, mesmo que por vias ilegais, como o adultério.
Incapaz de ter uma profissão que a completasse em sua
existência humana, a figura feminina acostumava-se à obediência, à
subserviência, à clausura, e apenas algumas mulheres buscavam aventuras
que as tirassem do marasmo do lar e da Igreja. Os caminhos da fé conduziam,
muitas vezes, à estrada da sensualidade sinalizada pelas palavras e também
atitudes do padre. É o que ocorre com Virgínia, a qual se torna uma devota
libertina que dissimula o desejo sexual em orações as quais não alimentavam
exatamente a alma, mas o corpo material.
Contrariamente é o que se encontra no comportamento de
Ludovina que se retira para o convento e, depois, volta para o lado do marido
doente, atitude espelhadora de seus ideais de correção, resultando o
enquadramento da personagem nos valores dominantes da sociedade
portuguesa do século XIX em fazer da vida uma simulação de felicidade ao se
dedicar exclusivamente ao bem dos demais.
Mulheres sábias, religiosas, tolas, incrédulas, libertinas, puras,
espalham-se pelas obras analisadas neste trabalho e refletem os
comportamentos das figuras femininas, principalmente do período romântico
português, mas que, em muitos casos, assemelham-se à vida dos nossos
tempos. Confinadas basicamente ao maniqueísmo camiliano, elas ou são
sacrificadas a um casamento forçado e permanecem na bondade obrigatória de
servir ao sexo masculino, ou se revoltam e transformam-se de anjos ou santas
em vilãs demoníacas que expiarão todos os pecados com a finitude da vida.
Tanto o amor quanto a morte atendem às necessidades do
romance romântico, pois mantêm as expectativas do leitor de que os enredos
apresentem finais felizes ou mantenham a fidelidade dos pares amorosos
mesmo quando não podem se unir, reforçando, assim, a ilusão de que o amor é
um sentimento permanente e eterno.
A busca de uma vida feliz em que se realizassem todas as
vontades parece guiar as personagens camilianas, muito mais do que apenas o
sentimento do amor ou a ideia de que a união entre pessoas de sexos
diferentes apenas se justifica pela necessidade de procriação.
João José Dias, em O que fazem mulheres, confirma a teoria
de Shoppenhauer de que a relação amorosa visa apenas a atender aos
caprichos da natureza em fazer o homem se reproduzir, e, por isso, o
casamento com Ludovina se realiza. Mas para Carlos Pereira, de A mulher
fatal, a teoria pessimista se converte na busca do amor que ele procura pela
vida inteira.
Camilo Castelo Branco, num frequente diálogo com o leitor, e
com sua colaboração indireta, elabora um retrato do padrão comportamental
masculino e feminino do século XIX e exterioriza os pensamentos e reflexões
comuns do período em relação aos papéis que a sociedade portuguesa espera
serem desempenhados adequadamente pelos homens e pelas mulheres
lusitanos.
Em O que fazem mulheres e A mulher fatal, o autor apresenta
perspectivas que superam a possibilidade da morte ou da infelicidade conjugal
como desfechos para situações amorosas complexas, valendo-se do adultério
como forma de realização de desejos frustrados em decorrência de valores
sociais impostos principalmente à figura feminina.
O adultério, tema caro ao Realismo-Naturalismo, é avaliado por
Camilo Castelo Branco como resultado da falta de caráter do homem quando a
traída apresenta um perfil socialmente correto, sendo exemplo de integridade e
moral ilibada, como é o caso de Filomena. Mas se o delito é proporcionado
apenas por necessidades de ordem material, como é o caso de Angélica, que
casa por dinheiro, sem amor e trai o marido com o antigo namorado, ou como a
situação de Cassilda que prioriza seus interesses econômicos antes de
qualquer outra forma de sentimento, o castigo da morte ou da experiência da
pobreza devem ser imputados.
A mulher não tem autonomia sobre suas atitudes, a não ser
quando ela é abandonada pelo marido e precisa sobreviver às custas de seu
próprio sustento. Fora essa necessidade, as personagens femininas são
condicionadas à prostração e ao discreto desenvolvimento intelectual que
favorece o mando masculino. Por outro lado, há personagens femininas
camilianas, de diferentes condições sociais, que ou se deixam comandar pela
força masculina, ou se valem da inteligência, ou da arte de sedução para
efetivarem suas vontades.
Estela, em sua existência pálida à sombra de sua família e de
uma escassa inteligência, no entanto meiga e sem formosura, cumpre o destino
típico aos expedientes da prosa romântica de morrer tísica e ser lembrada
como uma boa alma que passou pelo mundo.
Filomena e Ludovina levam uma vida de sacrifícios e de
abnegações, aceitando o envelhecimento, sem a presença do grande amor de
suas vidas, e a perda da beleza, da juventude, dos sonhos como consequência
do destino a elas reservado.
Angélica não abre mão de seus sonhos de uma vida amorosa
plena, concretizada num adultério que consolida, por um lado, as necessidades
físicas e emocionais da personagem e, por outro, mantém as aparências do
casamento de conveniência associado aos interesses econômicos.
Cassilda, por sua vez, alia a necessidade financeira à
psicológica de ser desejada e de ter os homens a seus pés. No entanto, seu
envolvimento com Carlos ilude o leitor na crença de que o amor verdadeiro é
capaz de alterar comportamentos, uma vez que Cassilda recupera sua
trajetória de vida inicialmente apresentada no romance.
Na verdade, o relacionamento entre Carlos e Cassilda reflete a
instabilidade do sentimento e do ser humano e, embora ele busque o amor ao
longo da narrativa, ilude-se na emoção forte e na expectativa de permanência
ao lado da amada, num envolvimento que nada mais é do que uma relação
cercada pela atração e pelo desejo inconsciente do pecado.
Após a morte de Carlos, Cassilda volta à sua essência
promíscua, parecendo ter-lhe bastado esse amor possibilitador da
concretização do sonho feminino comum de ser amada verdadeiramente. Ela,
seduzida por Eros, contrapõe-se à Ludovina que morre em vida, alimentando
Tânatos com sua vida apagada, sem brilho e sem esperança.
Amores profanos e sagrados caminham lado a lado nas
narrativas O que fazem mulheres e A mulher fatal, num reflexo do que a
existência proporciona a muitas mulheres. Assim, algumas personagens dessas
narrativas camilianas creem no amor romântico, fértil apenas como expectativa
de vida, enquanto outras são alimentadas por contravenções e traem seus
maridos e as demais abstêm-se totalmente da existência no refúgio da
administração da família que lhes restaram.
Atena, Hera, Afrodite e Lilith revivem, respectivamente, na
sabedoria de Filomena, na fidelidade de Ludovina e na sexualidade de
Cassilda, personagens que no mundo ficcional espelham o comportamento
feminino em busca de se dar à vida sua verdadeira função: amar, força e
energia vital do universo. Por seu turno, Estela, Filomena e Ludovina são anjos
que iluminam as vidas masculinas, enquanto Cassilda, Angélica e
Virgínia/Narcisa, dissolveram o brilho da existência no abismo do individualismo
e do amor que só tinha um alvo: o amor por elas próprias.
Camilo Castelo Branco não é um autor que exclua a mulher da
possibilidade de ter vida própria. Pelo contrário, ele valoriza o direito à
existência feliz daquelas que fizerem da vida uma trilha em que se busque o
bem e a felicidade dos pares envolvidos, vinculando-se amor e sinceridade na
realização da perfeita união entre um homem e uma mulher.
No documento
A MULHER FATAL E O QUE FAZEM MULHERES:
(páginas 182-190)