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A “ MULTI-REPRESENTAÇÃO" DO GAUCHO EM MARTIN FIERRO

No documento lucassalesfurtado (páginas 66-69)

E atendam à relação eaúcho perseguido, Que foi bom pai e marido Delicado e diligente; Entretanto muita gente O considera bandido.132

Esse pequeno trecho pertence à obra Martin Fierro do argentino José Hernández. Aqui temos um novo capítulo no que se refere à representação sociopolítica do gaúcho. Sendo assim, neste capítulo pretendo demonstrar a mudança na utilização da classe gauchesca. Antes, com autores como Sarmiento, tínhamos uma literatura centrada objetivamente no alistamento e cooptação de gaúchos campeiros para serem utilizados como soldados e instrumentos para a revolução nos processos de formação da nação.

Nesta próxima etapa, temos como em um contexto argentino de modernização econômica, o país foi marcado por um grande impulso liberal que afetou diretamente a sociedade rural, prejudicando assim o modo vida praticado pelos gaúchos. Processo este que já ocorria no período de Sarmiento, porém, foi acentuado com o advento da Guerra do Paraguai (1864-1870). Neste sentido, vemos como Hernández, assim como outros autores, publicam textos que propuseram uma defesa dessa classe social que está sendo oprimida. O poema Martin Fierro propôs uma determinada consciência ao gaúcho, que está intimamente relacionada ao programa social de seu autor.133

132 HERNANDEZ, José. Martin Fierro. Trad. Joao Otávio Nogueira Leiria, Porto Alegre: Martins, 1987.p. 20 133

GRAMUGLIO, Maria Teresa; SARLO, Beatriz. "Martin Fierro". In: História de la literatura argentina. Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1980. p. 26.

Sobre esta obra, a minha hipótese consiste em uma "multi-representação" do gaúcho. Na narrativa apresentada por Hernández, não existe uma limitação representativa. Pelo contrário, podemos identificar diversas possibilidades na construção da identidade gauchesca.

Muitos críticos literários apresentam a teoria de que a obra Martín Fierro descreve o anti-herói gauchesco. Mas, como podemos definir o conceito de anti-herói? Segundo o Dicionário de Teoria da Narrativa a singularidade de um personagem que possui essa característica: "decorre de sua configuração psicológica, moral, social e econômica, normalmente traduzida em termos de desqualificação. Neste aspecto, o estatuto do anti-herói estabelece-se a partir de uma desmitificação[..].134 Ainda temos um personagem imerso em angústias e frustrações causadas pelos estigmas da sociedade que o consideravam com um ser marginalizado. O trecho da obra citado acima, já mostra como um gaúcho que era considerado bom pai e marido exemplar foi corrompido pelo contexto, se tornando, aos olhos da sociedade um "bandido". Neste período tivemos uma acentuação na escala do preconceito sobre o gaúcho.

Antes de mostrarmos como o autor retrata e descreve esse novo perfil gauchesco se faz necessário trazer alguns dados sobre a obra, assim como o contexto em que esta foi produzida. Apesar de José Hernández apresentar uma nova perspectiva para a literatura gauchesca, a sua trajetória é muito semelhante à de outros autores deste gênero.

Hernández (1834-1886) é natural de Buenos Aires e desde cedo começou a sua caminhada como ativista político. Possuía um direcionamento ideológico federalista, que defendia uma maior autonomia por parte das províncias e que estas não deveriam se submeter à autoridade central de Buenos Aires.

Atuando como soldado, chegou a participar das rebeliões provinciais em que teve uma grande atuação, principalmente na Revolução Jordanista, em que culminou em uma derrota e no seu exílio em 1871. Foi então, em seu período de afastamento da pátria, que produziu a sua obra mais notória, Martín Fierro. Aqui percebemos um ponto em comum com grande parte dos escritores do gênero gauchesco: muito deles escreveram suas obras longe da pátria Argentina.

134REIS, Carlos e LOPES, Ana M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988. [Série

Sempre deixou explícito seu ideal político a favor da causa federalista. No momento em que Justo José Urquiza assume o poder da província de Entre Ríos, Hernández se une com diversos intelectuais argentinos, entre eles, Carlos Guido y Spano, Olegário Andrade, Juan Bautista Alberdi e o próprio Urquiza com o objetivo de combater o monopólio e a dominação portenha. A partir deste período, em meados de 1861 ocorre um aumento exponencial e significativo a favor da causa provinciana.

A crítica, como já foi mencionada anteriormente, consistia em um país que estaria concentrado em Buenos Aires que era considerada por muitos uma imitação mal sucedida da Europa, e que não teria o espírito argentino. Para Hernández, a verdadeira e autêntica essência argentina estaria presente nas classes populares provincianas e no momento que se comparava as duas regiões (províncias e Buenos Aires) parecia estar descrevendo dois países distintos.

Ele ainda afirmava que a capital parecia estar impregnada de um arcaísmo feudal. Em um texto publicado em 1869 no jornal El Rio de la Plata, Hernández afirma que a cidade portenha:

ainda mostra sinais dos privilégios monstruosos do colonialismo. Surgiu aqui uma espécie de aristocracia à qual o interior abandonado paga tributo, assim como nos velhos tempos, antes da formação das sociedades modernas, os vassalos eram tributados pelos senhores feudais. 135

Para o autor, no cenário argentino ainda havia uma relação de vassalagem instaurada pelos ditos "senhores feudais", que eram a classe dominante portenha.136

Um ponto de convergência entre os escritores argentinos e que também se aplica a José Hernández é o fato deste, antes de escrever Martín Fierro, ter uma grande tradição intelectual e que ao longo da escrita de seus textos insere o leitor nas realidades políticas e sociais de sua época. Para Shumway, "o contexto mais imediato [..] era o político: a guerra contra o Paraguai e as guerras indígenas, chamadas comumente de "A conquista do deserto”137. Tais guerras indígenas seriam o background em que estaria o gaúcho Martín Fierro descrito por José Hernández.

Como podemos perceber, existiam inúmeras críticas contra às práticas econômica e, principalmente, políticas que Buenos Aires exercia sobre as províncias

135HERNANDEZ, José. Prosas de José Hernánder. Buenos Aires: Futuro, 1944. p. 91.

136O termo "Oligarquia" também aparecia constantemente nas críticas feitas pelos federalistas acerca

classe dominante.

137

que eram vistas como submissas e sem poder político. Contudo, apenas a intenção de diversos pensadores confederados não era suficiente para mudar tal contexto. Como afirma Nicholas Shumway, faltava a essa oposição o essencial, o poder aquisitivo.

No documento lucassalesfurtado (páginas 66-69)