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2.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DA SUA MULTIFUNCIONALIDADE

2.3.1 A multifuncionalidade dos direitos fundamentais

A alegada multifuncionalidade aparece nos direitos fundamentais que se conceituam como direitos subjetivos a prestações, seguindo a teoria de Alexy. Não obstante, como já é pacífico que os direitos de defesa ou abstenção compõem também uma função dos direitos fundamentais, é, em verdade, na qualidade prestacional dos direitos fundamentais que serão verificadas as diversas funções inerentes.

Canotilho tem desenvolvido uma taxonomia ampla em torno da função dos direitos fundamentais. Divididos em quatro grupos, consegue abranger tanto os

50 MARINONI, 2012, op. cit. p. 74.

51 BILBAO UBILLOS, Juan María. La eficacia de los derechos fundamentales frente a particulares. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1997. p. 235.

direitos que visam a uma defesa contra o Estado como também direitos que exigem uma prestação do Estado. Encontramos:

1) Função de defesa ou liberdade - conformada por direitos que se erigem como garantias de inviolabilidade do status quo do indivíduo e da sua esfera jurídica.

Ao mesmo tempo, estes direitos revestem-se de disposições de competência negativa para os poderes públicos, vedando as ingerências do Estado na esfera jurídica individual. Também importam o poder de exercer positivamente direitos fundamentais e de exigir omissões de forma a evitar transgressões;

2) Função de prestação social - diferenciada dos primeiros por permitir ao particular exigir e obter algo do Estado, por exemplo, saúde, educação, previdência social, em geral, de um bem juridicamente protegido que, sob a lente do welfare state, o Estado deve garantir com um mínimo indispensável por respeito à dignidade humana. Bifurca-se em 2.1.) direitos sociais originários que, mesmo sem intermediação legislativa e só pela redação da norma que contém o direito fundamental, habilitam a exigir uma prestação do Estado, entretanto, 2.2.) direitos sociais derivados permitem ao individuo exigir uma atuação legislativa do Estado que vise concretizar normas constitucionais sociais;

3) Função de proteção perante terceiros - normas que incumbem ao Estado prestar normas regulamentadoras das relações existentes entre os indivíduos titulares de direitos fundamentais. Será por meio de regras de conduta social – manifestadas em normas jurídicas – que o Estado pretenderá dar uma regulação às relações privadas;

4) Função de não discriminação, como normas constitucionais que garantem um trato igualitário entre os titulares de direitos fundamentais, assim como uma igualdade entre os direitos fundamentais, não importando hierarquização nem dos titulares nem dos direitos per se.

Refinando a classificação, Robert Alexy colhe unicamente os direitos prestacionais e os divide em; primeiro, direitos a prestações em sentido estrito, relacionados a direitos de prestações sociais, e são direitos que, segundo o professor alemão, o indivíduo poderia consegui-los se tivesse a forma de poder encontrar estes direitos no mercado e pagar por eles. Contudo, quando se fala em fundamentalidade social, quer-se explicar a preocupação de o Estado fornecer bens jurídicos básicos para o cidadão.

De outro lado, alinham-se os direitos a prestações em sentido amplo, apresentando uma dupla divisão: direitos à proteção e direitos à participação na organização e no procedimento. Adicionalmente, sublinhe-se que Alexy aloca os direitos fundamentais voltados a uma proteção como aqueles direitos que não necessariamente implicam uma abstenção do Estado, mas sim, uma prestação normativa. Certamente, mais do que prestações fáticas, trata-se de uma verdadeira proteção normativa ou inclusive, refinando o tema, significaria falar em uma tutela normativa. Grande diferença existe entre referir-nos aos direitos de defesa, pois estes implicam a abstenção. A nuance reside que a proteção – não da esfera jurídica individual – é uma proteção por meio de uma prestação de uma norma ou inclusive de uma prestação fática realizada pelo poder de polícia inerente à administração pública. Cabe mencionar que tal classificação pode ser exemplificada na Constituição Espanhola de 1978, que aglomera seus direitos fundamentais em direitos de autonomia, direitos de participação e direitos a uma prestação.

Já nos domínios do constitucionalismo brasileiro contemporâneo, Ingo Wolfgang Sarlet52, inspirado na classificação de Alexy e em obra já referencial sobre a eficácia dos direitos fundamentais, agrupou os direitos à prestação em direitos à proteção, ou também podem ser chamados de direitos a uma tutela normativa e fática. Trata-se, em verdade, de uma tutela normativa por meio da qual, como foi teorizado por Alexy, o indivíduo requer do Estado uma edição de normas materiais ou processuais que permitam tutelar material ou jurisdicionalmente os direitos.

Também, a tutela fática permite ou faculta à administração pública a atuar diretamente mediante atos materiais, com impacto na esfera jurídica do administrado. A próxima função destes direitos pode ser indagada nos direitos de participação na organização e mediante o procedimento. Os referidos direitos correspondem ao status activus processualis assim ideados por Jellinek. Afirma Sarlet que essa função encontra-se no direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, mas esmiúça a classificação e definição sugerindo que não devemos misturar as garantias do direito ao devido processo com direitos à participação e organização no procedimento. Esclareçamos isso. Como temos visto no início deste

52 SARLET, op. cit., p. 195.

capítulo, já nos exórdios do constitucionalismo moderno, todos os direitos fundamentais equiparavam-se a meras garantias ou mandados dirigidos ao Estado buscando uma proteção por meio da simples abstenção. Assim, as garantias do devido processo foram batizadas como direitos de defesa, sendo homologados como abstenções do poder estatal nos terrenos processuais. Por tal motivo, mostramos aderência à tese que afirma ser o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva – como acesso à justiça – efetivo direito fundamental de participação na organização e no procedimento. Trata-se de um direito pelo qual o titular dele, isto é, o consumidor de justiça, exigirá do legislador um emaranhado normativo que permita instrumentalizar uma tutela jurisdicional dos direitos e, do outro lado, permita ao juiz, em caso de ausência desta falta de normatividade, poder concretizar esse direito à tutela jurisdicional se servindo da modelação de um procedimento ou técnica inclusive não positivada. Assim sendo, semelhante função deste direito não pode ser atrelada a um catálogo de garantias processuais – de defesa – que nada exigem nem do legislador e muito menos do juiz.

Consideramos que é com esta lição que damos forma e sustento a nossa teoria de reinterpretar a relação ‘processo e Constituição’, não como relação de meras garantias de defesa, mas como uma exigência de prestação estatal de normas procedimentais adequadas ao direito material.

Finalmente, Sarlet rotula a última função dos direitos fundamentais em função de prestação social a raiz do status positivus socialis. No que toca aos direitos que visam a uma prestação social, não se diferenciam muito daqueles teorizados por Alexy, porque corresponde a esta função aqueles direitos intimamente ligados a uma existência digna das pessoas que por não ter formas como atingir esses direitos e bens jurídicos no mercado, o Estado de Bem-estar encarrega-se de não só reconhecer, mas também de permitir veicular esses direitos por meio de normas de direito material de uma tutela fática53.

53 “Em síntese, afinados, neste particular, com a sistematização apresentada por Robert Alexy, embora ligeiramente adaptada, é possível afirmar que, considerados em sentido amplo (na condição de um direito a um todo), os direitos fundamentais cumprem, em regra, uma dupla função, abarcando um viés (dimensão) simultaneamente negativo e positivo. Todavia, de acordo com o objeto de cada posição subjetiva atribuída ao titular do direito, os direitos fundamentais podem ser classificados em:

1. Direitos de defesa (direitos negativos); 2. Direitos a prestações (direitos positivos), no sentido de direitos a ações positivas, que exigem do destinatário uma atuação em nível de prestações fáticas (materiais) ou normativas (jurídicas), incluindo, neste caso, o dever de emitir normas de proteção, organização e procedimento”. Cf. SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., p. 302.